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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

nº 241 Um rianxeiro executado no garrote vil.



Em 11 de março de 1834 está a acontecer um macabro espetáculo na madrilena Plaza de la Cebada.  A um homem muito novo vai-lhe ser aplicado o garrote vil, no mesmo lugar em que só onze anos antes fora aforcado Rafael del Riego. O acusado, –confesso e convicto– chamava-se Francisco Camaño (sic), tinha no momento de ser ejecutado 22 anos e era natural de Rianxo, partido de Santiago, Galiza. Os feitos aconteceram do seguinte modo:
Francisco Camaño saíra de instrução com a 3ª companhia do 1º batalhão do 4º regimento da guarda real de infantaria. Devia ser, portanto, um soldado de elite, já que a guarda real era o corpo militar mais próximo, como o seu nome indica, às Reales Personas. Em março de 1834 acabava de ser estreada a regência de Maria Cristina de Borbon e, como resultado, o conflito sucessório que causou a primeira guerra carlista. Mas os feitos que levaram a Francisco a sentar-se na cadeira do garrote vil tiveram lugar meses antes.

Em 14 de janeiro do 34, a companhia pernoitava em San Sebastián de los Reyes, a apenas 18 quilómetros de Madrid. As ordenanças militares recolhiam o direito de alojamento obrigatório às tropas em transito consistente em dar «hospedaje [...] a los militares estando en marcha ó en operaciones y quando en aquellas no hay cuarteles para la tropa ni pabellones para los oficiales». J. D'W. M. Diccionario Militar. [Madrid; Imp. de D. Luís Palacios] 1863
A vizinhança acostumava a protestar por esta obriga, pois em muitos casos os soldados abusavam da hospitalidade recebida e havia roubos, violência ou abusos de todo tipo, principalmente sobre as mulheres. Por isto, as camadas sociais mais privilegiadas estavam liberadas de ter que proporcionar alojamento à tropa.

O caso é que aquele dia 14 de janeiro, a senhora Anselma García apareceu morta no seu domicílio de San Sebastián de los Reyes, com claros signos de ter sido assassinada. O móbil foi, ao parecer, o roubo de 564 rs. ficando imediatamente preso o soldado Francisco Camaño a quem Anselma acolhera no seu domicílio. Ao princípio, o soldado nega-o tudo, mas finalmente confessa ter matado a Anselma de «un golpe en la cabeza con la llave del fusil, y que después la remató con un ladrillo». O acusado levava acima, num taleguito, a quantidade, supostamente subtraída à vítima, de 564 rs.

Em 11 de março, dia da execução, às 10:30 da manhã, ocupam a praça da Cebada de Madrid, «un capitán, tres subalternos y cien hombres del regimiento de infanteria de la Princesa y del de coraceros de la guardia real, un capitán, dos subalternos y 40 individuos». Diario de Avisos. 11 de março de 1834.
Desde a Real Carcel de Madrid até a praça da Cebada, Francisco Camaño foi custodiado por um oficial e vinte soldados, enquanto um sargento, um cabo e oito soldados abriam passo à comitiva. Tal despregue de efetivos, que pareceria mais próprio dum regicida que dum vulgar assassino, tem a ver, na minha opinião, com uma encenação exemplar, cujos destinatários principais são os próprios soldados. O feito de o garrote vil ser público obedece a um fim pedagógico, o de mostrar as consequências de cometer um delito de extrema gravidade. Além disso, e estando implicado o exército, acrescenta-se o fato de estarmos num momento especialmente sensível. Com a primeira guerra carlista encetada, resulta absolutamente prioritário contar com a colaboração da cidadania no alojamento das tropas de passo. Isto já é o suficientemente oneroso e vexatório para a vizinhança como para que crimes como o acontecido em São Sebastián de los Reyes fique sem o devido castigo.

Depois de ser agarrotado, o cadáver de Francisco Camaño foi entregue aos frades da Paz y la Caridad, que o conduziram ao cemitério onde foi desmembrado, como cumprimento final da condena  que lhe fora imposta. É mais que possível que um pedaço do seu corpo, acostumava a ser a cabeça, fosse cravada numa pica num lugar principal da cidade, vila ou aldeia onde foi cometido o assassinato ou de onde era originária a vítima, para escarno final do executado e para exemplo de tudo aquele tentado a cometer um crime semelhante.


Final
Resulta absolutamente repugnante entrar em detalhe de como era o espetáculo público dos cumprimentos da pena capital. Na Plaza de la Cebada queimaram-se bruxas, levantaram-se patíbulos onde hão ser enforcados ou agarrotados delinquentes comuns, salvadores da pátria, intelectuais e deficientes mentais, todos elas mortes igualmente criminais que as que se julgavam. Se alguém quer saber como era o trâmite de agarrotar a uma pessoa recomendo a leitura de Un reo de muerte, um breve relato de Mariano José de Larra, insuperável em beleza e compromisso, escrito apenas um ano depois da morte de Francisco Camaño. Permito-me terminar esta postagem com as mesmas palavras que o Fígaro culmina o seu artigo: «A sociedade, exclamei, ficará satisfeita: um homem já morreu».

Nota: A primeira notícia que teve sobre a existência do tal Francisco Camaño, granadeiro executado no garrote vil em Madrid, foi com a leitura do livro de Daniel Sueiro Los verdugos españoles, Ed. Alfaguara; Madrid. 1971.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

nº 239 Por que ninguém fala de Daniel Sueiro?


Para Alejo Amoedo,
com  abraço fraterno.

No ano 17 publiquei um artigo sobre Daniel Sueiro e um conto seu baseado no surrealista prémio chamado o «duro avecrénico». Falo com muitas pessoas de grandes conhecimentos literários e, consequentemente, ampla cultura geral. Porem, apenas encontro a ninguém que conheça a obra deste fabuloso contista e romancistas corunhês. Com a feira montada arredor da exumação dos restos do ditador Francisco Franco achei que o seu nome estaria quotidianamente na boca de repórteres, tertulianos e demais agentes mediáticos, mas nem assim. Resulta incrível que com tanta exibição de citas, ditos e disques, ninguém –ou quando menos a mim não me chegou– lembrara a ampla bibliografia do Daniel, escrita quando não só se precisava para publicar dum editor com dinheiros, também era preciso muito valor, ou como diriam na altura aqueles hominhos de bigodinho e óculos escuros , «tenerlos bien puestos».
Pois bem, ainda que só seja para presumir de biblioteca coloco aqui alguns dos meus imprescindíveis sueiros.

Os meus sueiros.

Sobre Franco, o Valle e o statu quo franquista.

La verdadera historia del Valle de los Caidos. Sedmay ed; Madrid, 1976

Eis uma leitura imprescindível antes de falar sobre o que a construção do Valle supus de projecto magalômano, delírio de ditador complexado, cumplicidade da igreja... Tem a virtude, ademais, de ir colocando no seu sítio todas as lendas, rumores, diferentes opiniões sobre algumas boas coisas que teve a construção, como a remissão de dias de cárcere aos presos que lá "livremente" acudiram a trabalhar. O livro termina com o relato dum incidente que houve na basílica, quando um moço falangista chama de traidor a Franco e também do único atentado que na altura sofrera o monumento. Certamente, a última frase –lida na distância parece premonitória– da ultima página do livro de Sueiro foi tirada duma brochura distribuída pela Defensa Interior, grupo que reivindica o atentado: «Franco, ni en tu tumba te dejaremos descansar tranquilo». Quiçá, diria eu, porque a tumba onde o deitaram não era sua.

1ª ed. História del  Franquismo Argos Vergara; Madrid 1978

Os quatro tomos da História del Franquismo de Sueiro e Diaz Nosty deveram ser, na altura, um impacto para muitas pessoas que mesmo sendo antifranquistas, foram educadas no culto ao ditador, com todos os tópicos que dele se diziam. Nada mais contraditório que essa imagem do homem austero combinada com a do grande espoliador do património nacional. Espanha era sua, continente e contido. Imprescindível a este respeito o artigo titulado "El gran espólio":

«La orden creadora del Consejo de Administración del Patrimonio Nacional (4 de abril de 1942), organismo autónomo con plena personalidad jurídica dependiente directamente de la jefatura del Estado, insistía reiteradamente en las facultades personales y omnímodas del mismo Jefe del Estado, don Francisco Franco, sobre todos esos bienes. Este Patrimonio nacional, que se convertiría durante un tiempo en coto privado o feudal familiar de Franco y sus allegados, secular Patrimonio de la Corona con anterioridad, sólo muy pocos años había podido mantenerse como Patrimonio de la República». p. 225-226.

Que dom Francisco se conformava com pouca coisa para viver fica claro noutro parágrafo da Historia do Franquismo:

«Uno de los bienes comunes –bien que adscrito al Patrimonio Nacional– más directa y personalmente puestos "al uso y servicio del Jefe del Estado" fue el Monte de El Pardo, un propiedad de diecisiete mil hectáreas que Franco convirtió en el más cerrado de sus cotos privados, después de que la República lo hubiera abierto, por el tiempo que pudo, al uso y disfrute del pueblo. no sólo estaba dedicada tan extensa finca a las diarias batidas cinegéticas de Franco y sus allegados o colaboradores más fieles –más de un centenar de puestos fijos de tiro quedaban allí a su muerte, amén de un Pabellón de Caza levantado en 1973 y que casi no llegó a estrenar–, sino que en sucesivas etapas fueron segregadas de ella enormes parcelas de terreno que iban a dedicarse a lujosa zona residencial de las clases dominantes y a instalaciones de lúdica expansión para las mismas».

Estos son tus hermanos Ed. Zero S.A.; Madrid, 1977

Na página que normalmente ocupam as dedicatórias dos livros, uma nota informa ao leitor das vicissitudes do, na minha opinião, melhor romance de Sueiro:

«Esta novela fue escrita en España en el año 1960. Se publicó en México, en Ediciones Era, en 1965. Y ahora [1977] aparece por vez primera en edición española».

É claro por que foi proibida uma obrinha que fala do regresso dum exilado à sua terra e da acolhida fria, quando não hostil, que recebe dos que aqui ficaram e usurparam os direitos dos vencidos. Na segunda edição espanhola de Estos son tus hermanos, o próprio Sueiro faz no prólogo uma acertada reflexão:

«Pues bien: los censores, incluso los de más alto nivel ministerial –en la época en que el paternal consejo quiso enmascarar el "cerco por hambre" a que también quiso condenársenos–, me decían que esta novela atentaba contra la convivencia de los españoles. Tuvo que ser leída inicialmente por los propios exiliados, en Máxico; no eran ellos ni era yo los que atentábamos contra la convivencia nacional: ni ellos con su legítimo y largamente insatisfecho derecho de regresar a llas raíces, ni yo denunciando los hipócritas cuando no alevosos recibimientos que los paladines de la convivencia estaban dispuestos a dispensarles parapetados tras sus "bunkers", o el que podían darles esas otrs criaturas del egoísmo y el odio, también del temor, que cruzan por las páginas de sta historia sin que siquiera corresponda a su autor el mérito de haberlas inventado. Ni ningún otro, tal vez». p. 13

A história que se conta no romance é como a de tantos outros: Antonio Medina, um moço conquense de 23 anos, tem que exilar-se em 1939 a França. Em 1952 retorna a uma cidade que já apenas conhece, morando na casa do seu irmão Pascual. Em realidade, aquela casa era tão sua como de Antonio. Mas, chegou com ver o rótulo da loja que fundara seu pai, e com a que agora corria Pascual, para saber que as coisas mudaram. Quando ele teve de exilar-se o texto do rótulo dizía: Manuel Medina e hijos. Agora esse hijos perdera o s final.
Toda a novela é o relato da hipocrisia de Estado que vendeu uma abertura das fronteiras e ofereceu abrigo a todos aqueles exilados sem delitos de sangue. Uma imagem cara ao exterior de bondade e misericórdia, mas sem restituir direitos, nem voltar a muita gente o que de seu lhes pertencia.
Este diálogo descreve perfeitamente a política cosmética do Franquismo:

«–Supongo que estará usted decidido a quedarse entre nosotros para siempre –dijo el policía, por último, mirándole con curiosidad.
Tampoco ahora respondió Antonio. Le contemplaba, a su vez, con la misma curiosidad, idéntico detenimiento.
–No me fío de usted –le dijo al comisario, por fin.
–La desconfianza es recíproca, querido amigo. Pero, de momento, yo no hago más que cumplir con mi deber, evitar que a usted le rompan los huesos. ¡Pues no íbamos a dar que hablar por ahí...! Figúrese.» p. 249

Cuentos Completos. Alianza Editorial; Madrid 1988

Resulta fácil de dizer que Daniel Sueiro é, como escritor, um contador de histórias. A sua literatura era perigosa para o regime não pelo seu conteúdo político, filosófico, vermelho ou mason, era só por descrever uma realidade que todos conheciam, mas que não se atreviam a descrever. Mesmo nos livros históricos acima expostos, encontramos mais dados, citações ou trechos de entrevistas que a própria tese do autor, com todo o que isto nos diria da sua base ideológica.
Entre os seus contos há autênticas alfaias literárias, como o titulado La carpa que descreve as misérias dos cómicos da légua, seres de «caras pintadas, narices postizas, apolillados uniformes de santones y generales, billetes falsos, versos de Zorrilla, gritos, trampas, palabras, palabras, palabras...». p. 79
De todos eles, o que mais abalou a minha alma, ou o que seja que temos ai dentro para alertar-nos sobre o belo, foi El regreso de Frank Loureiro. Trata a história dum homem que retorna à sua terra desde Nova Iorque, lugar ao que emigrara por necessidades económicas. Saíra com 16 anos e tornava passados os 40 a um lugar que viveu esse trânsito lento da sociedade quase feudal das primeiras décadas, a um capitalismo atrofiado de metade de século. Mas Frank é um perdedor. Como lhe passara a Antonio, o protagonista de Estos son tus hermanos, aqui já ninguém aguardava por ele. Por isso foi um texto incómodo, porque no 1964, ano da sua publicação, a emigração era património do estado, uma magnífica maquina governamental para trocar pobres por divisas. Então, como agora, não é?
Da leitura de El regreso de Frank Loureiro saiu uma pequena partitura para piano que amavelmente foi interpretada pelo meu caro amigo Alejo Amoedo. Não é uma partitura excelente, mas acho que transmite com precisão o que o meu coração sentiu quando fiz a primeira leitura. Porque tenho a certeza de que todos os grandes contos têm a sua melodia. 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

nº 207 O duro avecrêmico.


Poderia construir o relato da minha vida utilizando como fio condutor as sucessivas obsessões bibliófilas que fui padecendo ao longo dos anos. Em realidade, o meu interesse não é tanto pelos volumes quanto pelos textos e dados que eles contêm. E dizer, careço de qualquer indício de fetichismo livrófago, um vício que contribuiu em grande medida à formação do universo criativo de autores tais como Borges, que como é sabido foi um autêntico pirado da bibliofilia. Ele, por exemplo, adorava um exemplar da primeira tradução ao inglês, 1840, de As mil e uma noite de E. W. Lane, citado em vários dos seus contos. A mim valeria-me uma edição cubana –dessas que parecem feitas em papel comestível– com tal de que a tradução fosse especialmente brilhante ou as notas a rodapé estivessem iluminadas por uma erudição irrebatível.

A minha atual obsessão chama-se Daniel Sueiro (1931-1981). Estou comprando os seus livros por todo o Estado Espanhol a preços mesmo inferiores aos dos gastos de envio. Tudo começou com a leitura dum conto: El regreso de Frank Loureiro e aí continuo, lendo e gozando dum sincero cronista da derrota.
Suponho que em breve publicarei algo mais elaborado, mas, por enquanto, limito-me a comentar uma anedota curiosa. La Criba foi publicado em 1961 por Seix Barral e conta a história de «un pobre diablo al que atenazan las circunstancias». Quase no final do livro, o protagonista encontra-se acurralado pelos gastos sanitários que durante o embaraço e posterior nascimento do seu primeiro filho foi acumulando. No médio do seu desespero compra um jornal no que lê a seguinte notícia:

«Sacó unas monedas del bolsillo y compró un periódico. Lo fue leyendo, andando, por la acera, ojeándolo, leyendo los titulares. […]
Un anuncio que venía en el periódico, perdido en el fondo de una página, le llamó la atención. Lo había visto ya, pero sólo ahora se detuvo y lo leyó detenidamente. “El duro avecrémico vale ahora 80.000 pesetas”, comenzaba. “Es de la serie “F”, de mucha circulación”.» p.155

O duro avecrêmico tinha o valor trocável de muitos duros, 80.000 pesetas da Espanha autárquica na que um quilograma de pão custava 7,50 pts e umas 4 pts um litro de leite. Mas como o bilhete com o número de série exato não era fácil de encontrar, o prémio aumentava e em janeiro do 57 já andava por cento vinte mil rúbias.
Gallina Blanca, a empresa promotora do concurso, nascera em Catalunha em plena Guerra Civil. O seu invento consistente em cubos de caldo concentrado a base de carne argentina e extrato variado de legumes e hortaliças converte-se num produto básico na população faminta da pós-guerra. É paradoxal, e suponho que casual, que o condutor do programa da emissora da S.E.R. onde se desenvolvia o concurso «Duro com el duro», Juan Carlos Thorry (28 de junho de 1908, Coronel Pringles,  Argentina - 12 de fevereiro de 2000, San Antonio de Padua, Merlo, Argentina) tivesse a mesma origem que a carne dos cubos concentrados.

Desconheço –e olhem que procurei por toda a rede!– se alguma vez alguém se levou o prémio, mas o duro avecrêmico é, sem dúvida, uma magnífica ilustração para a literatura de Sueiro, cujo fundamento não é outro que a descrição minuciosa dos sonhos irrealizados.


Daniel Sueiro