Heterodox@s galeg@s 02
Na década de 1960, no Estado espanhol houve uma eclosão de festivais de música que seguiram o modelo do de San Remo, Itália. A celebração desses eventos logrou descobrir novas figuras da canção, além de agregar alguns sucessos eternos ao repertório. Mas, por trás do puramente artístico, encontramos uma luta entre localidades e áreas geográficas da Península, na procura de aproveitar o chamado milagre turístico espanhol. Assim, os Festivais de Benidorm, do Mediterrâneo ou de Maiorca contavam com o apoio das respetivas câmaras municipais, quando não eram diretamente organizadas por elas. Inclusive, como em Maiorca, as canções tinham a obriga de promover explicitamente os atrativos turísticos da ilha.
Finalmente, o estudo dos festivais é um magnífico observatório para a análise do controlo político exercido por uns e por outros, na aparentemente monolítica ditadura de Franco. O festival de Benidorm, por exemplo, foi criado pola Rede de Emisoras do Estado (REM), grupo controlado polas FET y de las JONS, dependendo diretamente da Secretaria General del Movimiento. Este controlo absoluto durou até à chegada de Manuel Fraga Iribarne ao cargo de Ministro de Información y Turismo. Então, o dinheiro veio deste ministério para quem o lema “divisas para o turismo” era um dogma de fé.
É curioso como um Estado democrático -também em aparência-, como o atual, recupera do ostracismo esta festa com ADN franquista. Igualmente paradoxal é a ingenuidade, se é que houve, do grupo de Tanxugueiras em tentar vencer no referido concurso. O Benidorm Fest é um evento que continua a ser controlado polo REM, chamemos-lhe agora TVE, com a despesa de dinheiro público em benefício das mesmas zonas turísticas de sempre e cum alvo estético ou musical previamente determinado. Nada importa nem o público, nem a crítica, nem a qualidade do produto. O único interesse é a promoção de uma ideia de Estado onde os alalás galegos são supérfluos em democracia, como já foram supérfluos, em ditadura, os lalalás em catalão.
Na Galiza também tivemos os nossos Festivais, algum tão meritório como o do Minho de Ourense. A sua primeira edição ocorreu em 1965, sendo apresentadas 55 canções em espanhol, 19 em português e 17 em galego. É preciso dizer que o jornal La Región fez campanha para que no festival fossem divulgadas letras em galego, numa altura em que apenas Los Tamara tinham dado o passo de cantar na nossa língua, e o casulo de Andrés do Barro ainda estava por eclodir.
Esther Gloria Prieto, pioneira.
Esther Gloria Prieto Alcaraz (Madrid, 31/10/1930*- Valencia, 24/04/2012) nasceu em casa de artistas, sendo seus pais Julío Prieto Nespereira e sua mãe a cantora Paquita Alcaraz. Do pai existem numerosas monografias, catálogos e artigos, sendo desnecessário deter-nos nele. Basta dizer que foi um dos maiores gravadores da pintura espanhola do seu tempo e que era irmão da compositora e pianista Obdulia Prieto.
* Os dados de nascimento e óbito são retirados de sua certidão de óbito.
Menos conhecida é a figura de Paquita Alcaraz, cançonetista que, apesar da sua curta vida, desenvolveu uma carreira repleta de acontecimentos notáveis. Estreou o filme mudo Alma rifeña (1922) de Juan Buchs e foi Teresa na estreia de El huesped del Sevillano do maestro Serrano.
Após se casar com Julio Prieto Nespereira (1930), a cantora deixou os palcos por um tempo. O fato de ter engravidado imediatamente deve tê-la incentivado a abandonar as tábuas por cerca de três anos. Finalmente decide regressar, mas já não como estrela de teatro musical, mas como liederista, acompanhada apenas por um piano e em espaços íntimos e intelectualmente elevados. Seu último concerto acontece no Lyceum Club Femenino o 30 do março de 1933. Uma despedida carregada de simbolismo, pois o 27 de setembro do mesmo ano morre de septicemia. Gloria tinha, na altura, três anos.
Compositora dos Festivais da Canção.
Esther Gloria Prieto era madrilena de nascimento, educou-se em Madrid e o seu trabalho como montadora musical de TVE sempre se desenvolveu fora da Galiza. Não sei se podemos considerá-la galega porque o pai o fosse. Mas o certo é que sempre manteve uma relação com Ourense, onde vivia a sua família paterna e com Pontedeume, estância de veraneio e vila na que morreu e foi enterrado seu pai. Se a considerarmos galega seria, muito provavelmente, a primeira compositora profissional de canção ligeira do nosso pais.
Arquivo de TVE La importancia de llamarse Ernesto. Estudio 1 |
A sua atividade estará limitada a festivais de música, concursos nos quais podiam ser recebidos importantes prémios em dinheiro; valores que facilmente podiam variar entre trinta e cem mil pesetas na época. Além disso, a canção que ganhava um prémio ou simplesmente tinha sido selecionada, acostumava ser gravada num álbum ou impressa a sua partitura, algo que gerava royalties de imediato.
Aqui fica uma pequena retrospetiva da presença de Gloria Prieto em algum destes festivais.
-Ao primeiro festival ao que acode Gloria é o da Canción de Madrid em 1961, onde obteve o 5º prémio com Sólo quiero olvidar, tendo como letrista a Amado Regueiro Rodríguez, o mesmo que fez a adaptação livre do texto do Hino da Alegria, popularizada por Miguel Rios.
-Um ano depois, apresentou as suas Canciones Tristes ao prémio Montes do Festival da Canción Gallega de Ponte Vedra, obtendo uma menção honrosa. Embora o género musical deste concurso pontevedrino fosse radicalmente oposto aos até agora mencionados, em alguns aspetos da sua organização eram muito semelhantes.
-Huella de ti, cantada por Gelu, foi pré-selecionada para o Festival de Eurovisión de 1962 e gravada por Los 4 de Barcelona e Elvira. Também foi impressa pela editorial Quiroga.
-Em 1963 é finalista em Benidorm com Lluvia, da que também era autora da letra. Foi gravada por Fina Galicia para Iberfón.
-7 de julho de 1963. Estreia no Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra de Canções Tristes, pola soprano Carmen Pérez Durías e da pianista Carmen Martín.
-Em 1965 participou no I Festival del Miño com La voz del río, letra de M. Martínez Remis, poeta madrileno, argumentista de filmes espanhóis de baixa qualidade e letrista de alguns sucessos musicais, na voz, por exemplo, de Sara Montiel. Com esta peça consegue o segundo prémio.
-Para a segunda edição do Festival del Miño (1966) apresenta três novas canções: Palabras gastadas e La niña del río, novamente do letrista Martínez Remis e Todo lo que yo sé, com letra e música sua. Com Palabras gastadas ganha o segundo prémio. Foi gravado para a discográfica Berta por Elvira.
-IV Festival del Miño (1968) De tu mano aprendí, letra e música de Gloria Prieto.
-II Festival de la Canción Infantil de TVE. Apresenta duas cançoes, Vamos a contar mentiras, música e letra sua, cantada por Ana Kiro e El Conjunto Sideral, com letra de Marisa Medina, interpretada por Sabrina.
-No Festival de Eurovisión de 1969, na edição que finalmente ganhou Salomé, Gloria poderia ter presentado Mil veces volverías, con letra da televisiva Marisa Medina, mas este é um dado que não posso confirmar.
As divas de Gloria Prieto
Resulta difícil rastrear todos os cantores e cantoras que incluíram músicas de Gloria Prieto nos seus álbuns. Alguns dos seus sucessos foram registados por diversos artistas, a maioria com uma vida profissional não muito longa.
Cantoras não galegas
- Elvira
De todas as suas intérpretes, foi com a cantora valenciana Elvira -que para que não houvesse dúvidas sobre a sua origem era conhecida como La Voz de Naranja- com a que manteve uma relação pessoal e profissional mais intensa. Elvira acabou fazendo parte da família, já que Gloria foi madrinha da sua filha, a dançarina Esther Ponce.
Huella de ti, neste caso cantada por Elvira, é um slow-rock com orquestração de big band. A "voz de naranja", caricaturada desta volta com propositado estilo anglo-saxão, dificulta, em boa medida, a compreensão do texto. Sendo o arranjo musical mais do que correto, e mesmo, a meu ver, não desprovido de beleza, questiona-se como soaria esta peça com a intervenção de gargantas menos maquilhadas como a de Fina Galicia. De qualquer forma, em 1962, esta canção não teve sorte na pré-seleção do Festival de Eurovisão. Ela foi defendida por Gelu de Granada, terminando em último lugar dos dez competidores. Não sei se conta como desagravo patriótico saber que a vencedora, Llámame de Victor Balaguer, ficou em último lugar na fase final realizada no Luxemburgo, sem receber um único ponto do júri.
Palabras gastadas mostra algumas chaves do que será o estilo preferido nas composições de Gloria, principalmente uma maior influência da música francesa sobre a anglo-saxónica ou italiana. Se o texto fosse em francês poderia passar por um gémeo em estilo de Ma vie de Alain Barrière ou Capri c'ést fini de Herver Vilard.
- Sabrina
Com as demais músicas selecionadas para o II Festival da Canção Infantil da TVE, 1968, a cantora Sabrina gravou El Conjunto Sideral, música de Gloria e letra de Marisa Medina. Sabrina era presença habitual nos festivais de verão espanhóis, entre os quais, como não poderia deixar de ser, o do Miño (Ourense).
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Ora, sem comentários...
As nossas cantoras
Mas no que diz respeito aos interesses galegos, as suas canções são interpretadas polas mais grandes do seu tempo: Fina Galicia e Ana Kiro.
- Fina Galicia
Como já tenho contado neste mesmo blogue, Fina Galicia foi uma das triunfadoras do V Festival da Canción de Benidorm. A artista corunhesa gravou vários EP, com canções próprias do ambiente ye-ye e aperturista da época. Numa compilação das vinte canções finalistas do Festival, Fina Galicia grava LLuvia de Gloria Prieto.
Em Lluvia pudemos ouvir a bela e afinada voz de Fina Galicia, madura apesar da juventude e, ao contrário do que é habitual nos restantes participantes do evento levantino, muito natural. Outra característica das músicas de Gloria Prieto e presença de introduções instrumentais, por vezes bastante longas, destacando-se algumas de piano, criando efeitos sonoros, como neste caso, evocando nas notas mais altas do teclado o som da chuva batendo no chão ou no vidro.
- Ana Kiro
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De tu mano aprendí começa com uma bombástica introdução de piano solo, um tanto Tchaicovskiana, preludiando à voz da Kiro num estilo de canção e desempenho que não a favorece em nada.
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Em Vamos a contar mentiras, a voz de Ana Kiro apresentasse-nos muito próxima, com um carácter otimista, sendo o resultado uma escuta agradável que transmite vibrações muito boas.
- Madalena Iglésias
Madalena Iglésias (Lisboa; 24 de octubre de 1939-Barcelona; 16 de enero de 2018), nascida Madalena Lucília Iglésias do Vale, era, como Glória, meio galega. A sua mãe foi a pontevedrina Lidia Garrido Iglesias, refugiada em Portugal devido ao golpe de estado franquista**, que após casar com o almadense José Rodrigues do Vale, vai morar na freguesia portuguesa de Cecilhas. Bayo Veiga, Luís O Pharol, nº 28, ano 11, Novenbro de 2015. p. 3
** Dados oferecidos por Madalena Iglésias em entrevista concedida por Júlio Isidro ao programa Inesquecível da RTP.
Madalena é um ícone da canção, da rádio e do cinema portugues, com uma grande relação com os meios artísticos espanhóis nos anos da sua atividade profissional, décadas de 60-70. Prova disto é que a sua primeira presença na rádio espanhola fosse da mão de Bobby Deglané, sendo apadrinhada por Lucho Gatica e Paquita Rico.