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domingo, 10 de março de 2019

nº 230 Lela. Uma canção à procura de um autor. III

III

A autoria de Lela é um acontecimento mediático digno de estudo. Cada pouco tempo aparece na imprensa alguma nova achega ao fenómeno com titulares tão dramáticos e inexatos como o aparecido apôs da morte de Miguel de Santiago: "El misterio de Lela se va a la tumba" (La Voz de Galicia). As informações acostumam a misturar tudo, esquecendo que opiniões aparentemente contraditórias podem, em ocasiões, simplesmente referir-se a fatos diferentes. Explico-me. 
A respeito de Lela, ou de qualquer outra peça musical, há que diferenciar entre o autor legal e o autor real. A dia de hoje, e depois de muitas horas estudando e investigando, –quase como um detetive ou arqueólogo musical– eu não tenho a menor dúvida que o autor legal de Lela é Mato Hermida, e esta postagem pode afundar nisto ao referir-me, mais adiante, às diferentes gravações históricas. A respeito do autor real só posso dar opiniões, e eu não sou muito disso. Contudo, Mato Hermida pôde ser o autor primário, mas houve outras pessoas, como o próprio Carlos Núnhez, como é óbvio, a quem esta peça deve o seu universalismo.
Mas comecemos por falar dos registos discográficos de Lela.

No princípio está Uruguai.

A primeira questão que cabe sublinhar é que na estreia absoluta de Os velhos não deveram de namorar em 1941, o coro de boticários interpretou Lela usando a melodia de Fonseca, um tema da tuna compostelana de fins do XIX. Isto é muito importante porque esta melodia foi a escolhida por Castelao e, ainda mais, foi a que Castelao tinha na sua cabeça quando compus a letra. Dito doutro modo, Castelao utilizou uma peça de autor desconhecido –suspeitamos que pudera ser de Manuel Valverde– copiando literalmente a melodia e parafraseando a letra ou baseando-se nela para escrever o seu canto de amor a Lela. Parece ser que o desenhador e político rianxeiro era muito afeiçoado a parodiar peças conhecidas mudando-lhes o texto poético. Mato Hermida fez o processo a inversa, conhecia a letra e teve que coloca-la num novo texto musical. 
Em qualquer caso, em 30 de maio de 1941, cantou-se por primeira vez, que nós saibamos, o Lela/Fonseca em Rosario, num concerto do coro Ultreia dirigido por Emilio Pita e em presença do próprio Castelao. Em agosto do mesmo ano é a estreia bonaerense dos Velhos e no mês de outubro a obra viaja a Montevideu. Aqui, em Montevideu, terá lugar a primeira gravação da Lela de Castelao.

a) O primeiro registo discográfico de Lela foi realizado nos estudos de Sondor de Montevideu, empresa fundada em 1938 por Enrique Abal Salvo, uruguaio neto do pontevedrês de São João de Poio, Juan Abal Arosa. A gravação, protagonizada pelo Coro Galego de Montevideu e registadas em discos de 78 r.p.m., foi efetuada em 22 de outubro de 1954. Segundo informação da Sondor, os discos foram comercializados com sobre genérico da empresa.
A versão do Coro Galego de Montevideu é a Lela com melodia de Fonseca e uma letra diferente, ainda que com muitas similitudes, à escrita por Castelao. Como curiosidade dizer que o coro está acompanhado por um acordeão, resultando um conjunto formosíssimo que paga a pena escutar com atenção. A primeira vez que teve aceso ao tema foi graças á amabilidade de Oscar Ibáñez que me mostrou a cópia fornecida pela Deputação de Ponte Vedra. A própria deputação editou-a posteriormente num disco titulado Galicia en 78 rpm.

b) Em ordem cronológica, o seguinte registo foi feito pelo coro Cantigas e Agarimos. Este exemplar é fundamental para a nossa história. Gravado em 1977 ou 1978, em vida portanto de Mato Hermida e Miguel de Santiago, exibe os seguintes créditos na sua contracapa:


Como se pode apreciar, Mato Hermida aparece aqui como autor da música. Este disco foi registado na SGAE, pelo que a entidade tinha, quando menos desde esta época, informação sobre a autoria da peça.
A Lela de Cantigas e Agarimos tem acompanhamento do grupo de pulso e corda da Tuna Universitária, o qual constitui outro dado de grande interesse para a nossa investigação.


c) Uns anos depois, em 1982, uma nova gravação tem como protagonista à Tuna de Santiago. O selo Dial, com produção de Dial Limoeiro, imprime um disco aproveitando a celebração do Ano Santo Jacobeo no que se afirma a propósito da tuna «su buena calidad musical, de amenas rondas y sobre todo de su excelente humor y calor, por supuesto, siempre acompañada de galantería con que estos jovenes tunos y "tunantes" hacen gala ante una bella damisela». Toda uma declaração de princípios. Mas o caso é que nesta gravação há versões duma qualidade mais que respeitável, como A Muinheira de Chantada, verdadeiramente excecional. Na cara B, justo depois de Bajo la doble águila, de Wagner, um clássico das bandas de música de princípios do século XX, e antes de Fonseca aparece Lela de R. Mato Hermida e A. R. Castelao.


A voz solista de Manolito o Tuno, Manuel Vicente Blanco Iglesias, que na altura era um mocinho de 45 anos, tem o tom e a textura perfeita para o boticário imaginado por Castelao. Mas o dado quiçá de maior importância está nos créditos onde figura o nome do assessor e arranjador musical.


Como se vê na imagem anterior, fragmento da contracapa do disco da Tuna Compostelana, o diretor musical foi o guitarrista Isaac Vázquez Alvite, nascido em Compostela o 14 de novembro de 1942 e finado em 21 de agosto de 1999. De estar vivo hoje, ele seria a pessoa melhor informada para aclarar qualquer dúvida sobre a génese e desenvolvimento do fenómeno Lela. Neno prodígio, conheceu a Andrés Segovia nos cursos de Música em Compostela, sendo desde muito novo colaborador e diretor da rondalha de Cantigas e Agarimos, coro denominado durante o franquismo, Rosalia de Castro. Formou e dirigiu a numerosos tunos, pelo que ainda que não apareça nos créditos do disco de Cantigas que comentamos no apartado b), ele foi o responsável, com toda certeza, do grupo de cordas. 
Por último, resulta verdadeiramente curioso que Lela e Fonseca vaiam juntinhas, uma a continuação da outra, como se os tunos fossem conscientes da relação que existe entre ambas peças.


d) Só um ano depois da gravação do disco da estudiantina compostelana aparece Nós de Xocaloma. O grupo de Carvalho faz uma versão de Lela com a voz inconfundível de Dolores Platas. Nele apreciam-se ainda os ecos do arranjo estudantil de Vázquez Alvite, e não podia ser doutro modo. 
Um dos fundadores de Xocaloma, o prestigioso psiquiatra Xoán Carlos Díaz del Valle, foi no seu dia tuno e aluno de Alvite. O doutor Díaz lembra que ele mesmo levou a peça ao grupo tal e como a apreendera na tuna. Suponho que é por isso que na contracapa do disco os créditos de Lela dão-nos uma nova surpresa, já que quem aparece como autor é Isaac Vázquez Alvite, sendo a peça registada na SGAE com o código 5.208.123.


e) E, porfim, em 1996 chega um dos mais grandes sucessos da história da música galega, o disco A Irmandade das Estrelas, do gaiteiro viguês Carlos Núñez. O seu Lela, na voz de Dulce Pontes, é já um ícone da nossa música, o grande pulo que lhe faltava a canção de Castelao para universalizar-se. Mas é também este disco a origem de toda a polémica sobre a autoria da melodia do que no seu dia pretendia ser tão só um coro de boticários, evocador e saudoso. Depois duma investigação exaustiva e de ter-se entrevistado com as pessoas mais significativas desta história quase de serie negra, Carlos Núñez omite o nome de Mato Hermida ou de qualquer outro autor nos créditos. Concretamente o que aparece é um desolador «9) Letra: Alfonso R. Castelao». Lembremos que em 1996 ainda estava vivo Vázquez Alvite. Por último dizer que na SGAE existe uma Lela registada com o número 3.259.928 cujos autores seriam José Miguel Sánchez Chouza (Miguel de Santiago) e Alfonso Daniel Rodríguez Castelao, e da parte legítima correspondente a arranjos, Carlos Núñez Muñoz. 

Para concluir.

Depois deste repasso à discografia leliana gostava de fazer algumas aclarações. 
Em primeiro lugar eu já declarei que na minha opinião não tenho dúvida do autor legal. Mato Hermida tem da sua parte a tradição e a documentação necessária para que ninguém duvide sobre a sua autoria. Outra coisa é a analise que podamos fazer da sua obra desde um aspeto puramente musical e na evolução e popularização que esta sofreu logo de ser estreada por Cantigas na representação de Os velhos
Acostuma-se a dizer que Mato Hermida desconhecia as músicas que se interpretaram na representação bonaerense. Desde um ponto de vista estritamente musical isto é de todo impossível. Só há que ver o estudo paradigmático de Fonseca e Lela (postagem nº 201), para comprovar como ambas estão profundamente filiadas. Não é possível compor o Lela de Mato Hermida sem ter como patrão o Lela/Fonseca. Obviamente não estou a falar de plágio, palavra que escutei nalguma conversa apoiando o interlocutor o seu discurso nas minhas investigações. Em todo caso seria tão plagiador como o Chaikovski do Capricho italiano ou o Beethoven das variações Molinara. Colher um tema que com certeza considerava popular como Fonseca e parafrasea-lo ou simplesmente inspirar-se nele é algo absolutamente legítimo e nada pejorativo para o prestígio de uma obra.
Dito isto, é evidente que a Lela de Mato Hermida não teria chegado a ser o que é hoje de não passar pelo crisol compositivo de Isaac Vázquez Alvite. Não seria de espantar mesmo que no mesmo intre em que Mato compunha o coro dos boticários conta-se com o assessoramento permanente de Alvite. Seria algo natural sendo um o diretor do coral e o outro, rondalhista colaborador da entidade polifónica. Para que transcendesse à estreia dos Velhos em 1961, foi muito importante que a tuna a incorporasse ao seu reportório e a popularizasse nas rondas santiaguesas. Graças à tuna é que chegou a Xocaloma, grupo que gozou de grande popularidade na altura. Eu mesmo, um músico iniciado nos afastados oitenta, foi ao grupo carvalhês a quem escutei por vez primeira o Lela de Castelao.
O debate que hoje continua a haver sobre o autor de Lela existe só porque Carlos Núñez a incluiu no seu trabalho A Irmandade das Estrelas. Ninguém se ia pelejar pelos créditos do disco de Cantigas ou da tuna, mas Carlos elevou a Lela à categoria de standard musical. Dulce Pontes vestiu a velha cantiga incidental com roupagens de ícone universal, modificando a sua melodia nuns giros pessoais que vieram para ficar, soando a melodia de Mato Hermida, na atualidade, mesmo um bocado esquisita. Estou certo que dentro de cem anos Lela seguirá a ser cantada sem que quase ninguém conheça o nome do seu autor e esta polémica será apenas lembrada por algum friki em tudo parecido a mim. Ou é que os que nos nossos tempos cantam La paloma, essa que diz «si a tu ventana llega una paloma...» conhecem que foi composta por Iradier faz mais de 150 anos? Quando o povo se apropria duma canção, os autores ficam apenas como uma curiosidade historiográfica.

Epílogo.

Uma das certezas que teve do grande trabalho de investigação que Carlos Núñez fez na altura sobre a autoria de Lela é que muitas das pessoas às que eu entrevistei ou das que pude consultar os seus arquivos, já foram entrevistadas pelo gaiteiro viguês. Um exemplo disto que acabo de contar foi a visita que Carlos fez a Manuel Vicente "Chapí", guitarrista rianxeiro, autor duma versão original de Lela que nada tem a ver com Fonseca ou a de Mato Hermida. D, Manuel, barbeiro e rondalhista de grande sensibilidade, ficou impressionado com Carlos Núñez ata tal ponto que lhe escreveu um poema algo ingénuo, mas encantador, do qual conservamos uma cópia no Fondo Local de Música do Concelho de Rianxo. Fique aqui como epílogo perfeito à história de Lela, uma canção a procura de autor.




Adenda

Depois de terminado este artigo recebi um presente inesperado. Rafael Abal, proprietário da empresa Sondor de Montevideu, Uruguay, enviou-me o mp3 de Lela, assim como uma imagem da etiqueta e o envelope original. O meu agradecimento mais sincero. Comparto com vós, lembrando que esta é a melodia escolhida por Castelao e a primeira gravação de Lela da que temos conhecimento.



Curiosamente, noutro disco gravado pelo mesmo coro nos estudos Sondor, gravouse Como capeas o vento! uma foliada intimamente relacionada com Rianxo, já que no estribilho podemos escutar: «e vão para a banda do mar, porque em Rianxo algo vão pescar.»



domingo, 6 de março de 2016

nº 201 Lela. Uma canção à procura de um autor. II

II


Na postagem anterior comentávamos como no programa da TVG No bico un cantar salientavam o parecido entre a cantiga de tuna Fonseca e a Lela de 1941. O parentesco é evidente –chega com uma simples escuta para um se aperceber dele– porém, considero que não está de mais fazer uma pequena análise comparativa para ver quanto há de imitação entre estas duas peças, assim como com a Lela de Mato Hermida. Com tal fim utilizo um método ao que denomino análise paradigmático, o qual, obviamente inspirado na linguística, vem a assinalar a relação vertical dos signos, neste caso musicais, que pela sua presença ou ausência indicam um maior ou menor parentesco entre as melodias estudadas.

Para a realização do estudo coloquei num mesmo sistema as melodias, e por esta ordem, de Fonseca, a Lela de 1941 e a Lela de Mato Hermida, transportadas a uma tonalidade comum. As fontes utilizadas para a transcrição da Lela do 1941 são as partituras depositadas no Museo de Pontevedra e para a de Mato Hermida, a publicada pela sua filha(1). De Fonseca não temos uma partitura que podamos considerar canónica, pelo que tivemos que confiar nas que circulam por internet, assim como das gravações comerciais realizadas por diversas tunas. Cabe a hipóteses de que esta Fonseca, em certo modo contemporânea, seja sensivelmente diferente à que Castelao lembrava do seu passo pela estudantina.

Com linhas verdes ficam identificadas as identidades entre Fonseca e a Lela de 1941. A linha descontínua indica que para verificar tal identidade teve de utilizar várias vozes. Com linhas vermelhas marcamos as identidades entre Fonseca e a Lela de Mato Hermida ou entre as três. 

fig.1
 
fig.2
fig3

Para uma melhor compreensão das ilustrações, dividi a partitura em três secções. As partes A e B são tão similares entre Fonseca e a Lela de 1941 que poderíamos afirmar que estamos ante a mesma peça. É na parte C onde a obra estreada na Argentina manifesta uma maior originalidade a respeito da histórica canção de tuna. Mas, que é o que acontece com a Lela de Mato Hermida? Se nos fixamos nos quadrados vermelhos há muitas células comuns às três partituras, até frases quase completas, como nos compassos que vão do 14 ao 16. Especialmente ilustrativo me parece o sol #, segundo tempo do compasso 14, o qual se repete com uma recursividade suspeitosa no 22. Curiosamente, na parte C [figura 3], parece que há um maior parentesco entre a versão de Mato Hermida e Fonseca que entre esta última e a Lela do 1941. Incluso, e isto enreda tudo ainda mais, Mato Hemida faz no compasso 41 uma variante melódica de Fonseca calcada da do Lela de 1941. 

Por se ficasse qualquer dúvida de que Mato Hermida teve presente a valsa estudantil, observe-se a figura 4 onde o sombreado indica as identidades verticais, esta vez não das notas, senão das figuras.

fig.4


Á vista da figura 4, e se só tivéssemos em conta a figuração, poderíamos agora dizer que as três peças são a mesma com apenas ligeiras variações. Mas a velha definição lembrava que a música é a combinação de sons no tempo. Baseando-me nesta elementar equação é que, na minha opinião, a Lela de Mato Hermida resulta uma melodia original inspirada na valsa estudantil Fonseca
Para uma definição do Lela de 1941, melhor escutar primeiro ao próprio Castelao.

A Lela de Castelao.

Não há qualquer dúvida de que quando Castelao fez a letra de Lela soava na sua cabeça a música de Fonseca. Pretendia fazer uma espécie de fake sem muitos dissimulação. Na própria letra resulta evidente a homenagem. 

Fonseca:
Las calles están mojadas y parece que llovió,
son las lágrimas de una niña, por el amor que perdió.

Lela:
Estão as nuvens chorando por um amor que morreu,
estão as ruas molhadas de tanto como choveu.

Manuel Rosales(2), editor da obra narrativa de Castelao, remete-nos nas suas notas a um fragmento do Diario de 1921 cujo contido resulta esclarecedor:

«Iste teatro [teatro do Morcego] é o que ocupa todolos meus pensamentos, tanto que penso faguer disto na primeira ocasión alá na nosa Terra. A côr é a que trunfa por riba de todo e logo o bó gosto do que adapta o asunto. Pensando e pensando sobor disto xa se me ocurriron algunhas cousas pra faguer en Galicia. Velahí van: a) Nunha taberna de cibdade (a decoración ten de sere unha tolería de cousas pra decoración ten de sere unha tolería de cousas dise mal gosto subrime do pobo) ármase un orfeón onde canta o barbeiro o ebanista, o zapateiro o escribente de xuzgado e ainda o mesmo taberneiro pode botar un solo. O que canten ten de sere así como unha caricatura de calquera obra de orfeón: a obra "Oh, Pepita" poño por comparanza de cousa ridícula. [...] c) Nunha noite dun azul ben fondo con estrelas de córes cantan os mariñeiros orredor do lume onde se está cocendo a caldeirada, un canto que ainda podía sere acompañado por un acordeón. d) Duas rapaciñas ben fermosas e vestidas coma no tempo do romanticismo cantan un duo galego. As figuras estarán iluminadas pola luz da lua que entra por unha fenestra. [...] f) Unha parexa ou un grupo poden cantar calquera cousa axeitada; pero han sere os personaxes dun cadro pintado que non teña máis que as cabezas de verdade e tan ben pintadas que parezan brochazos. [...] Deixo apuntadas isas cousas que se me ocurriron. Do noso folklore sairán cousas a milleiros.» p. 107 (3)

Pareceria, portanto, que Castelao procurava com a sua Lela fazer uma caricatura de Fonseca, por ser esta melodia estudantil a que melhor poderia evocar as saudades do boticário. O autor do arranjo musical do 1941 –nós continuamos a defender a tese de que foi Emilio Pita– conhecia de primeira mão o transunto melódico de Lela, que como toda boa caricatura tinha de parecer-se ao original dentro da sua meditada deformação.

A Lela do Teatro Mayo.

Tal é como demonstramos na postagem anterior, uns meses antes da estreia de Os velhos não deberam de namorar no Teatro Mayo de Bos Aires em Agosto do 1941, Lela foi interpretada na cidade de Rosario. A peça foi cantada pelo grupo Ultreya, dirigido por Emilio Pita, com a presença do próprio Castelao. Imagino a sua emoção ao escutar os seus versos naquelas terras argentinas, tão longe dos palcos para os que a obra fora criada. Chegados a este ponto cabe fazer-se mais uma pergunta. Como e quem interpretou esta peça no Teatro Mayo na première de Os vellos...? Pois o certo é que a dia de hoje este aspeto continua a ser para mim uma autêntica incógnita.

A Companhia de Comedias contava com uma boa e experimentada cantante, a própria Maruja Villanueva que deu numerosos concertos como soprano. Além disso o elenco habitual da compoanhia contava com músicos e bailarinos habituais. Não parece, de igual modo, que a ideia de Castelao fosse que cantassem exclusivamente os atores, senão que a parte musical, de grande peso na obra, tinha de estar ilustrada por músicos e dançantes. Neste sentido são fulcrais as palavras duma pessoa que acudiu ao Teatro Mayo esse 8 de agosto do 1941, Eduardo Blanco Amor. Ele aponta a importância que para Castelao tem o elemento folclórico como base do teatro galego, contando coisas tão interessantes como estas:

«Hai, sin dúbida, na obra de Castelao alento folklórico, pro tal como debe sere; ponto de partida, non de chegada; proceso de estilización; raíz e non folla. No seu folklorismo trascendente está a sua galeguidade pura, como obra realizada e tamén como guieiro e proieción. niste senso é moi eispresiva a nota  que pon Castelao ao comezo, afirmando que a escribe "pra regalía do pobo" e "como proba de teatro galego". A sua intención era de "rematar os tres lances pra dar una sesión compreta de teatro, contando coa Polifónica de Pontevedra». p. 91 (4)

O feito de que a partitura que se conserva no Museo de Pontevedra e que supostamente foi executada nessa estreia do Teatro Mayo seja um arranjo a três vozes –as três escritas em clave de sol– indica que foi composta para ser cantada por um coro polifónico. Tal vez o coro Ultreya? 
Na mesma publicação donde tiramos a cita anterior, Blanco Amor termina pronunciando um alegado final verdadeiramente impactante:

«E direi, pra remate, que os "Vellos" non deben reestrenárese senón nas condicións devanditas, na sua realización mais óptima, ou sexa; desenrolo masivo das esceas rítmicas (danza dos espantallos, muiñeira final, etc.) ilustracións musicaes derivadas dos temas folklóricos pro levadas a grandes masas sinfónicas e vocaes; reprodución fidel das carautas e telóns, cuios orixinaes detalladísimos, –liña e coor–, consérvanse de mans de Castelao, etc.

Será moi lamentábel que un apresuramento eilitista ou unha devoción mal entendida levase a alguén a tentar esta faena, desfigurando o pensamento do autor e sin conecer a fondo o que se fixo i-o que non se pudo facere no seu estreno. Por non sere a de Castelao obra común, percisa de meios pouco comúns. Botar man dela sin telos será profanar un belido intento sin froitos para ninguén.» p. 92-93 op.cit.

A grandíssima Maruja Boga, a Pimpinela de Os velhos... morreu em Buenos Aires em 2010. Ela poderia ter despejado a maioria das minhas dúvidas e não deixo de me perguntar se ficará alguém com vida a quem poder interrogar. 

E então, apareceu uma gravação.

Pois sim. O meu caro amigo Ramom Pinheiro Almuinha, depois de ler a primeira parte deste pequeno trabalho, anunciou-me a existência duma gravação americana da Lela, posterior a estreia do Teatro Mayo e anterior a versão galega de Cantigas e Agarimos. O Ramom Pinheiro é uma das maiores autoridades a respeito das gravações históricas,  assim como dos coros de aquém e além mar. Nas suas anotações estava o seguinte apontamento:

  1. (TC 127) O' gaiteiro de Soutelo /Moi ben capeal'o vento. Foliada Int.Coro del Centro Gallego de Montevideo. Dir.: Pepe Rosales y J. de María. Acordeón: D. Treglia Sondor Nº 5582 - A, matriz 3498/9 Montevideo
  2. (TC 166) Lela. "Serenata compostelana" Coro del Centro Gallego de Montevideo. Drt.Pepe Rosales y J. de María. Acordeón D. Treglia. Sondor Nº 5583 - A, matriz 3500 Montevideo
A dia de hoje, e sem descartar novos achados, podemos afirmar que esta é a primeira gravação musical da Lela de Castelao. Como se pode apreciar nos créditos, a gravação correu a cargo do Coro do Centro Galego de Montevideu, e esta circunstância obriga-nos a falar brevemente desta cidade em relação as representações de Os vellos...

Depois da estreia do Teatro Mayo em 14 de agosto do 1941 na cidade de Buenos Aires, a companhia de Maruja Villanueva cruzou o rio para i-la representar a Montevideu, no Teatro Solis, em 8 de outubro do mesmo ano. Foi com motivo deste evento que Castelao gravou uma fonopostal, que pode ser escutada online na página do Consello da Cultura Galega. Após dessas datas não há um registo das vezes que a peça de Castelao foi representada no continente americano, mas deveram ser numerosas. Já na década de 50 nasce o Coro do Centro Gallego de Montevideo, que vai ter uma relação curiosa com Os vellos...

«El Coro del Centro Gallego de Montevideo se crea en el año 1951 y, desde ese momento, serán muchas las oportunidades en que ambas instituciones: (Casa de Galicia y Centro Gallego de Montevideo) actúen juntas con sus respectivos coros y cuerpos de baile. En el año 1953 los coros de estas instituciones cierran la velada de presentación de la película "Sabela de Cambados". Al año siguiente, el Coro del Centro Gallego y el Cuerpo de Baile de Casa de Galicia participan en la comedia musical de Pepe Fernández "Tamén os vellos poden namorarse"». p. 228 (5)

Penso que os créditos do disco do Coro do Centro Galego contêm um erro. O diretor deveu ser este Pepe Fernández, pai da grandíssima cantante galego-uruguaia Cristina Fernández e não Pepe Rosales, como se indica na etiqueta. Tendo em conta, precisamente, a numeração da etiqueta da companhia discográfica Sondor, a gravação realizou-se depois da representação da comédia musical de Pepe Fernández, por volta do 1954/1955. 

Ramom Pinheiro teve a lúcida intuição de que este disco em 78 r.p.m. podia estar na coleção da Deputação Provincial de Ponte Vedra, feito que foi confirmado pelo conservador e magnífico gaiteiro Óscar Ibáñez. Aguardamos poder escutar esta gravação e comprovar se se trata da mesma dos papeis do museu pontevedrino, aquela da estreia do 1941, ou se por contra estamos ante uma nova versão.

Há mais um aspeto que resulta interessante desta gravação: a presença dum acordeonista acompanhante, e isto provoca em mim outra pergunta: houve na estreia de Os vellos... músicos para acompanhar os coros? Tal vez também nas baixadas de telão? E de ser assim, quem foram estes músicos? Infelizmente mais uma vez desconheço a resposta. O que sim sei é que Castelao contava com que os houvesse. 

«Cando a muiñeira soe, ergueranse os espantallos, virán bailando, un após do outro, cara diante, para puntear a muiñeira acompañada por timbales e que, en algúns treitos, non quede máis que un bruído rítmico.» p. 557

Em relação com a presença ou ausência de músicos na première de Os vellos... simplesmente e como colofão a esta segunda postagem –haverá uma terceira?– deixo-vos duas fotografias publicadas na rede em www.culturagalega.org. no álbum dedicado ao gaiteiro Manuel Dopazo. Nelas aparece Manuel retratado em Montevideu com a companhia de Maruja Villanueva em 5-X-1940, foto do arquivo do investigador argentino Norberto Pablo Cirio. Na outra está a Pimpinela Maruja Boga com o próprio Manuel Dopazo, os acordeonistas Moreiras e o actor Tacholas, também do elenco de Os velhos... 

Menbros da Companhia de Teatro Maruja Villanueva
Foto dos Membros da Companhia do Teatro Maruja Villanueva,
na quinta da Casa de Galicia de Montevideo. Entre outros:
1. O tenor Domingo Caamaño; 2. o gaiteiro Manuel Lorenzo; 
3 e 4 a parella de baile Héctor e Sara Dopazo; 5. Carmen Dopazo:
6. Tito Dopazo: 7. Manuel Dopazo: 8. a cantante Maruja Villanueva, 
Isaura Vázquez. Montevideo 5-X-1940 (Arq. Norberto Pablo Círio)


Remate

Terá de haver um epílogo a este trabalho meu. Quiçá um epílogo ao modo de Os velhos não deveram de namorar onde os esqueletos nos contem a verdadeira história duma estreia jamais contada. A mim resta-me falar do contido dessa gravação uruguaia, com quase total certeza a primeira Lela com registo sonoro. Também gostaria de falar doutra Lela, a mais rianjeira de todas, a composta por Manuel Vicente "Chapi" como trilho musical na encenação de "Os velhos..." levada a cabo pelo grupo Airiños de Assados no 1982. Mais isso será doutra volta. 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

nº 200 Lela. Uma canção à procura de um autor.

Lela

Uma canção a procura de um autor.

I

Em sábado 30 de janeiro de 2016 a companhia Fantoches Baj estreava em Ponte Vedra e Rianxo a sua adaptação de Os velhos não devem namorar de Castelao. O esquisito desta produção é que por vez primeira as personagens da peça teatral estão representadas por títeres, não sendo isto um atranco para resultar uma das montagens até hoje mais fieis à ideia originária concebida na altura pelo próprio Castelao. Os decorados, as caracterizações e vestiários dos bonecos, o clima que se cria dentro do pequeno caixão do teatrinho é o fruto de muitos anos de investigação do seu diretor Inacio Vilariño, não só da peça teatral que se representa, senão também da vida e da obra do autor e político rianxeiro, ao que tem dedicado, junto com o desenhador Iván Suárez, uma biografia gráfica em vários volumes.

A produção dos Fantoches Baj é esplêndida, com um elenco de atores veteranos no seu compromisso com o teatro popular: Inacio Vilariño e Luchi Iglesias –Fantoches Baj– e Lucho Penabade e Tero Rodríguez, da companhia amiga Os Quinquilláns. Se a isto unimos o trabalho artesanal e minucioso da desenhadora de vestiário Olga Vieites, desde um ponto de vista técnico e estético, nada a dizer. Mas é que a interpretação, ajustada ao texto originário e sem os excessos e caretas que muitas vezes acompanha a este tipo de representações, considero que foi especialmente acertada. Obviamente a minha opinião pouco importa, já que o teatro não é o meu campo e além de mais, estou muito unido às pessoas que fazem parte da produção tanto por amizade como por laços familiares: a Pimpinela é a minha mulher e mãe da minha filha Dália.

No que sim me considero perito é no referente ao apartado musical. Como músico prático e teórico levo o suficiente tempo neste negócio como para poder dizer o que penso sem qualquer tipo de limite, e assim o fiz desde que publiquei o meu primeiro artigo, já vai para vinte anos. Creiam, pois, na minha sinceridade quando lhes digo que o trilho musical desta obra –a cargo de Benjamin Otero– é duma delicadeza extrema, minimalista em muitos momentos, mesmo naïf; para noutros fazer alarde da sua sabedoria musical e do seu ofício como compositor. Benjamín Otero, oboísta da Banda de Lalim, professor no seu dia do Conservatório Folque da capital do Deza e acompanhante habitual do Germán Díaz, leva uns anos tesourando experiência como músico de Fantoches Baj –até como ator– o que sem dúvida vai a favor dum correcto emprego da linguagem musical própria do teatro. A sua achega pessoal, com músicas de continuidade ou ambientando cenas –como por exemplo a marcha fúnebre interpretada por músicos da Banda de Música lalinense– resulta justa e necessária, algo importantíssimo quando falamos duma peça teatral que conta com partituras originais. E é precisamente aqui onde reside um dos grandes acertos desta recreação histórica de Os velhos não devem namorar na sua versão em títeres: a utilização das partituras incluídas no libreto e utilizadas na estreia absoluta em agosto do 1941, na capital argentina.

Uma canção à procura de um autor.

O museu de Ponte Vedra conta com dois manuscritos de Os Velhos não devem namorar que foram elaborados por Castelao por volta de 1939. Num deles se encontram as partituras utilizadas em 14 de agosto de 1941 no Teatro Mayo de Buenos Aires, no que constituiu a estreia absoluta. Participaram na representação as atrizes Maruxa Villanueva e Maruxa Boga e os atores Fernando Iglesias, Antonio Cubelas, Enrique González e Luis Lugo. A princípios do 2014, o programa No bico un cantar da TVG realizou um monográfico sobre Lela[1], canção que D. Saturio, acompanhado dum coro de boticários, dedica à sua namorada. O programa está centrado na melodia criada por Rosendo Mato Hermida para a estreia galega em 25 de julho de 1961 e que foi definitivamente popularizada por Carlos Núñez no seu disco A irmandade das estrelas, na voz de Dulce Pontes[2]. No entanto, nesse mesmo programa fala-se da outra Lela, a que se encontra nas partituras do manuscrito do Museu de Ponte Vedra. A encarregada de amostrar os documentos ante a câmara, Ana Isabel Vázquez, presidenta executiva do museu, diz não saber nada sobre a autoria das partituras.

Mesmo para um investigador da cultura musical galega, com tantas lagoas por resolver, resulta difícil de crer que um acontecimento tão relevante coma a estreia duma obra do grande Castelao, por uma companhia profissional e numa cidade tão civilizada como Buenos Aires poda guardar algum enigma. Mais ainda, quando esse fato fulcral para o teatro galego aconteceu há apenas setenta e cinco anos.

As casualidades são as milagres dos ateus[3].

O mês passado[4] andei a trabalhar na posta em música dum conjunto de poemas de Emilio Pita que me foram encomendadas pela cantora vilagarciense  Mar Caramés. Entre o material que me enviou se encontrava a citação duma carta de Castelao que tinha como remitente a Emilio Pita (A Corunha, 15/10/1907 ; Buenos Aires, 07/12/1981)

 «Sr. Emilio Pita:
Meu querido irmán: contesto a volta de correio á túa carta. Ben, moi ben. Estou conforme co plan que fixéchedes. Debo felicitarte porque comprobo que vas a remover o fondo galego de Rosario e que axiña esa cibdade vai ser un dos nosos mellores faros.
Eu estou bastante ledo cos ensaios primeiros da miña obra. Paréceme que poderemos estrenala. Noto a túa falla, porque non sei como a parte musical se poderá arranxar sen estares tí para preparala. En fin: farase o que se poida. O conto é estrenala para que, polo menos, apareza algo diferente ás trangalladas que tanto gostan ás nosas xentes.»  Grial 47 (1975), 91-92.

A carta não tem data mas na edição de Galaxia (2000) Vol. 6 do epistolário de Castelao datam-na a fins de março ou abril do 1941.
Existe mais uma carta enviada por Emilio Pita a Fernando Iglesias, Tacholas, participante no elenco da estreia bonaerense, com data de 11 de agosto de 1941.

«Meu querido Fernando:
Dúas  liñas para saudarche e pór no teu coñecimento que, d'acordo co que vos prometín o día 26 do mes derradeiro no Teatro Mayo, estarei á vosa beira o xoves 14 para sentir a carón de todos vós a fonda emoción de ollar na escea a primeira obra teatral do noso meirande irmán Castelao.

Tí sabes ben, como foi po-lo meu intermedio que se consigueu que Castelao léra a obra á vosa Compañía (Compañía de Comedias de Maruxa Villanueva) e pareceume un soño que despois de menos de un ano poda levarse a escea grazas á vosa admirable laboura...»[5]

Tendo em conta o dito nestas cartas, o estudioso da obra poética de Emilio Pita, Xosé Anxo García López afirma que «O papel de Pita como asesor do rianxeiro polo que se refire a este particular [posta em contacto de Castelao com a companhia de Maruxa Villanueva] semella plausible mercé ás declaración de Tacholas ou de Maruxa Villanueva».[6] Mas, até que ponto Emilio Pita é responsável das partituras utilizadas na estreia do Teatro Mayo?.

O Quarteto Ultreya.

O Emilio Pita, além de poeta, foi musicólogo especializado em música tradicional galega[7]. Isto último é muito meritório, dado que emigrou para a Argentina com apenas doze anos, viajando à Galiza em contadas ocasiões.

Quando assisti a representação de Fantoches Baj e escutei por vez primeira o vira da cena do português ou a pandeirada entendi que Emilio Pita tinha que estar detrás das escolhas musicais. Mas não foi até a leitura dum artigo do jornal argentino Pueblo Gallego datado em 15 de junho de 1941 que me atrevi a escrever este pequeno trabalho sobre a autoria da primeira partitura de Lela, aquela que Castelao achegou ao seu manuscrito, junto com o texto, esboços e desenhos de decorados.

Em sábado 30 de maio do 41, Castelao deslocou-se a Rosario para palestrar num ato organizado pela Casa de Galiza e a Irmandade Nazonalista Manuel Curros Enríquez, chefiada por Xosé Ares Miramontes. O título da conferência foi: Visión de un aldeano gallego. A seguir da palestra de Castelao, houve uma «fiesta de la poesia, música y danza de Galicia» onde Emílio Pita teve um especial protagonismo. A isto parece referir-se Castelao quando na carta dirigida a ele e acima publicada lhe dizia: «Ben, moi ben. Estou conforme co plan que fixéchedes».

No ato, dividido em duas partes, participa o Quarteto Ultreya, dirigido por Emilio Pita desde 1938. Estava integrado por Luís López, Benito Rodríguez, José López e Mercedes Orgaz. O programa incluía:
«a) Romance de Don Gaiferos, siglo XIV
b) Cantigas de roda, música pop. armon.
c) Villancico, siglo XVIII
d) Mariñeira (popular)
e) Carmiña (popular)
f) Canción de berce, solo por Mercedes Orgaz
g) Alalá de Lobeira, música popu. armon.
h) Lela (serenata compostelana), música pop. arm.»


Pueblo Gallego: periódico quincenal.
nº2 15/06/1941

No transcurso do concerto ainda se interpretou alguma outra obra de Pita como a titulada Muiñeira de Vellas.

As Lelas de Castelao.

Resulta, pois, de justiça, reafirmar que a primeira interpretação conhecida de Lela foi em 30 de maio de 1941, num ato celebrado no salão do Centro Catalão de Rosario, Argentina. As canções foram todas harmonizadas por Emílio Pita, diretor do Quarteto Ultreia, mas é ele o autor da melodia original da Lela do Teatro Mayo de agosto do 41? Pois parece que não, tão só podemos atribuir-lhe a harmonização. Em realidade a pergunta mais certinha seria, é a Lela do 41 uma melodia original?

No programa da TVG, No bico un cantar, expõe-se o seu parecido com a canção de tuna Fonseca, também conhecida como Triste y sola, uma valsa estudantil que segundo o Bachiller Pérez, pseudónimo de Pérez Constanti, já era conhecida arredor do 1880 quando dirigiam a tuna os violinistas Dorado e Villaverde. O próprio Castelao foi tuno e tocava guitarra com a que acompanhava a sua voz de baixo. O feito de que no jornal arxentino El Pueblo Gallego se qualifique Lela como música popular harmonizada indica que Pita, e suponho que também o Castelao, não a consideravam tema original.

A minha opinião é que se trata duma evocação da música estudantil, de ai o seu subtítulo serenata compostelana[8], tão filiada a outras melodias consagradas no reportório da tuna que decidiram dá-la como popular.

Quando em 1961 o coro compostelano Cantigas e Agarimos põe em cena a peça de Castelao não contavam com as partituras bonaerenses e Mato Hermida teve que compor, parece que com muito estresse, a que chegaria a ser uma das canções mais emblemáticas do reportório popular galego. Novamente uma valsa estudantil, nada afastada do modelo de Fonseca ou do Lela do 41.

Em Rianxo ainda contamos com outra versão do poema de Castelao, esta vez composta pelo músico local Manuel Vicente Chapí, cantada nas históricas representações do grupo amador Airiños de Asados, Rianxo, e muito popular entre os vizinhos deste concelho corunhês. Mais uma vez uma valsa.

Noutro momento gostaria de fazer uma análise das partituras depositadas no museu de Ponte Vedra que possa, porventura, deitar nova luz sobre os enigmas que encerram.  Mas, por enquanto, vamos ficar por aqui.



[1] BERNÁRDEZ, Senén dir. 01/02/2014 Lela [Program de TV] No bico un cantar. Televisión de Galicia T.V.G. O roteiro deste programa foi escrito pela rianxeira Teresa Abuín.
[2] Sobre a Lela de Rosendo Mato Hermida ver: «Lela»: a sombra dun amor ingrato. En desagravio de Rosendo Mato Hermida, artigo escrito pola sua filha María Dolores Mato Gómez in [http://dspace.aestrada.com/jspui/bitstream/123456789/450/1/pg_291-316_estrada10.pdf]
[3] Adágio atribuído ao Barão de Orjais (1769-?).
[4] Janeiro de 2016
[5] GARCÍA LÓPEZ, Xosé Anxo. Boletín da R.A.G. nº 370 p. 172
[6] GARCÍA LÓPEZ, Xosé Anxo, op. cit. p. 172
[7] É autor do apartado dedicado à música tradicional na Historia de Galiza, V. 1, pp.763-777 Akal; Madrid (1979) dirigida por Otero Pedraio, o qual é bem significativo do grande respeito que lhe tinham as vacas sagradas do galeguismo.
[8] «Que serenatas demos!» diz o boticário quando entre assobios e postura na guitarra está a tentar recordar a melodia.