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sábado, 28 de dezembro de 2024

nº 263 Seguindo os pasos de Castelao por Bruselas IV


Mais dos Velhos Mestres

Hoje estive em dois museus: o de instrumentos musicais e o Maison du Roi ou museu da cidade de Bruxelas. O primeiro pareceu-me ser uma coleção extraordinária, colocada num espaço, os antigos armazéns da Old England, bem lindo. Porém, a exposição dos instrumentos e o conceito do museu dececionaram-me muito. Mas aqui estamos a falar de Castelao e da sua passagem por Bruxelas, por isso voltemos aos velhos mestres.

Alegoria da Fertilidade
Jacob Jordaens

«Jordaens (1577-164o). Ten moitas cousas que me gustan e outras que non me gostan nada. É moi roxo de côr; pero ten cousas ben dibuxadas. Ten unha "Allegorié de la Fecondité" moi decorativa e chea de sensualidade; iste caro ten pintadas moitas froitas, pero polo visto son de Snyders». Diario 1921 p. 198

Parece que esta pintura representa a Pomona, a deusa romana das frutas, das árvores frutíferas, dos jardins e das hortas.O nu central, de costas para o espetador, divide a cena em duas metades, como a coluna de uma janela gémea. Ao se aproximar da tela, percebe-se a mestria com que Jordaens pintou a pele nua, com seus brilhos, sombras, áreas rosadas e até a celulite de uma das suas nádegas. Juntamente ao resto das ninfas e sátiros, formam um círculo que envolve a deusa, que segura no colo enormes cachos de uvas, brancas e tintas. Incluso a fealdade do rosto dos sátiros, não impedem que o tudo seja formoso.

A nossa Senhora das Sete Dores
Adriaen Isenbrant (ca. 1485-1551)

«Estiven pola mañán na Irexa de Notre-Dame. [...] O cadro máis fermoso é un de Adriaen Isenbrant que representa a Nosa Señora da Dôres ; a Virxen está sentada nunha especie de retablo onde están pintadas algunhas esceas da Paisón, e hai tal diferencia entre istas esceas e a figura da Virxen (que parece de David) que non parecen feitas pola mesma mán». p. 225

Uma das pinturas que mais me impressionou de todas as que vi até agora é Nossa Senhora das Sete Dores de Isembrant. É uma tela pintada com a técnica chamada grisaille, que consiste na utilização de pigmentação monocromática que nos dá a sensação de estarmos diante de uma obra escultórica. A iluminação do Museu de Arte Antiga de Bruxelas, en geral, deixa muito a desejar, mas mesmo assim o trabalho de Isembrant é fascinante. Castelao viu esta obra no seu local original, a Igreja de Notre Dame. Imagino que no século XVI, com a fraca iluminação que deve ter existido no interior dos templos, a imagem da Virgem pareceria ter sido esculpida diretamente na pedra. Quando eu e a Tero falávamos desta pintura, lembrei-me do Stabat Mater de Araújo Silva, que este ano ouvimos duas vezes nas vozes dos alunos do Conservatório de Santiago de Compostela. 

Tríptico da abadia de Dieleghem

Detalhe.

Jesus com Simao o Fariseu
Albretch Bouts (ca, 1455-1549)

                               
Detalhe

Desenhos de Castelao

Em Lucas 7: 36-50 podemos ler:

«36 E rogou-lhe um dos fariseus que comesse com ele; e, entrando em casa do fariseu, assentou-se à mesa.

37 E eis que uma mulher da cidade, uma pecadora, sabendo que ele estava à mesa em casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com unguento;

38 E, estando por detrás, aos seus pés, chorando, começou a regar-lhe os pés com lágrimas, e enxugava-lhos com os cabelos da sua cabeça; e beijava-lhe os pés, e ungia-lhos com o unguento.

39 Quando isto viu o fariseu que o tinha convidado, falava consigo, dizendo: se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois é uma pecadora.

40 E respondendo, Jesus disse-lhe: Simão, uma coisa tenho a dizer-te. E ele disse: Dize-a, Mestre.

41 Um certo credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos dinheiros, e outro cinquenta.

42 E, não tendo eles com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Diz, pois, qual deles o amará mais?

43 E Simão, respondendo, disse: tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou. E ele disse-lhe: julgaste bem.

44 E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês tu esta mulher? Entrei na tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta regou-me os pés com lágrimas, e os enxugou com os cabelos da sua cabeça.

45 Não me deste ósculo, mas esta, desde que entrou, não tem cessado de me beijar os pés.

46 Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com unguento.

47 Por isso digo-te que os seus muitos pecados são-lhe perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama.

48 E disse-lhe a ela: os teus pecados são-te perdoados.

49 E os que estavam à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este, que até perdoa pecados?

50 E disse à mulher: A tua fé salvou-te; vai-te em paz».

«Istes dous dibuxos son copias moi lixeiras de un anaquiño onde a Madalena límpalle os pés ó Noso Señor cos seus cabelos loiros. Ollando ises dous cachiños pasei perto de duas horas. ¡A humildade!». p. 184

Esta imagem de uma mulher lavando aos pés do macho alfa, utilizando o próprio cabelo, descreve perfeitamente o papel da mulher na Igreja Católica. Gostaria de pensar que se tivesse havido uma relação entre Cristo e Maria Madalena, esta teria sido de natureza diferente. Por isso não entendo muito bem o significado da palavra humildade, entre os pontos de exclamação de Castelao. Eu teria usado a de humilhação.

Retrato do Dr. J. Scheyring
Lucas Cranach o Velho

«Cranach (1472-1553). Dieste artista xa coñecía bastantes cousas que, pra decir a verdade, non me gostaban. O dibuxo parecíame amaneirado e a côr desagradabel. Pero niste Museo púxenme a ben con il, pois o retrato do Dr. Shewring é unha maravilla de todo». p. 197

É óbvio dizer que o pintor alemão Cranach foi um extraordinário retratista, como demonstra esta imagem do Dr. Scheyring, ou o ainda mais famoso retrato do seu amigo íntimo Lutero. Na minha opinião, a pintura que se conserva em Bruxelas e que Castelao copiou magistralmente, tem muita mais força do que a do teólogo reformista. O gesto severo, a austeridade tão típica do retrato flamengo, o olhar dogmático de quem acredita estar na posse da verdade absoluta, faz olhar para a pessoa representada com respeito, mantendo uma distância que, noutras pinturas dos antigos mestres, tantas vezes gostaria encurtar.

Retrato de Jacob van der Gheenste
Pieter Pourbus (ca. 1523-1584)

«O retrato de J. van der Gheentte é moi bo». p. 197

Para entender da austeridade no retrato flamengo, chega com olhar para o retrato de Pourbus.

Retábulo de Santa Ana
Quinten Metsys

Painel da direita

«Ollando hoxe no Museo o tríptico de Metsys e reparando nas espresións das figuras do painel da dereita que representa a morte de Santa Ana vin que a tristura que teñen as caras non parece tristura senón sorrisa. Isto mesmo se nota en outros primitivos i é que a contracción muscular que estira un pouco a boca é debida, se non lembro mal xa, ó risorio de Santorini en vez de sere por outro, ou outros músculos que baixan un pouco as comisuras dos beizos. A tristura eisprésase por liñas oblícuas de enriba a embaixo e de dentro a fora e non de enriba a embaixo ou de fora a dentro, como se ve nise mañífico cadro de Metsys, un dos mellores do Museo». p. 183

Esta é outra das minhas obras favoritas no museu. Em frente ao retábulo existe um banco onde se pode sentar e observar atentamente as cenas. A arquitetura no fundo da imagem dá uma perspetiva como se estivesses a ver o que está a acontecer mediante uma janela aberta na parede. A luz do quarto de Santa Ana é outro elemento avassalador, difícil de registar com câmara. Uma obra extraordinária, no catálogo de um dos maiores pintores da sua época.


E até aqui as minhas anotações do Museu de Arte Antiga de Bruxelas, que não serão as últimas, pois pretendo retornar. Agora é descansar e tomar um banho que espero seja menos dramático que o de Marat.

A morte de Marat
Jaques Louis David

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

nº 262 Seguindo os passos de Castelao por Bruxelas III

 

Estátua de Francesc Ferrer i Guàrdia

Um dos primeiros monumentos da cidade de Bruxelas mencionados por Castelao é a estátua erguida ao pedagogo Francesc Ferrer i Guàrdia (1859-1909). Este monumento tem uma história curiosa e a citação do artista Rianxeiro merece algum comentário.

Mas vamos por partes. O homenageado é o pedagogo Ferrer i Guardia, criador da Escola Moderna, centro educacional de curta duração e com pouco alunado  (1901-1906). Apesar de tudo, talvez por ter uma imprensa, uma revista... a sua influência nas gerações futuras foi grande. Lembro-me de ter estudado este pedagogo e esta instituição no Magistério, o mesmo currículo que ignorava a existência da Escola Plurilingue e Jacinta Landa Vaz, ou a obra ensaística do seu marido, Vicente Viqueira. 

O facto é que o Estado Espanhol tomou o ilustre pedagogo catalão como bode expiatório dos acontecimentos ocorridos na Semana Trágica de Barcelona. Ferrer i Guàrdia foi baleado no fosso do Castelo de Monjuic em 13 de outubro de 1909, apesar dos fortes protestos internacionais, que exigiam o perdão do rei Alfonso XIII. Como sempre, o Bourbon olhou para o outro lado, concretizando a demissão retórica de Maura, presidente do Governo, que não conseguia acreditar no seu despido.

Após o encerramento da La Escuela Moderna, Ferrer i Guardia viajou para Paris e Bruxelas, período no que funda a Ligue International pour l’Éducation Rationnelle de l’Enfance. 

Conhecida a execução do pedagogo catalão, iniciou-se um movimento popular na capital belga pedindo a criação de um monumento a ele dedicado. Este foi inaugurado em 5 de novembro de 1911, sendo os seus autores o escultor Auguste Puttemans e o arquiteto Adolphe Puissant, ambos franc-maçons, como Ferrer i Guàrdia. Na realidade, a construção deste monumento tem muito a ver com a fraternidade maçónica internacional, sendo dedicado aos mártires da liberdade de consciência, como se pode verificar na inscrição original.

A estátua não durou muito, pois durante a Primeira Guerra Mundial, após a entrada do exército alemão em Bruxelas, foi abalada e só foi devolvida ao seu local original em 1919. Nesse lugar, a praça de Sante Catherine, foi onde Castelao contemplou a escultura dedicada a Francesc i Guàrdia.

Sua visão provocou estas poucas, mas interessantes reflexões em Castelão.

«Vin a estatua de Ferrer. É moi interesante como escultura. Unha figura alongada cara o ceo, como se fose do Greco, non pode simbolizar a liberdade de concencia… de Ferrer. Fixeron bem em borrarlle o nome de Ferrer pois non merecía ise moimento. E a libertade de concencia dos avanzados tampouco pode simbolizarse cunha figura que se alonga cara enriba em sentido vertical senón como unha figura que se alonga em sentido horizontal. Os avanzados que viran as costas à gran plaza de Bruselas non podem falar de libertade». Diario 1921 p. 175

Parece evidente a pouca simpatia que Castelao teve com os internacionalistas. No Diário há várias reflexões sobre o arredismo galego, o que passa necessariamente pelo conhecimento de nós e por uma soberania estética que parte do facto diferencial para invadi-lo tudo. Quando Castelao fala de pessoas avançadas, acho que ele coloca no mesmo saco a anarquistas, maçons, esperantistas e qualquer outro utópico que sonhe com uma sociedade global, uma massa internacional de iguais. Castelao estuda a diferença, o folclórico, o artesanal. Se um pintor belga se parece com outro pintor francês ou espanhol, ele despreza-o porque trai a sua tradição. Sem este ensimesmamento cultural, Castelao não teria construído em torno de si o seu universo estético, o universo estético no qual nos vemos refletidos.




Placa com um texto de Francesc Galcerán Ferrer
advogado defensor de Ferrer i Guàrdia.

Inscrição na base da estátua

Em 1984, por iniciativa do estudantado, a estátua foi transladada desde a sua localização original a enfrente da fachada da Universidade Livre de Bruxelas.


Posteriormente, em 1990, a cidade de Barcelona inaugurou uma réplica da estátua de Bruxelas, no lugar onde o pedagogo catalão fora assassinado. 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

nº 249 Uma coleção de fotografias de Rianxo, o Museo de la Baraja e um sujeito de Vox que passava por ai.

 

Há alguns meses comprei uma pequena coletânea de fotografias de Rianxo ao Museo de la Baraja de Madrid. O seu diretor as vendeu para mim muito baratas, sabendo que o seu destino era a vila onde as instantâneas foram tiradas. Agradeço imenso, O lote tem alguma leitura curiosa e que gostaria de partilhar. É por isso que começo mostrando-vos as belas imagens.

Fig. 1
 
Fig. 2

Fig.3
 
Fig.4
 
Fig.5

A qualquer pessoa acostumada a ver fotografias históricas de Rianxo, o conjunto irá imediatamente sugerir duas questões:

1º A maioria das imagens são muito conhecidas por estar penduradas nas paredes do Museu de Manuel António e fazer parte da coleção de postais de La Colmena, estabelecimento de C. González.

2º Também que a qualidade de exposição das minhas cópias é muito baixa, tendo em conta que de alguma delas existem reproduções magníficas.

Sendo isto absolutamente verdade existem vários aspectos que tornam a este conjunto agora no meu poder em algo do maior interesse.

A primeira questão a ter em conta é a autoria das fotografias e a sua datação. No Museu de Manuel António, e em diversas publicações, insistem em atribuir-lhas todas a José Pérez González (1901-1942), músico e fotografo amador. Já no 2012, avisava numa postagem de Ilha de Orjais da improvabilidade, senão impossibilidade, de que alguma destas fotografias fossem do primo de Manuel António. Aquela da que eu falava especificamente, datada em 1912 e na que aparecia um homem mostrando um jornal coa notícia do afundimento do Titánic, teria que ser obra dum menino de apenas onze anos. Depois de um tempo, soubemos que em realidade essas primeiras fotografias foram tiradas por José Barreiro, ajudado pelo seu amigo e correligionário, José María Varela Torrado.

Distinguir quais foram feitas por Pepito Pérez e quais por José Barreiro é coisas de uma análise profunda para a que precisaríamos de ver o tipo de placas utilizadas, conhecer em profundidade a história de Rianxo e, por cima de tudo, saber ler uma fotografia. Este labor deveria ser uma tarefa colegiada, pois ninguém sabe de tudo, e nem preciso dizer que muito necessária.

O meu método de leitura duma fotografia semelha-se em tudo ao dum texto escrito. Começo no canto superior esquerdo e, muito devagar vou lendo até terminar no canto inferior direito. Simples.

Da leitura das fig. 1 e 2 apreciamos as seguintes diferenças:

1º Fig. 1 Os plátanos do Campo de Acima têm folhas.

Fig. 2 Os plátanos do Campo de Acima carecem de folhas. Portanto, as fotografias 1 e 2 foram tiradas em estações diferentes.

2º Fig. 1 No centro do Campo de Abaixo há um farol e a Escola da República parece que está sem pintar.

Fig. 2 Embora possa haver um problema de perspectiva, semelha que nesta altura na praça não havia um farol e que a Escola da República estva sem pintar.

Da fig. 2, na que se vê a Casa do Povo, podemos dizer alguma coisa mais. Na fachada ainda não fora colocada a placa dedicada a Ángel Baltar, assim que a fotografia teve que ser tirada antes de 1929. Também se aprecia o encofrado das colunas da esqueira pola que se acede à porta principal do Concelho. De saber quando se fiz esta obra, teríamos a data certa da fotografia.

Como curiosidade, na fig. 2 vê-se um grupo de nenos e nenas rodeando a um adulto que parece dizer-lhes algo. As crianças levam livros debaixo do braço, talvez o Primer Manuscrito ou a Encilopédia, e o adulto uma carteira cruzada ao peito, polo que muito possivelmente estejamos ante o mestre com seus alunos.

Nas fig. 3, 4 e 5, também podemos ver algo que nos situa em épocas diferentes na história rianxeira. Nas três notamos a presença da Capela de São Bartolomeu, um fito que nos permite situar perfeitamente a câmara do fotógrafo. Mas a capela da fig. 3 aparece no estado anterior à sua restauração, um elemento mais para datar este grupo. Na fig. 5 vê-se claramente a capela pintada de branco e com a espadana e a campá que lhe foi colocada na altura.

Noutra postal da minha coleção, da série de La Colmena, fig. 6vê-se claramente a capela branca com sua espadana e com a porta aberta olhando para Rianxo, é dizer, ao leste, portanto desorientada. Na fig. 3 esta porta aparece bloqueada.

                                                                               Fig.6

As duas dornas jeiteiras da fig. 3 são a Juanita e a San Antonio y Animas.

Fazia referência à baixa qualidade das imagens impressas. Na minha opinião poderíamos estar ante umas provas de impressão, já que as figuras aparecem desenquadradas no papel, com uma banda lateral em branco onde alguém anotou como recordatório, os lugares onde se tiraram as fotografias. Essa pessoa não devia ser rianxeira, pois usa expresoes como Plaza Mayor, pouco ou nada utilizada em galego .ou Alameda ,para um espaço que um rianxeiro denominaria Campo de Arriba ou de Abaixo. Mas o erro mais grande e o de denominar à Capela de São Bartolomeu como Ermita de Guadalupe.

Se observamos os postais pola parte de atrás fig.7, podemos ler impresso neles a frase Tarjeta Postal e o desenho dum anagrama com as siglas IFAG, as quais fazem referência a Industria Fotoquímica Antoni Garriga. 

Fig.7

Antoni e o seu irmão Rafael foram engenheiros pioneiros no desenvolvimento de produtos fotográficos. Rafael Garriga Roca (1896-1869) é o avó de Ignacio Garriga Vaz de Concicao (sic), candidato de Vox a Generalitat de Catalunya. Como é sabido, o político xenófobo é filho duma guinéu-equatoriana nascida antes da independência do seu país, portanto de nacionalidade espanhola. Se Ignacio Garriga fosse um Rei da Espanha, talvez o seu sonho, mereceria a alcunha régia de Ignacio I El Oxímoron, porque ele próprio é uma contradição em termos. Se ser catalão e ultra nacionalista espanhol a um tempo é um disparate, ser de Vox e negro, parece uma piada.

Todas as fotografias desta postagem pertecem ao arquivo do Pico Rodríguez, depositado no Fondo Local de Música do Concello de Rianxo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

nº 248 Leyendas de la música e o nascimento da fábrica Dieste.

 

Nadie está obligado a ser genio, pero todos estamos obligados a aspirar a la obra para salvarnos.

Eduardo Dieste.

Entre as pequenas joias bibliográficas que fatigam os meus andeis -que diria Borges- encontra-se o formoso volume titulado Leyendas de la música (1911) de Eduardo Dieste (1881-1954). Formoso volume, repito, como objeto, pois como leitura resulta mais bem prescindível. Está composto o exemplar por dois relatos ou novelinhas titulados Margaritas de oro e La canción tonta, literatura romântica, folhetinesca, na que se pode entrever alguma referência paisagística ao Rianxo diestiniano. Na minha opinião, o principal valor que para os rianxeiros tem as Leyendas de la música reside em estarmos a olhar a primeira obra do que poderíamos chamar a fábrica Dieste; o primeiro dos volumes publicados por qualquer dos moradores do número 1 da rua de Abaixo.

A coleção

Leyendas de la música faz o volumem XI da coleção Biblioteca de Escritores Gallegos, editorial madrilena do bilbaíno Luis Antón del Olmet (1886-1923) e do pontevedrês Prudencio Canitrot (1883-1913). Foi impresso na Imprenta de Alrededor del Mundo -que belo nome- em Caños nº 4. 

Canitrot e Eduardo Dieste coincidiram fisicamente na Ponte Vedra de fins do século XIX, e ainda que por idade é possível que ambos não intimaram, resulta improvável as famílias não se conhecerem.

Luis Antón del Olmet também teve muita relação com os galegos e nomeadamente com Rianxo. El barbero municipal, em agosto do 1913, dá conta da visita do ilustre escritor à vila rianxeira, convidado por Castelao. 

A união de Canitrot e Olmet deu numa empresa fabulosa contando com nomes como Ramón del Valle Inclán (Las Mieles del rosal), Manuel Murguía (Desde el cielo), Linares Rivas (Mientras suena la gaita), Wenceslao Fernández Flórez (La tristeza de la paz) ou Sofía Casanova (El pecado). A estes nomes de galegos consagrados na corte madrilena, somaram-se outros quase ou absolutamente desconhecidos, como o de Eduardo Dieste. Este ex-seminarista e periodista de 30 anos publica o seu livro a consequência de ter ganhado o primeiro prémio no concurso organizado pola editorial de Olmet e Canitrot.

O texto

Abrindo o volumem de Leyendas de la música, aparece um soneto no que o seu autor, J. Ramirez Uria, descreve, belamente, ao seu amigo Eduardo:

Su alargada figura la de un Greco parece,

y hay grabado en su rostro un raro complejismo:

tristeza que sonríe... ira que languidece...

escéptica mirada con fulgor de ascetismo.

Su pelo lacio y negro de bohemio poeta

al de un prerrafaelista nazareno retrata,

Edgar Poe Compuso su extraña silueta

y Muset le hizo el lazo suelto de la corbata.

Su alma ingenua y profunda es el alma gigante

de aquel gentil modelo de caballero andante

cuya bella locura hizo flotar su airón.

Le es posible, á quererlo -y por ello alardea-

ver en cada cocota vil una Dulcinea

y ver en cada pecho vacío un corazón.

Em realidade, Ramírez Uría está a por em verso o retrato sem assinar que aparece na capa do livro, tal vez do próprio Canitrot.

 

Arquivo do Pico Rodríguez


Finalmente

No prólogo que antecede às duas noveliñas que No prólogo que antecede às duas novelinhas que compõem Leyendas de la Música, Eduardo Dieste descreve uma paisagem bem conhecida para nós: 

«Cruz berroqueña y manchada de líquenes que atalaya el mar imponiendo á los pescadores la obligación del recuerdo y de narrar su historia á los de pueblo extraño que viajen en sus naves. Y aunque su vida por tierra se extiende á poco, los que pasan por el apretado sendero que bordea temerariamente la costa de abruptos barrancos también la miran en remembranza, y las viejas se persignan y oran, acallando con misterio las preguntas en voz demasiado sonora de los rapaces prendidos á sus faldas. 

La misma piedad alimenta de aceite una lamparilla que pende en su centro. ¡Qué tristeza tiene el fulgor de la cruz cuando es de noche! Y débil como es, en ocasiones de tormenta sostuvo con su parpadeo animoso la esperanza de los marineros en peligro».

 Aos que conhecemos Rianxo, esta paisagem evoca-nos o caminho que desde Punta Fincheira percorre a costa sobrevoando os areais do Quenxo e Tanxil. Bem ali, em Punta Fincheira, existe uma pequena cruz, desrespeitosamente tratada pelo enchimento do porto e dos chalés turísticos que a sombreiam. Este caminho costeiro une a vila dos Dieste com o areal dos Baltar, como um cordão umbilical da aristocrática cultura aldeã. E mesmo agora, quando somos nós que o transitamos, ainda sentimos nele um algo de romântica literatura.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

nº 246 Manuel Antonio na olhada moça de Carvalho Calero.

 

Lembranza do Ulises morto.

f.1 Grave, fremoso, profundo, sonoro e raiolante destiño o de algúns homildes lugares da terra, que ven abrirse a rosa de un ilustre nadal. De Belén virá a luz! A escondida, a sinxela, a pequena cidade de David, dormida antre palmeiras, arrolada pol-as voces pervagantes dos pegureiros que apacentan as súas cabras nos soutos verdecentes e á pomba mensaxeira do vento confían o mensaxe de unha canción... Eiquí, no nosa terra, a vila mariñeira de Rianxo sabe de esas doces maternidades. I en lembranza de un fillo seu, acendemos hoxe a lámpada do recordo.

 

f.2 Compríronse tres anos de tránsito de Manoel Antonio. No ceo dos mariñeiros, fumando a súa vella pipa, estará agora, cicáis en tranquila conversa con Neptuno1, cuias barbas fluviás, acio de xebras e de cunchas, tremarán, por ventura, unha leda risada de petrucio patrón. Verde pazo do Rei do Mar; de cristal de roca, puro e limpo! Ceo salgado! Anxos de escamadas colas, de ollos belixerantes, de redondos peitos! Alá estará Manoel Antonio, esquecido de nós, amigo de Simbad2 e amado das sireas.

 

f.3 Pero, dorna fugaz, do seu paso pol-a terra ficóunos un ronsel. Este ronsel3 é “De catro a catro”. Na cuberta da súa nao, no silenzo caviloso das guardias, araña mariñeira, ia tecendo o seu diario de abordo. Matinaba inauditas descubertas queimaba na súa pipa forte tabaco de estelares navegacións, esculcaba a dor da noiva goleta, cambeaba radiogramas estranos con estrelas descoñecidas. E todo elo nol-o dou, un bó dia de marzal, no caristel4 de un cuaderno de poemas.

 

f.4 Lírico Ulises5. “Odisea6”. Mais nosa “Odisea” tiña que ser lírica. Non podía narrar aventuras de un rei que regresa ao fogar perseguido dos deuses nemigos. Tiña que ter por héroe a un poeta; e por rapsodias, desafiadas cancións. Canciós que aboian corpos de afogados, en que as estrelas dialogan cos mastros e as gueivotas levan no peteiro as cartas dos mariñeiros namorados: un mar sulcado pol-a quilla de buques pantasmás; un mar que guarda no fondo do seu ventre de chumbo, paraisos de coral e madrépora donde os poetas náuticos fuman, xogan e xuran, parolan co Capitán Nemo7 e beben o acedorón8 que lles sirven as sireas, taberneiras de adegas sulagadas.

 

f.5 Alá estará Manoel Antonio, n-algún bar submariño, xogando as cartas con Corbiére9. Esquecido de nós, no seo dos mariñeiros. Pero nós non o esqueceremos endexamáis. Porque é o noso Ulises. Porque escribíu a nosa Odisea. E na data da súa morte, todos os que o amamos, inclinados á beira do mar, escoitamos un son lonxano, unha sombra de son. E o bronce submariño, o sino mergullados dos bretóns10, a campá dos mortos de que a Salgari11 falou o vello logo Catrame12, que dobra en lembranza e honor de Monoel Antonio. Ulises galego.

 

R. Carballo Calero. El pueblo gallego. 23 de fevereiro de 1933

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Quando o Dr. Ricardo Carvalho Calero (1910-1990) publica este artículo era um moço de vinte e dois anos recém formado em direito e acabava de cumprir-se o terceiro cabo de ano da morte do poeta rianxeiro Manuel Antonio. A peça jornalística que nos oferece o Dr. Carvalho Calero é duma beleza notável e está ch eia de referências literárias que descrevem, acho que felizmente, a imagem e personalidade do poeta do mar de Rianxo. Aínda ciente de que o artigo não precisa de ser explicado para que um possa gozar dele plenamente, deixem-me um pequeno comentário de texto para uma leitura um bocadinho mais profunda, e nunca melhor dito, poder mergulhar-nos nas profundidades do relato qual capitães Nemo.

 

f.1 Curiosa esta comparação entre a simples Belém, com o seu presépio e os seus pegureiros e a Vila marinheira de Rianxo, que sendo também um lugar muito humilde, dá a humanidade um personagem ilustre do tamanho de Manuel António. Em realidade, com Castelao e Rafael Dieste foram três os vultos da nossa cultura paridos por Rianxo. Resulta algo questionável o pensamento de Carvalho Calero, já que nenhum dos três são filhos de humildes marinheiros, mais bem da burguesia vilão com a capacidade económica suficiente para dar-lhes estudos universitários. Mas entendemos que o contexto rianxeiro das primeiras décadas do século XX tinha algo de Arcádia, propícia para a formação de intelectuais humanamente bons e por natureza galeguistas. Assim o confessava o próprio Manuel Antonio.


"Mais a miña biografía non é miña; pertence á nosa vila e é dentro d'ela coma unha d'esas horas anónimas que todol-os días c'o mesmo paso invariábel recorre a agulla insensíbel d'o reloxe d'a torre que peta n-as horas coma un sonámbulo. Eu pudera ben trocar a miña biografía pol-a d'unha pedra d'a rua, pol-a d'un árbore d'a plaza ou pol-a de moitos homes que conezo de vista." Manuel Antonio. Obra completa: V. I Prosa. Ed. Xosé Luís Axeitos Agrelo. Real Academia Galega; s.l. 2012 p.87 


 f.2    (1) Neptuno: Deus romano do mar.

 

         (2) Simbad: Marinheiro fictício do livro As mil e uma noites.

 

 f.3   Alguma vez li, lamento não lembrar a citação, que (3) ronsel era uma palavra que os poetas aprenderam dos marinheiros de Rianxo. Sei lá! Mas o caso é que não se documenta na nossa literatura antes de ca. 1922. 

 

Pescaremos nas redes d'os atlas

 

ronseles de Simbad

 

De catro a catro.

 

         (4) Caristel é uma palavra que pertence ao vocabulário literário exclusivo do Dr. Ricardo Carvalho Calero, aparecendo em versos: Rosa secreta, caristel de orballo e também em peças de teatro: A Arbre ou o Auto do prisioneiro. A palavra mais habitual no léxico galego seria canistrel: cesto de varas. 

 

 f.4    (5) Ulisses: Ou Odiseo, rei de Ítaca, personagem principal da Odisseia de Homero.


         (6) Odisseia: Poema épico grego atribuído a Homero. Século VIII a. C.


         (7) Nemo: Comandante do submarino Nautílios, do livro de Jules Verne Vinte mil léguas submarinas.


        (8) Acedorón: Tal vez se esteja a referir ao kykeon, bebida que aparece na Iliada, feita a base de água, cevada e ervas.


 O parágrafo f.4 parece-me o mais formoso do artigo porque conecta perfeitamente com todo o imaginário manuelantoniano. Tal é assim, que ao ir lendo palavras como afogados, cartas, mastros, gaivotas, evocamos imediatamente versos e poemas inteiros do poeta rianxeiro. É sugestiva (e poética em si própria) essa ideia de que a lírica galega não pode ser épica, no sentido de narrativa, senão em forma de canção. Os heróis não seriam, então, os guerreiros, mas sim os/as poetas. Já o dizia o camarada Hernández: Tristes guerras, si no es el amor la empresa.


 f.5     (9) Corbière: Tristan Corbière (1845-1875) foi um poeta bretão representante do simbolismo e pertencente ao grupo dos Malditos. Certamente o paralelismo com Manuel António é surpreendente:

 

- Ambos nasceram no mês de julho.


- Ambos enfermaram de crianças: T.C. reumatismo articular e M. A. tuberculose.

 

- Ambos tiveram um único amor re-conhecido: T.C. Amida Giuseppina e M. A. Mercedes Rodríguez Pimentel.

 

- Ambos publicaram só um livro em vida: T.C. Les Amours jaunes e M. A. De Catro a Catro.

 

Ambos colocaram ao mar no centro da sua poética.

 

- Finalmente, ambos  morreram de tuberculose a idade de 29 anos.

 

Que Manuel António era uma reencarnação do poeta bretão fica claro nos seguintes versos:

 

Eu sou o cachimbo de um poeta,

 

sua ama: que a Besta lhe aquieta.

 

De O cachimbo de um poeta. Os amores amarelos.

 

        (10) O sino mergulhado dos bretões faz referência a lenda da cidade de Ys, que ficou sob a água por culpa dos seus pecados. Os sinos da Sé, mesmo assim, continuavam a dobrar produzindo um som abafado.


        (11) e (12)  O italiano Emilio Salgari (1862-1911) publicou em 1894 Le novelle marinaresche di Mastro Catrane, como o seu nome indica, contos marinheiros dum velho lobo de mar.

 

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Em 1930, ano da morte de Manuel Antonio, o professor Carvalho Calero ainda era para muitos Ricardito, o jovem poeta do Ferrol autor de Trinitarias, livro de versos em castelhano. Mas ao tempo que madurava como pessoa ia publicando por solto os seus primeiros poemas e os seus primeiros artigos em galego. E nessa Odisseia  de aprendizagem, de toma de consciência, de militância, que tantos vivemos, o Dr. Ricardo Carvalho Calero foi-se convertendo no nosso herói, um Ulises-guia neste eterno navegar no que nunca damos chegado a porto.

 


Vida Gallega nº 367; 10 de fevereiro de 1928.


Original de Lembranza do Ulises morto.


Como ilustração musical a esta postagem recomendo-vos escutar La Cathédrale Engloutie de Debussy, baseada no mito da cidade asulagada de Ys. 

 

domingo, 9 de agosto de 2020

nº 245 Cantares de Rianxo.

 
 
Na postagem nº 238 transcrevia um arquivo do Museu de Ponte Vedra feito pelo padre Valentin Losada em 1915 que continha uma listagem de alcunhas, muitas delas ainda vivas a dia de hoje. 
Uns anos antes, em 1911, no jornal argentino Nova Galicia, apareciam uns Cantares de Rianxo, com alguns nomes mais para a coleção. Infelizmente estes Cantares foram publicados sem assinar, assim que nada sabemos de quem os coletou ou compus, mas indubitavelmente deveu de ser um rianxeiro retranqueiro.
Em qualquer caso estamos ante um documento interessante para que algum dia um antropólogo inocente redija o verdadeiro relato das linhagens de Rianxo, linhagens sem escudo na fachada, mas com grande ancestralidade. Já veremos.

                                 Nova Galicia. nº 369. 6 de agosto de 1911.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

nº 243 Uma carta de Faustino Rey Romero a Gabriela Mistral.


Já aconteceu comigo muitas vezes estar a procurar algo nalgum arquivo físico ou digital e por acaso topar-me com outra coisa absolutamente inesperada. Quando isso acontece, sempre fico um bocadinho amolado porque por uns dias aparto a minha vista do tema original, centrando-me no novo achado. Assim, há umas semanas acudi à biblioteca digital de Chile seguindo o rastro duma carta de Rubén Dario, mas sem saber muito bem como, fiquei prendido noutra que um aspirante a cura enviara em janeiro de 1947 à prémio Nobel (1945) Gabriela Mistral. O remitente era o nosso Faustino Rey Romero, na altura, também aspirante a poeta.

O contexto:

Em 1947, Faustino é um moço de 25 anos e todavia terá que aguardar até março do 48 para ser ordenado padre. Encontra-se, pois, no seminário de Tui e isso não lhe impede andar a voltas com a publicação do seu primeiro livro. Em realidade, o seu noviciado como poeta começou quando apenas contava 19 anos de idade, com um poema titulado Un día de difuntos. Infelizmente não encontrei dito poema, mas sim o seu primeiro texto em prosa, publicado no jornal El Compostelano o nove de maio de 1940 e titulado Con Flores a María. Este artigo é como uma declaração de intenções que parece obedecer a uma necessidade -quem sabe se própria ou motivada por pressões externas- de justificar-se. Assim, conta-nos no artigo que trás a leitura de Manecho o da rua de Lesta Meis -um dos volumes da coleção Lar com essas capas tão formosas desenhadas por Camilo Díaz,- ocorre-se-lhe pensar porque ele nao pode ser como o protagonista da novela que trás emigrar a Cuba "mas que al trabajo, dedica preferente atención a la literatura".
Assim, o jovem Faustino pergunta-se:

" ¿Por qué yo, como el héroe de la novela, no correspondía a mi vocación literaria? ¿Para qué leí lo más granado d enuestra literatura castellana y gallega? La abeja que pasa horas y horas zumbando en su cotidiana faena de recoger el dulce néctar de las florecillas silvestres, con algún fin lo hace. Sencillamente, para trasformar ese néctar en dulces panales de miel."

O texto resulta um bocadinho ingénuo, algo inteiramente normal se pensamos que se trata dum cativo de dezanove anos, mesmo sendo esquisito que um quase adolescente escreva, independentemente do contido, duma forma tão correta.
O remate do artigo precisaria duma análise profunda dos biógrafos e peritos em Rey Romero. Na minha opinião contem alguma mensagem para navegantes, quiçá para os seus superiores e sem dúvida, toda uma declaração de intenções.

"María, madre mía: Yo te pido protejas a España y a toda la humanidad, y a mi me lleves de la mano en mi peregrinación por este valle de lágrimas."

Estamos em 1940, recém rematada a guerra provocada pelo golpe militar e em plena repressão dos vencedores. Na maioria dos artigos feitos por católicos ortodoxos falam da Santa Cruzada, pedem a Maria, a Cristo ou ao Apóstolo que proteja aos salvadores da religião e da sua pátria. Faustino implora por Espanha e por toda a humanidade, sem distingos, sem plegrárias ás divindades que ajudaram e continuavam a ajudar com a aniquilação das hordas marxistas. Mas ao mesmo tempo aclara, quiçá aqui para calar alguma boca o eliminar suspeitas, que a sua pena nunca vai ser utilizada para escrever contra a religião da que em breve será um dos seus soldados:

"Te hago asimismo ofrenda de mi pluma al consagrarte mi primera publicación (a María), y hoy, oh madre mía, que antes de que escriba una sola línea contra la religión católica, apostólica y romana, a la que me honro en pertenecer, que se seque mi brazo derecho y el cerebro que dicte tamaños dislates."

E certamente, o Faustino Rey Romero, cura heterodoxo, poeta do divino e do profano e parrandeiro doutorado, jamais faltou à sua promessa.

Também neste 1940, ano fecundo nas primeiríssimas obras publicadas por Faustino, vai ver a luz os que acho são os seu primeiros versos em galego postos em letras de molde, caso de Un día de difuntos, poema que eu não pude ler, estar em castelhano. Titula-se Spes Nostra, Salve! [El Compostelano, 18/09/1940] e a interlocutora e, mais uma vez, Maria. O bom é que este poema, com um título tão apropriado para a pós-guerra que começa, está escrito em galego. O biógrafo de Faustino, X. Ricardo Losada, aponta que uma das possíveis causas de que o poeta de Isorna tivesse que deixar o Seminário de Ourense foi o seu comportamento revolucionário e citando a Víctor Campio acrescenta:

"Faustino non pasaba desapercibido [no seminario]. Facíalle poemas a calquera cousa que vise. E tiña a teima do galego." Ricardo Losada, X. Un evanxeo bufo. Galaxia. Vigo. 2015 p. 68

Antes da aparição de Florilógio poético em 1949, o espaço habitual onde publicava Faustino Rey Romero foi a revista Spes, revista apelidada Órgano de la Juventud Católica de Pontevedra. Em realidade, vai ser um habitual até o feche da mesma em 1962. Aqui aparecem como exclusiva muitos dos poemas que vão alimentar os seus livros e também algum inédito, que tal vez por isso, acho foi esquecido polos seus antólogos, como o titulado La lámpara del sagrario.
Spes foi, além disso, a editora do Florilogio, o primeiro poemário de D. Faustino.


O texto.

Em 1947, Faustino Rey Romero tem já em mente a edição dum livro de poemas, muitos deles, como já disse, publicados por separado na revista mensal Spes. Para apadrinhar a sua entrada na Arcádia mística dos poetas franciscanos, procura a aprovação de Rey Soto e de Gabriela Mistral. Para um seminarista galego, o consagrado Antonio Rey Soto, crego, poeta, bibliófilo... parece uma pessoa acessível. Segundo me informou Xesús Santos, mesmo Faustino pensara nele para acompanha-lo quando oficiasse a primeira missa. Finalmente, Rey Soto não apareceu nem polo livro nem pola igreja. O petitório a Gabriela Mistral semelha mais ousado e cheio de candidez. A uma mulher que acaba de receber o Nóbel, a carta do seminarista galego deveu-lhe de parecer adorável, mas também não temos notícias de que houvesse resposta.
Mas o Florilogio não saiu espido do prelo; Faustino teve que se conformar com o cura-poeta catalão Miguel Melendres Rué (1902-1974), pessoa muito afastada dele no plano ideológico e até diria que no humano, polo que tal vez fosse uma escolha da revista Spes.
Cabe dizer que esta vocação epistolar do poeta de Isorna para procurar padrinhos literários deveu de ser praticada com certa assiduidade como demonstra os elogios de Juana de Ibarbourou publicados junto aos poemas Gabanza do burriño, O feno e Os Emigrantes na própria revista Spes:

"En la obra poética de Faustino Rey Romero, todo es rico, límpido, puro, poesía, agua de manantial." Juana de Ibarbourou, Spes: revista mensual, Janeiro de 1951.

O texto da carta dá alguns dados de interesse para os historiadores de Rey Romero. Em primeiro lugar, o poeta conta-lhe a Gabriela Mistral o seu projeto de publicar o Florilogio entre julho e agosto do 47, mas isto não se produz até o 49, quando D. Faustino fora já ordenado sacerdote. Também sabemos pola carta que o primeiro título que manejou foi o de Florilegio devoto, e não Florilegio poético como acabou sendo. Isto pode não carecer de importância. Um florilegio é uma seleção de textos, algo assim como uma antologia, e o adjetivo que acompanha ao nome vem a aclarar a matéria da que trata a coleção. Devoto parecia fazer referência a uma coletânea íntima, pensamentos escolheitos dum crente em diálogo permanente com seus deuses lares: São Francisco, a Virgem, Cristo, A Natureza... Poético resta protagonismo ao íntimo e qualifica a uma coletânea de poemas tirado dum conjunto maior, quiçá na ideia da editora Spes de incluir só aqueles que foram publicados com anterioridade na sua revista.

Finalmente.

Para os faustinianos, entre os que me encontro, qualquer dado que apareça sobre a vida e milagres do poeta de Isorna é sempre uma alegria e uma porta aberta a novas investigações e achados. Existem magníficos trabalhos como os de Xesús Santos, Carmen García ou X. Ricardo Losada, mas parte da sua produção está ainda por inventariar e estudar. Nada sei da sua correspondência particular, se existe ou foi destruída ou dispersada. Nessas cartas ficariam refletidas muitas coitas e lutas íntimas, mas também a construção duma geração poética magnífica que brandiu suas armas poéticas contra um Estado escuro e repressor.
Também, e este é um desejo pessoal que deito aqui e aguardo recolham futuros estudos sobre Rey Romero, fica por colecionar os seus artigos na imprensa. D. Faustino foi um grande publicista, como o qualificavam na altura, e a sua presença nos jornais da pós-guerra até a sua morte em Argentina são constantes e fundamentais para conhecer a personagem na sua totalidade. Veremos.

                                
Rey Romero, Faustino. [Carta] 1947 ene. 5, España [a] Gabriela Mistral  [manuscrito] Faustino Rey Romero. Archivo del Escritor. . Disponible en Biblioteca Nacional Digital de Chile http://www.bibliotecanacionaldigital.gob.cl/bnd/623/w3-article-136441.html . Accedido en 11/7/2020.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

nº 241 Um rianxeiro executado no garrote vil.



Em 11 de março de 1834 está a acontecer um macabro espetáculo na madrilena Plaza de la Cebada.  A um homem muito novo vai-lhe ser aplicado o garrote vil, no mesmo lugar em que só onze anos antes fora aforcado Rafael del Riego. O acusado, –confesso e convicto– chamava-se Francisco Camaño (sic), tinha no momento de ser ejecutado 22 anos e era natural de Rianxo, partido de Santiago, Galiza. Os feitos aconteceram do seguinte modo:
Francisco Camaño saíra de instrução com a 3ª companhia do 1º batalhão do 4º regimento da guarda real de infantaria. Devia ser, portanto, um soldado de elite, já que a guarda real era o corpo militar mais próximo, como o seu nome indica, às Reales Personas. Em março de 1834 acabava de ser estreada a regência de Maria Cristina de Borbon e, como resultado, o conflito sucessório que causou a primeira guerra carlista. Mas os feitos que levaram a Francisco a sentar-se na cadeira do garrote vil tiveram lugar meses antes.

Em 14 de janeiro do 34, a companhia pernoitava em San Sebastián de los Reyes, a apenas 18 quilómetros de Madrid. As ordenanças militares recolhiam o direito de alojamento obrigatório às tropas em transito consistente em dar «hospedaje [...] a los militares estando en marcha ó en operaciones y quando en aquellas no hay cuarteles para la tropa ni pabellones para los oficiales». J. D'W. M. Diccionario Militar. [Madrid; Imp. de D. Luís Palacios] 1863
A vizinhança acostumava a protestar por esta obriga, pois em muitos casos os soldados abusavam da hospitalidade recebida e havia roubos, violência ou abusos de todo tipo, principalmente sobre as mulheres. Por isto, as camadas sociais mais privilegiadas estavam liberadas de ter que proporcionar alojamento à tropa.

O caso é que aquele dia 14 de janeiro, a senhora Anselma García apareceu morta no seu domicílio de San Sebastián de los Reyes, com claros signos de ter sido assassinada. O móbil foi, ao parecer, o roubo de 564 rs. ficando imediatamente preso o soldado Francisco Camaño a quem Anselma acolhera no seu domicílio. Ao princípio, o soldado nega-o tudo, mas finalmente confessa ter matado a Anselma de «un golpe en la cabeza con la llave del fusil, y que después la remató con un ladrillo». O acusado levava acima, num taleguito, a quantidade, supostamente subtraída à vítima, de 564 rs.

Em 11 de março, dia da execução, às 10:30 da manhã, ocupam a praça da Cebada de Madrid, «un capitán, tres subalternos y cien hombres del regimiento de infanteria de la Princesa y del de coraceros de la guardia real, un capitán, dos subalternos y 40 individuos». Diario de Avisos. 11 de março de 1834.
Desde a Real Carcel de Madrid até a praça da Cebada, Francisco Camaño foi custodiado por um oficial e vinte soldados, enquanto um sargento, um cabo e oito soldados abriam passo à comitiva. Tal despregue de efetivos, que pareceria mais próprio dum regicida que dum vulgar assassino, tem a ver, na minha opinião, com uma encenação exemplar, cujos destinatários principais são os próprios soldados. O feito de o garrote vil ser público obedece a um fim pedagógico, o de mostrar as consequências de cometer um delito de extrema gravidade. Além disso, e estando implicado o exército, acrescenta-se o fato de estarmos num momento especialmente sensível. Com a primeira guerra carlista encetada, resulta absolutamente prioritário contar com a colaboração da cidadania no alojamento das tropas de passo. Isto já é o suficientemente oneroso e vexatório para a vizinhança como para que crimes como o acontecido em São Sebastián de los Reyes fique sem o devido castigo.

Depois de ser agarrotado, o cadáver de Francisco Camaño foi entregue aos frades da Paz y la Caridad, que o conduziram ao cemitério onde foi desmembrado, como cumprimento final da condena  que lhe fora imposta. É mais que possível que um pedaço do seu corpo, acostumava a ser a cabeça, fosse cravada numa pica num lugar principal da cidade, vila ou aldeia onde foi cometido o assassinato ou de onde era originária a vítima, para escarno final do executado e para exemplo de tudo aquele tentado a cometer um crime semelhante.


Final
Resulta absolutamente repugnante entrar em detalhe de como era o espetáculo público dos cumprimentos da pena capital. Na Plaza de la Cebada queimaram-se bruxas, levantaram-se patíbulos onde hão ser enforcados ou agarrotados delinquentes comuns, salvadores da pátria, intelectuais e deficientes mentais, todos elas mortes igualmente criminais que as que se julgavam. Se alguém quer saber como era o trâmite de agarrotar a uma pessoa recomendo a leitura de Un reo de muerte, um breve relato de Mariano José de Larra, insuperável em beleza e compromisso, escrito apenas um ano depois da morte de Francisco Camaño. Permito-me terminar esta postagem com as mesmas palavras que o Fígaro culmina o seu artigo: «A sociedade, exclamei, ficará satisfeita: um homem já morreu».

Nota: A primeira notícia que teve sobre a existência do tal Francisco Camaño, granadeiro executado no garrote vil em Madrid, foi com a leitura do livro de Daniel Sueiro Los verdugos españoles, Ed. Alfaguara; Madrid. 1971.