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segunda-feira, 29 de julho de 2019

nº 235 Os Cantores del Instituto e a receção da obra de Lopes-Graça na Galiza. II


Em 1958, os cantores do instituto deram começo a uma série de concertos anuais que tinham lugar no convento de Santa Clara, justo ao remate das celebrações do natal, baixo o titulo genérico de La Despedida del Villancico. Durante toda a década dos 60, quando menos até 1970, entre as numerosas peças interpretadas pelos coristas encontrava-se Eu hei de dar ao menino de Fernando Lopes Graças.
Podemos dar-nos uma ideia do repertório habitual dum concerto de La Despedida lendo o que aparece publicado no seguinte artigo de El Pueblo gallego.

El Pueblo gallego. Ano XXXVII nº 12222 1961 janeiro 7

Pela circunstância que acabo de relatar, cada sete ou oito de janeiro –e durante mais duma década– uma peça do mestre de Tomar era interpretada na cidade de Pontevedra. Considero que isto é algo a valorizar na sua justa medida, sendo conhecedores do receio com que a sua obra era olhada  na península por causas totalmente extramusicais.
Nos mesmos concertos era habitual a presença doutro autor português, Mário de Sampayo Ribeiro (1898-1966), compositor e pedagogo musical, um dos ideólogos do reportório das Mocidades Portuguesas. Sampayo Ribeiro e o seu programa pedagógico de intervenção musical nos escolares sintoniza à perfeição com o impulso que levou a criação dos Cantores del Instituto. Além disso, o mestre teve a oportunidade de transmitir na Galiza as suas ideias musicais através dos diferentes concertos que vai protagonizar:

24 de abril de 1949, coro Polyphonia, lugar: Catedral de Santiago de Compostela.

5 de agosto de 1952, Coro do Centro Universitário de Lisboa, lugar: Salão artesoado de Fonseca. Santiago de Compostela.

6 de agosto de 1952, Coro do Centro Universitário de Lisboa, lugar: Igreja de Santa Maria, Ponte Vedra. [Os concertos de 1952 foram por conta do Centro Universitário das Mocedades Portuguesas]

20 de agosto de 1957, Coro do Centro Universitário de Lisboa, lugar: Praça da Ferraria, Ponte Vedra. [As crónicas dos jornais recolhem o seguinte comentário: «[...]la primera fue iniciada por una canción popular francesa y continuada con música de Franz Gruber, Joaquim Casimiro, Sampayo Ribeiro, Bach y Weber, con predominio del tipo religioso. La segunda parte, la integraba una serie de canciones lusas». À vista deste repertório e da essência escolástica do coro estamos ante um possível modelo para Los cantores?]

Em geral, o repertório dos Cantores combina a música antiga com o folclore galego, espanhol e até mundial, como na série de cantos de natal. Outra das suas características seria o importante peso que tem o elemento religioso, não só na escolha do reportório, senão na participação ativa em atos da liturgia católica, nomeadamente na Páscoa e no Natal. O primeiro diretor dos Cantores, Agustín Isorna Rios (1914-1966), pessoa de grande erudição, formou-se musicalmente entre os mercedários do convento de Poio, abandonando os hábitos para chegar a ser oficial do exército trás o levantamento militar do 36. Ele é quem coloca os alicerces ideo-musicais do coro do Instituto, quem põe os seus conhecimentos paleográficos ao serviço dum repertório onde as cantigas medievais ou a obra do seu amado Tomás Luís de Victoria marcaram presença continuada.

Mas neste ambiente conservador e tradicionalista que pinta a figura de Lopes Graça? Pois contra todo prognóstico, muito.

O primeiro que haveria que dizer é que o génio de Lopes Graça estava fora de toda dúvida. Na imprensa galega apenas há crítica musical ao repertório de Los Cantores, só reflexões gerais sobre a interpretação e afinação das vozes. Mas, às vezes, e lendo entre linhas, podemos tirar alguma reflexão de como se recebia a obra do mestre de Tomar em comparação, por exemplo, com a de Sampayo. Assim, depois da conferência-concerto dada por Filgueira Valverde no Hostal dos Reis Católicos lemos num jornal compostelano: «[…] y un “scalanto” navideño de López Graca (sic), uno de los músicos de mayor calidad del Portugal actual». «[…] en dos versiones portuguesas del maestro Sampayo Ribeiro, tan querido de Galicia». La noche: 19/XII/1957, ano XXXVII, nº 11467
Noutro lugar, o crítico de El pueblo gallego, Justo Calderón dizia: «Para nuestro gusto, marcaron los puntos límite de excelencia e inferioridad en un recital (repetimos) de constante nivel superior, los dos villancicos portugueses (delicioso el de Lopes Graça; dentro de linea más conservadora si exquisitamente sutil el de Sampaio Ribeiro), mirando hacia arriba y, mirando hacia abajo, la balada del catalán Millet, “El cant des aucells”, no por deficiencia de interpretación (verdaderamente loable) si no por menor adaptación al la línea general de la velada». 10/I/1961, Ano XXXVII, nº 12224. Há que lembrar que na altura El Canta dels ocells era um símbolo do republicanismo e do catalanismo no violoncelo de Pau Casals.

Mas, na lista de fãs incondicionais de Lopes Graça temos que situar em primeiro lugar ao bibliófilo e crítico musical Antonio Odriozola (1911-1987). Nos fundos do Museo de Pontevedra encontramos um documento mecanografado datado em 8 de dezembro de 1955 que testemunha claramente isto que acabo de dizer. Trata-se duma carta de Odriozola ao diretor de La Noche, Raimundo García Domínguez (1916-2003), conhecido como Borobó, no que lhe pede que inclua no jornal que dirige um artigo seu sobre Lopes Graça. Em resumo, o texto vem a elogiar o concerto dado em Ponte Vedra pelo Coro de Cámara de Pamplona, e com especial ênfase a peça Encomendação das almas.

«Lopes Graça sabe bien –como Bartok, Strawinsky o Falla– que el folklore puede ser objeto de las más artísticas elaboraciones con tal que el resultado final sea fiel a la esencia de la inspiración popular. Y lo sabe bien porque –como lo fue Bartok– es a la vez un gran compositor y un riguroso y científico recolector de las canciones populares portuguesas y autor de un libro sobre ellas. Por ello, la Encomendação das almas que escuchamos a la Coral de Cámara de Pamplona era una obra lograda y una pieza impresionante que no era posible escuchar con indiferencia sino en plena y emocionante tensión.
En 1951 publicaba Lopes Graça Sete Encomendações das almas para coro mixto a cappella, a las que pertenece la escuchada estos días a los navarros. No está ahora a mi alcance esa partitura ni el Cancioneiro Minhoto de Gonzalo Sampaio para comprobar si las melodías recogidas por este son la base de la obra de Lopes Graça, ni esa comprobación tiene la menor importancia. Lo que sí la tiene, es registrar el extraordinario logro artístico obtenido por el compositor. Aquella inolvidable voz de contralto y las conmovedoras entonaciones del coro, raspaban o sacudían el alma, evocando la impresionante ceremonia nocturna y haciendo acudir las lágrimas a los ojos. Puede estar bien satisfecho Lopes Graça de haber creado una obra genial y de que los navarros la interpreten con sinsuperable maestría.
Estas Encomendações das almas suelen cantarse en el Norte de Portugal, en las noches de Cuaresma, en los cruceros de los caminos que tienen su retablo de las ánimas, como muchos curceros gallegos. (Recuerdese el de la Ramallosa que cierra el libro Rías Bajas de Galicia de Castroviejo). Allí se difunden en el aire nocturno estas Encomendações de conmovedora belleza y con el texto de una de ellas cierro el artículo:

Alerta, alerta,
a vida é curta, a morte é certa!
Os irmãos meus, filhos de María,
pelas almas do Purgatório,
un Padre-Nosso,
uma Ave-Maria!.»

Como curiosidade, Antonio Odriozola faz uns rascunhos das fotografias que quer inserir no corpo do texto, entre as quais, uma muito simpática de Lopes Graça:

Fundo: Antonio Odriozola.
Museo de Pontevedra.

Odriozola e Lopes Graça já se tratavam com anterioridade a este artigo –que segundo creio jamais chegou a ser publicado– já que na dedicatória de Bela Bartok: três apontamento sobre a sua personalidade e a sua obra podemos ler: «Para D. Antonio Odriozola muito cordialmente. Fernando Lopes Graça. Lisboa. Maio, 1954». Fundos do Museo de Pontevedra.

Com tudo, o documento mais interessante, na minha opinião, com o que nos encontramos no Museo de Pontevedra do fundo de Iglesias Vilarelle, compositor e diretor da Coral Polifónica da cidade do Teucroreside numa partitura, as Três líricas castelhanas de Camões, para coro mixto “a cappella”. Esta obra aparece no catálogo do espólio musical com o número LG 25. Segundo o mesmo catálogo foi composta em Lisboa 1954/55 e a sua primeira audição teve lugar o 20 de abril de 1966 pelo coro Gulbenkian. Mas na capa do exemplar do Museo de Pontevedra aparece uma dedicatória: “À Coral Polifónica de Pontevedra. Fernando Lopes Graça”. No contexto de todos os dados achegados neste artigo e no anteriormente publicado no meu blogue, resulta verosímil a hipótese de que as Três líricas castelhanas fossem compostas para ser estreadas pela Polifónica de Pontevedra. Infelizmente, não posso demonstrar que esta estreia tivesse lugar na Galiza antes do 1966, data que aparece no catálogo. O que sim posso é fazer umas pequenas reflexões a respeito.

De Iglesias Vilarelle e a sua relação com Portugal já tenho falado noutras ocasiões, a propósito desse acontecimento histórico como foi a interpretação em 1939 do seu Chucurruchú pela orquestra de câmara da Emissora Nacional, baixo a batuta de Frederico de Freitas. Em qualquer momento desses frequentes encontros luso-galaicos em congressos, convívios, homenagens... Vilarelle pode saber de Lopes Graça, conhecer-se ou, simplesmente, chegar a um acordo puramente profissional. Porem, o fato de serem textos de Camões faz-me pensar, mais uma vez, no factótum de tudo quanto acontece na velha vila, D. José Filgueira Valverde. 

Filgueira Valverde, como Antonio Fernandez-Cid, acostumavam a ilustrar as suas conferências com intervenções musicais. Estas podiam ser de piano solo, piano e voz ou corais, segundo as necessidades ou a disponibilidade dos músicos. Nos anos cinquenta, Filgueira começa a dar palestras em torno a figura duma das suas personagens favoritas: Luís Vaz de Camões. Para entender melhor o fenómeno permitam-me fazer uma pequena cronologia filgueira-camoniana:

–Em 19 de julho de 1952, nos Cursos de Verão da Residencia "La Estila" o título do seu discurso foi El legado de Camões. 

–No 54, quando Lopes Graça começava a escrever as Três líricas castelhanas, Filgueira participava nas Jornadas de literatura, na Corunha, em 21 de julho, com a palestra Camoens, clásico español. 

–Anos mais tarde, no 58, todas estes relatórios farão parte do volume da editorial Labor, Camões, na que o diretor do Museo de Pontevedra, confesso iberista, defende a espanholismo do autor das Lusíadas.

«Pero ni la oriundez gallega, ni el bilingüísmo, ni siquiera el que se hubiese definido él mismo como "hespanhol"... bastarían para clasificarlo entre nuestros clásicos. La razón es muco más honda. Camoens constituye un eslabón en la áurea cadena de la lírica peninsular, cuyo estudio no es posible fragmentar, y, sobre todo, es quien lleva a su culminación la épica. Os lusiadas, como dijo Ramiro de Maeztu, son nuestra epopeya, y "en ellos se halla la expresión cunjunta del genio hispánico en su momento de esplendor... Donde acaban los Lusiadas comienza el Quijote». Camoens, Editorial Labor, S.A., Barcelona. p. 9

Curiosamente, vinte e tantos anos antes, exatamente em 1930, Lopes Graça reflexionava em paralelo sobre o Quixote e Os Lusíadas, fazendo, ao mesmo tempo, "amigos" na intelligentsia do Estado Novo:

«Como Zozaya [que falava do inoportuno de ler o Quixote no ensino primário], nos exclamamos –Os Lusíadas não são leituras para crianças nem para adolescentes... Na escola não se fazem mister nem Vasco de Gama nem Júpiter tonante. Forme-se  primeiro o homem, depois o patriota». Disto e daquilo. Edições Cosmos, Lisboa. p. 143

Por último, as três peças musicadas por Lopes Graça são particularmente estudadas por Filgueira no seu livro Camoens, capítulo XII, pp. 409 e seguintes,  titulado "Camoens, clásico castellano", idêntico cabeçalho que a palestra dada no colégio da Estila em 1954.

Na página 415 podemos ler:

«Excepto uno, atribuído a Boscán, los "motes" escogidos por Camoens son anónimos y proceden de villancicos populares o de villanescas cultas. Estos "motes" de las letrillas castellanas son los siguientes:

Ojos, herido me habéis,
acabad ya de matarme;
mas, muerto, volved a mirarme
por que me resucitéis.

¿Qué veré que me contente?

¿Para qué me dan tormento,
aprovechando tan poco?
Perdido, mas no tan loco
quesescubra lo que siento.
(Con indicación de "Alheio")

De vuestros ojos centellas
que encienden pechos de hielo,
suben por el aire al cielo,
y, en llegando, son estrellas.
("Alheio")

Todo es poco lo posible
("Alheio")

Vos tenéis mi corazón.
("Alheio")

De dentro tengo mi mal
que de fuera no hay señal.
("Alheio")

Amor loco, amor loco
yo por vos, y vos por otro.
("Alheio")

Justa fue mi perdición,
de mis males soy contento;
ya no espero galardón,
pues vuestro merecimiento
satisfizo a mi pasión,
("Trova de Boscán")

Irme quiero, madre,
a aquella galera,
con el marinero,
a ser marinera.

¿Do la mi ventura,
que no veo alguna?

–¿Por qué no miras, Giraldo,
mi zampoña como suena?
–Porque no me mira Elena.
(Villancete Pastoril)» pp. 415-416

[O negrito é meu e indica na sequência de versos os títulos das Três líricas castelhanas de Camões.]

A vista do texto de Filgueira ficam claras duas coisas. Em primeiro lugar as canções não são da autoria de Camões, senão populares, a exceção da de Boscán, e em todo caso recolhidas por ele. E, em segundo lugar, não me cabe muita dúvida de que Lopes Graça conhecia o texto de Filgueira sobre Camões, obviamente na versão da palestra dada na Estila.

Resumindo

Estou na certeza de que existe uma relação íntima entre a Polifónica de Pontevedra, os Cantores do Instituto, Filgueira Valverde e a criação em 1954/55 de Três líricas castelhanas de Camões do compositor português Fernando Lopes Graça. A dedicatória na capa da partitura que se custódia no Museo de Pontevedra é muito esclarecedora, mas nada diz a respeito de se o que se dedica é o exemplar ou a obra. Como hipótese, e aguardo que algum dia isto possa ser demonstrável, deito a ideia de que Três líricas castelhanas de Camões fosse uma encomenda da Polifónica, de Vilarelle ou de Filgueira Valverde para ilustrar as palestras-concerto deste último. Em qualquer caso considero uma honra contar no museu de Ponte Vedra com um manuscrito dedicado do grande Lopes Graça, na satisfação de sentir que algo dele nos pertence.

domingo, 10 de março de 2019

nº 230 Lela. Uma canção à procura de um autor. III

III

A autoria de Lela é um acontecimento mediático digno de estudo. Cada pouco tempo aparece na imprensa alguma nova achega ao fenómeno com titulares tão dramáticos e inexatos como o aparecido apôs da morte de Miguel de Santiago: "El misterio de Lela se va a la tumba" (La Voz de Galicia). As informações acostumam a misturar tudo, esquecendo que opiniões aparentemente contraditórias podem, em ocasiões, simplesmente referir-se a fatos diferentes. Explico-me. 
A respeito de Lela, ou de qualquer outra peça musical, há que diferenciar entre o autor legal e o autor real. A dia de hoje, e depois de muitas horas estudando e investigando, –quase como um detetive ou arqueólogo musical– eu não tenho a menor dúvida que o autor legal de Lela é Mato Hermida, e esta postagem pode afundar nisto ao referir-me, mais adiante, às diferentes gravações históricas. A respeito do autor real só posso dar opiniões, e eu não sou muito disso. Contudo, Mato Hermida pôde ser o autor primário, mas houve outras pessoas, como o próprio Carlos Núnhez, como é óbvio, a quem esta peça deve o seu universalismo.
Mas comecemos por falar dos registos discográficos de Lela.

No princípio está Uruguai.

A primeira questão que cabe sublinhar é que na estreia absoluta de Os velhos não deveram de namorar em 1941, o coro de boticários interpretou Lela usando a melodia de Fonseca, um tema da tuna compostelana de fins do XIX. Isto é muito importante porque esta melodia foi a escolhida por Castelao e, ainda mais, foi a que Castelao tinha na sua cabeça quando compus a letra. Dito doutro modo, Castelao utilizou uma peça de autor desconhecido –suspeitamos que pudera ser de Manuel Valverde– copiando literalmente a melodia e parafraseando a letra ou baseando-se nela para escrever o seu canto de amor a Lela. Parece ser que o desenhador e político rianxeiro era muito afeiçoado a parodiar peças conhecidas mudando-lhes o texto poético. Mato Hermida fez o processo a inversa, conhecia a letra e teve que coloca-la num novo texto musical. 
Em qualquer caso, em 30 de maio de 1941, cantou-se por primeira vez, que nós saibamos, o Lela/Fonseca em Rosario, num concerto do coro Ultreia dirigido por Emilio Pita e em presença do próprio Castelao. Em agosto do mesmo ano é a estreia bonaerense dos Velhos e no mês de outubro a obra viaja a Montevideu. Aqui, em Montevideu, terá lugar a primeira gravação da Lela de Castelao.

a) O primeiro registo discográfico de Lela foi realizado nos estudos de Sondor de Montevideu, empresa fundada em 1938 por Enrique Abal Salvo, uruguaio neto do pontevedrês de São João de Poio, Juan Abal Arosa. A gravação, protagonizada pelo Coro Galego de Montevideu e registadas em discos de 78 r.p.m., foi efetuada em 22 de outubro de 1954. Segundo informação da Sondor, os discos foram comercializados com sobre genérico da empresa.
A versão do Coro Galego de Montevideu é a Lela com melodia de Fonseca e uma letra diferente, ainda que com muitas similitudes, à escrita por Castelao. Como curiosidade dizer que o coro está acompanhado por um acordeão, resultando um conjunto formosíssimo que paga a pena escutar com atenção. A primeira vez que teve aceso ao tema foi graças á amabilidade de Oscar Ibáñez que me mostrou a cópia fornecida pela Deputação de Ponte Vedra. A própria deputação editou-a posteriormente num disco titulado Galicia en 78 rpm.

b) Em ordem cronológica, o seguinte registo foi feito pelo coro Cantigas e Agarimos. Este exemplar é fundamental para a nossa história. Gravado em 1977 ou 1978, em vida portanto de Mato Hermida e Miguel de Santiago, exibe os seguintes créditos na sua contracapa:


Como se pode apreciar, Mato Hermida aparece aqui como autor da música. Este disco foi registado na SGAE, pelo que a entidade tinha, quando menos desde esta época, informação sobre a autoria da peça.
A Lela de Cantigas e Agarimos tem acompanhamento do grupo de pulso e corda da Tuna Universitária, o qual constitui outro dado de grande interesse para a nossa investigação.


c) Uns anos depois, em 1982, uma nova gravação tem como protagonista à Tuna de Santiago. O selo Dial, com produção de Dial Limoeiro, imprime um disco aproveitando a celebração do Ano Santo Jacobeo no que se afirma a propósito da tuna «su buena calidad musical, de amenas rondas y sobre todo de su excelente humor y calor, por supuesto, siempre acompañada de galantería con que estos jovenes tunos y "tunantes" hacen gala ante una bella damisela». Toda uma declaração de princípios. Mas o caso é que nesta gravação há versões duma qualidade mais que respeitável, como A Muinheira de Chantada, verdadeiramente excecional. Na cara B, justo depois de Bajo la doble águila, de Wagner, um clássico das bandas de música de princípios do século XX, e antes de Fonseca aparece Lela de R. Mato Hermida e A. R. Castelao.


A voz solista de Manolito o Tuno, Manuel Vicente Blanco Iglesias, que na altura era um mocinho de 45 anos, tem o tom e a textura perfeita para o boticário imaginado por Castelao. Mas o dado quiçá de maior importância está nos créditos onde figura o nome do assessor e arranjador musical.


Como se vê na imagem anterior, fragmento da contracapa do disco da Tuna Compostelana, o diretor musical foi o guitarrista Isaac Vázquez Alvite, nascido em Compostela o 14 de novembro de 1942 e finado em 21 de agosto de 1999. De estar vivo hoje, ele seria a pessoa melhor informada para aclarar qualquer dúvida sobre a génese e desenvolvimento do fenómeno Lela. Neno prodígio, conheceu a Andrés Segovia nos cursos de Música em Compostela, sendo desde muito novo colaborador e diretor da rondalha de Cantigas e Agarimos, coro denominado durante o franquismo, Rosalia de Castro. Formou e dirigiu a numerosos tunos, pelo que ainda que não apareça nos créditos do disco de Cantigas que comentamos no apartado b), ele foi o responsável, com toda certeza, do grupo de cordas. 
Por último, resulta verdadeiramente curioso que Lela e Fonseca vaiam juntinhas, uma a continuação da outra, como se os tunos fossem conscientes da relação que existe entre ambas peças.


d) Só um ano depois da gravação do disco da estudiantina compostelana aparece Nós de Xocaloma. O grupo de Carvalho faz uma versão de Lela com a voz inconfundível de Dolores Platas. Nele apreciam-se ainda os ecos do arranjo estudantil de Vázquez Alvite, e não podia ser doutro modo. 
Um dos fundadores de Xocaloma, o prestigioso psiquiatra Xoán Carlos Díaz del Valle, foi no seu dia tuno e aluno de Alvite. O doutor Díaz lembra que ele mesmo levou a peça ao grupo tal e como a apreendera na tuna. Suponho que é por isso que na contracapa do disco os créditos de Lela dão-nos uma nova surpresa, já que quem aparece como autor é Isaac Vázquez Alvite, sendo a peça registada na SGAE com o código 5.208.123.


e) E, porfim, em 1996 chega um dos mais grandes sucessos da história da música galega, o disco A Irmandade das Estrelas, do gaiteiro viguês Carlos Núñez. O seu Lela, na voz de Dulce Pontes, é já um ícone da nossa música, o grande pulo que lhe faltava a canção de Castelao para universalizar-se. Mas é também este disco a origem de toda a polémica sobre a autoria da melodia do que no seu dia pretendia ser tão só um coro de boticários, evocador e saudoso. Depois duma investigação exaustiva e de ter-se entrevistado com as pessoas mais significativas desta história quase de serie negra, Carlos Núñez omite o nome de Mato Hermida ou de qualquer outro autor nos créditos. Concretamente o que aparece é um desolador «9) Letra: Alfonso R. Castelao». Lembremos que em 1996 ainda estava vivo Vázquez Alvite. Por último dizer que na SGAE existe uma Lela registada com o número 3.259.928 cujos autores seriam José Miguel Sánchez Chouza (Miguel de Santiago) e Alfonso Daniel Rodríguez Castelao, e da parte legítima correspondente a arranjos, Carlos Núñez Muñoz. 

Para concluir.

Depois deste repasso à discografia leliana gostava de fazer algumas aclarações. 
Em primeiro lugar eu já declarei que na minha opinião não tenho dúvida do autor legal. Mato Hermida tem da sua parte a tradição e a documentação necessária para que ninguém duvide sobre a sua autoria. Outra coisa é a analise que podamos fazer da sua obra desde um aspeto puramente musical e na evolução e popularização que esta sofreu logo de ser estreada por Cantigas na representação de Os velhos
Acostuma-se a dizer que Mato Hermida desconhecia as músicas que se interpretaram na representação bonaerense. Desde um ponto de vista estritamente musical isto é de todo impossível. Só há que ver o estudo paradigmático de Fonseca e Lela (postagem nº 201), para comprovar como ambas estão profundamente filiadas. Não é possível compor o Lela de Mato Hermida sem ter como patrão o Lela/Fonseca. Obviamente não estou a falar de plágio, palavra que escutei nalguma conversa apoiando o interlocutor o seu discurso nas minhas investigações. Em todo caso seria tão plagiador como o Chaikovski do Capricho italiano ou o Beethoven das variações Molinara. Colher um tema que com certeza considerava popular como Fonseca e parafrasea-lo ou simplesmente inspirar-se nele é algo absolutamente legítimo e nada pejorativo para o prestígio de uma obra.
Dito isto, é evidente que a Lela de Mato Hermida não teria chegado a ser o que é hoje de não passar pelo crisol compositivo de Isaac Vázquez Alvite. Não seria de espantar mesmo que no mesmo intre em que Mato compunha o coro dos boticários conta-se com o assessoramento permanente de Alvite. Seria algo natural sendo um o diretor do coral e o outro, rondalhista colaborador da entidade polifónica. Para que transcendesse à estreia dos Velhos em 1961, foi muito importante que a tuna a incorporasse ao seu reportório e a popularizasse nas rondas santiaguesas. Graças à tuna é que chegou a Xocaloma, grupo que gozou de grande popularidade na altura. Eu mesmo, um músico iniciado nos afastados oitenta, foi ao grupo carvalhês a quem escutei por vez primeira o Lela de Castelao.
O debate que hoje continua a haver sobre o autor de Lela existe só porque Carlos Núñez a incluiu no seu trabalho A Irmandade das Estrelas. Ninguém se ia pelejar pelos créditos do disco de Cantigas ou da tuna, mas Carlos elevou a Lela à categoria de standard musical. Dulce Pontes vestiu a velha cantiga incidental com roupagens de ícone universal, modificando a sua melodia nuns giros pessoais que vieram para ficar, soando a melodia de Mato Hermida, na atualidade, mesmo um bocado esquisita. Estou certo que dentro de cem anos Lela seguirá a ser cantada sem que quase ninguém conheça o nome do seu autor e esta polémica será apenas lembrada por algum friki em tudo parecido a mim. Ou é que os que nos nossos tempos cantam La paloma, essa que diz «si a tu ventana llega una paloma...» conhecem que foi composta por Iradier faz mais de 150 anos? Quando o povo se apropria duma canção, os autores ficam apenas como uma curiosidade historiográfica.

Epílogo.

Uma das certezas que teve do grande trabalho de investigação que Carlos Núñez fez na altura sobre a autoria de Lela é que muitas das pessoas às que eu entrevistei ou das que pude consultar os seus arquivos, já foram entrevistadas pelo gaiteiro viguês. Um exemplo disto que acabo de contar foi a visita que Carlos fez a Manuel Vicente "Chapí", guitarrista rianxeiro, autor duma versão original de Lela que nada tem a ver com Fonseca ou a de Mato Hermida. D, Manuel, barbeiro e rondalhista de grande sensibilidade, ficou impressionado com Carlos Núñez ata tal ponto que lhe escreveu um poema algo ingénuo, mas encantador, do qual conservamos uma cópia no Fondo Local de Música do Concelho de Rianxo. Fique aqui como epílogo perfeito à história de Lela, uma canção a procura de autor.




Adenda

Depois de terminado este artigo recebi um presente inesperado. Rafael Abal, proprietário da empresa Sondor de Montevideu, Uruguay, enviou-me o mp3 de Lela, assim como uma imagem da etiqueta e o envelope original. O meu agradecimento mais sincero. Comparto com vós, lembrando que esta é a melodia escolhida por Castelao e a primeira gravação de Lela da que temos conhecimento.



Curiosamente, noutro disco gravado pelo mesmo coro nos estudos Sondor, gravouse Como capeas o vento! uma foliada intimamente relacionada com Rianxo, já que no estribilho podemos escutar: «e vão para a banda do mar, porque em Rianxo algo vão pescar.»



domingo, 22 de maio de 2016

nº 202 Higinio Cambeses na revista Ritmo.

Tenho que reconhecer que depois de muito buscar para elaborar um catálogo de Higinio Cambeses desconhecia que o mestre de Antas tivesse duas séries imprensas que foram anunciadas na decana revista musical Ritmo. Para mim é uma grande notícia, pois confirma algum dos títulos do meu pré-catálogo e acrescenta outros dos que não fazia ideia. Atualizo, pois, o inventário de obras de Higino Cambeses Carrera. Pelo menos por enquanto!

Ritmo Ano V nº 74 15/11/1933

Ritmo Ano VI nº 90 15/07/1934

Catálogo Higínio Cambeses (Atualização 22/05/2016)

Agradeço a Javier Jurado e Luís Costa a leitura e ampliação deste catálogo.

1.¡Adios para siempre! [Música impresa]: célebre marcha fúnebre para banda Musical Exito: Tarragona; Pablo Ricoma Dedicado ao seu pai José. SGAE 370.096
2.¡Anda Juan!(Es Xan do Coto) [Música impresa] Melodía Nº10 Colección 12 obras. Ritmo.
3.¡Ard’o eixo carballeira! [Música impresa]: pasodoble ed. Tarragona; Pablo Ricoma Cod. SGAE 367.649
4.¡Bienvenida, tú...! Pasodoble torero [Música impresa] Nº9 Colección 11 bailables. Ritmo.
5.¡Honradez y garantía! [Música impresa]: pasodoble ed. Tarragona; Pablo Ricoma Cod. SGAE 430.490 
6.¡Libertad!: Marcha-diana [Música impresa] Nº6 Colección 12 obras. Ritmo.
7.¿Solo o con leche? Schotis [Música impresa] Cod. SGAE 4.823.120 Nº8 Colección 11 bailables. Ritmo.
8.A los toros Cod. SGAE 4.184.316
9.A noite do Santo Cristo [Música impresa] ed. Dos Acordes SGAE 370.481
10.Agarimo Banda de Música de Ordes 2004
11.Allá en Camagüey: Danzón [Música impresa] Nº9 Colección 12 obras. Ritmo.
12.Angelillo Cod. SGAE 370.454
13.Aragón y sus cantares SGAE 4.223.343
14.Aragón Cod. SGAE 4.220.527
15.Aromas campesinos: capricho popular. Grav. Banda de Música de Sober, 1984
16.Arrenégote  demo. Muiñeira.  [Música impresa] Cod. SGAE 4.917.794 Nº3 Primera Serie.  Colección 11 bailables. Ritmo.
17.Arrojo y valentía: Pasodoble [Música impresa] Cod. SGAE 370.593 Nº1 Colección 12 obras. Ritmo.
18.Aturuxos: pasodoble. Cod. SGAE 370.644
19.Bandera de mi patria Cod. SGAE 4.245.367
20.Bienvenida Cod. SGAE 4.263.955
21.Campanas de Oro: jota Cod. SGAE 392.560
22.Cantares Cod. SGAE 4.293.286  
23.Cantigas da ría Cod. SGAE 392.680
24.Carballeira: Jota Popular [Música impresa] Nº11 Colección 12 obras. Ritmo.
25.Chulos y chulerias: Fox-charlestón  [Música impresa] Nº7 Colección 12 obras. Ritmo.
26.Colección bailables Cod. SGAE 4.334.866
27.Despertad, chiquillas: Diana  [Música impresa]Cod. SGAE 4.422.314  Colección 11 bailables. Ritmo.  
28.Despistado Grav. Banda Unión de Guláns 1977
29.E si mo deches foy no muiño [E si mo diches foy no miño] [Ei si no diches foy no miño] SGAE 415.951
30.El pájaro pinto Cod. SGAE 459.175
31.El rey de los gitanos: pasodobre Cod. SGAE  467.539 
32.El vals de moda Cod. SGAE 4.885.705
33.El veterano Cod. SGAE 4.898.652
34.El amor de mis amores: Vals de moda [Música impresa] Cod. SGAE 4.199.645 Nº5 Colección 11 bailables. Ritmo.
35.En el molino: Jota popular [Música impresa] Cod. SGAE 4.472.542 Nº11 Colección 11 bailables. Ritmo.
36.Entra y resala a la virgen Cod. SGAE 4.481.983
37.Fantasia gallega Cod. SGAE 142.441
38.Flores de la calle: Gran capricho de concierto sobre cantos populares asturianos y aragoneses (muy fácil) y de enorme éxito [Música impresa] Cod. SGAE  423.036 Nº12 Colección 12 obras. Ritmo.
39.Flores y claveles Cod. SGAE 423.042 
40.Guay guay: Charlestón [Música impresa] Cod. SGAE 792.541 Nº7 Colección 11 bailables. Ritmo.
41. Héroes y mártires Cod. SGAE 4.663.636
42.Invocación Cod. SGAE 432.697
43.La cruz de moda: Pasodoble [Música impresa] Cod. SGAE 4.365.997 Nº1 Colección 11 bailables. Ritmo.
44.La sin hueso Cod. SGAE 4.575.570
45. La vida es un cabaret: Tango  [Música impresa] Cod. SGAE 4.896.410 e 4.897.261 Nº6 Primera Serie.  Colección 11 bailables. Ritmo.
46. Los héroes de Jaca. Marcha (gran éxito) [Música impresa] Cod. SGAE 4.542.867 Nº10 Colección 11 bailables. Ritmo.
47. Los zapateros ambulantes Cod. SGAE 4.926.858
48. Maruxiña a Madalada [Mafalada] Cod. SGAE  444.960 
49. Miña roxeira Cod. SGAE 4.642.812
50. Miña xoia (Mi joya): Muiñeira [Música impresa] Nº3 Colección 12 obras. Ritmo.
51. Morra o conto Cod. SGAE 445.144
52. Música Maestro. Polka.  [Música impresa] Cod. SGAE 4.663.636 Nº2 Colección 11 bailables. Ritmo.
53. Natividad Cod. SGAE 4.680.211
54. Negrita Cod. SGAE 4.667.106
55. Negrito Cod. SGAE 4.667.396
56. Nicolás..., Nicolás...,(¡Chispún!...): Pasodoble coreable [Música impresa] Nº5 Colección 12 obras. Ritmo.
57. Niña roxeira Cod. SGAE 4.673.119
58. Nosa Terra Cod. SGAE 451.770
59. Pepa Banda Unión de Guláns 1977
60. Pepita Quintana Cod. SGAE 4.709.679
61. Piropos, no: Java [Música impresa] Nº2 Colección 12 obras. Ritmo.
62. Plátano verde Cod. SGAE 459.374
63. Recordo nº 9. Grav. Banda Orquesta Municipal de la Coruña. 1977
64. San Benitiño Cod. SGAE 4.790.794
65. Si ma deches rio miño SGAE 4.811.085
66. Silencioso [silencio]: Vals Cod. SGAE 6.419 Arquivo da Biblioteca digital hispánica: http://bdh.bne.es/bnesearch/detalle/bdh0000039318
67. Te mareas: Vals [Música impresa] Cod. SGAE 4.842.131 Nº8 Colección 12 obras. Ritmo.
68. Terra a Nosa: balada. [Música impresa] Nº2 Colección 12 obras. Ritmo.
69. Tierra gitana Cod. SGAE 4.855.478
70. Una tarde en Zaragoza Cod. SGAE  484.938 
71. Una vez en la Habana Cod. SGAE 4.880.706
72. Unha noite no muíño Cod. SGAE  4.885.870
73. Viva la legión Cod. SGAE 4.900.786
74. Vivan os mariscos Grav. Os Montes de Lugo.
75. Yo Ya Cod. SGAE 4.923.403
76. Yo Yo Manía Cod. SGAE 4.924.137
77. Zumba Loureiro Grav. La Lira Ribadavia 1995 Cod. SGAE  492.004

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domingo, 6 de março de 2016

nº 201 Lela. Uma canção à procura de um autor. II

II


Na postagem anterior comentávamos como no programa da TVG No bico un cantar salientavam o parecido entre a cantiga de tuna Fonseca e a Lela de 1941. O parentesco é evidente –chega com uma simples escuta para um se aperceber dele– porém, considero que não está de mais fazer uma pequena análise comparativa para ver quanto há de imitação entre estas duas peças, assim como com a Lela de Mato Hermida. Com tal fim utilizo um método ao que denomino análise paradigmático, o qual, obviamente inspirado na linguística, vem a assinalar a relação vertical dos signos, neste caso musicais, que pela sua presença ou ausência indicam um maior ou menor parentesco entre as melodias estudadas.

Para a realização do estudo coloquei num mesmo sistema as melodias, e por esta ordem, de Fonseca, a Lela de 1941 e a Lela de Mato Hermida, transportadas a uma tonalidade comum. As fontes utilizadas para a transcrição da Lela do 1941 são as partituras depositadas no Museo de Pontevedra e para a de Mato Hermida, a publicada pela sua filha(1). De Fonseca não temos uma partitura que podamos considerar canónica, pelo que tivemos que confiar nas que circulam por internet, assim como das gravações comerciais realizadas por diversas tunas. Cabe a hipóteses de que esta Fonseca, em certo modo contemporânea, seja sensivelmente diferente à que Castelao lembrava do seu passo pela estudantina.

Com linhas verdes ficam identificadas as identidades entre Fonseca e a Lela de 1941. A linha descontínua indica que para verificar tal identidade teve de utilizar várias vozes. Com linhas vermelhas marcamos as identidades entre Fonseca e a Lela de Mato Hermida ou entre as três. 

fig.1
 
fig.2
fig3

Para uma melhor compreensão das ilustrações, dividi a partitura em três secções. As partes A e B são tão similares entre Fonseca e a Lela de 1941 que poderíamos afirmar que estamos ante a mesma peça. É na parte C onde a obra estreada na Argentina manifesta uma maior originalidade a respeito da histórica canção de tuna. Mas, que é o que acontece com a Lela de Mato Hermida? Se nos fixamos nos quadrados vermelhos há muitas células comuns às três partituras, até frases quase completas, como nos compassos que vão do 14 ao 16. Especialmente ilustrativo me parece o sol #, segundo tempo do compasso 14, o qual se repete com uma recursividade suspeitosa no 22. Curiosamente, na parte C [figura 3], parece que há um maior parentesco entre a versão de Mato Hermida e Fonseca que entre esta última e a Lela do 1941. Incluso, e isto enreda tudo ainda mais, Mato Hemida faz no compasso 41 uma variante melódica de Fonseca calcada da do Lela de 1941. 

Por se ficasse qualquer dúvida de que Mato Hermida teve presente a valsa estudantil, observe-se a figura 4 onde o sombreado indica as identidades verticais, esta vez não das notas, senão das figuras.

fig.4


Á vista da figura 4, e se só tivéssemos em conta a figuração, poderíamos agora dizer que as três peças são a mesma com apenas ligeiras variações. Mas a velha definição lembrava que a música é a combinação de sons no tempo. Baseando-me nesta elementar equação é que, na minha opinião, a Lela de Mato Hermida resulta uma melodia original inspirada na valsa estudantil Fonseca
Para uma definição do Lela de 1941, melhor escutar primeiro ao próprio Castelao.

A Lela de Castelao.

Não há qualquer dúvida de que quando Castelao fez a letra de Lela soava na sua cabeça a música de Fonseca. Pretendia fazer uma espécie de fake sem muitos dissimulação. Na própria letra resulta evidente a homenagem. 

Fonseca:
Las calles están mojadas y parece que llovió,
son las lágrimas de una niña, por el amor que perdió.

Lela:
Estão as nuvens chorando por um amor que morreu,
estão as ruas molhadas de tanto como choveu.

Manuel Rosales(2), editor da obra narrativa de Castelao, remete-nos nas suas notas a um fragmento do Diario de 1921 cujo contido resulta esclarecedor:

«Iste teatro [teatro do Morcego] é o que ocupa todolos meus pensamentos, tanto que penso faguer disto na primeira ocasión alá na nosa Terra. A côr é a que trunfa por riba de todo e logo o bó gosto do que adapta o asunto. Pensando e pensando sobor disto xa se me ocurriron algunhas cousas pra faguer en Galicia. Velahí van: a) Nunha taberna de cibdade (a decoración ten de sere unha tolería de cousas pra decoración ten de sere unha tolería de cousas dise mal gosto subrime do pobo) ármase un orfeón onde canta o barbeiro o ebanista, o zapateiro o escribente de xuzgado e ainda o mesmo taberneiro pode botar un solo. O que canten ten de sere así como unha caricatura de calquera obra de orfeón: a obra "Oh, Pepita" poño por comparanza de cousa ridícula. [...] c) Nunha noite dun azul ben fondo con estrelas de córes cantan os mariñeiros orredor do lume onde se está cocendo a caldeirada, un canto que ainda podía sere acompañado por un acordeón. d) Duas rapaciñas ben fermosas e vestidas coma no tempo do romanticismo cantan un duo galego. As figuras estarán iluminadas pola luz da lua que entra por unha fenestra. [...] f) Unha parexa ou un grupo poden cantar calquera cousa axeitada; pero han sere os personaxes dun cadro pintado que non teña máis que as cabezas de verdade e tan ben pintadas que parezan brochazos. [...] Deixo apuntadas isas cousas que se me ocurriron. Do noso folklore sairán cousas a milleiros.» p. 107 (3)

Pareceria, portanto, que Castelao procurava com a sua Lela fazer uma caricatura de Fonseca, por ser esta melodia estudantil a que melhor poderia evocar as saudades do boticário. O autor do arranjo musical do 1941 –nós continuamos a defender a tese de que foi Emilio Pita– conhecia de primeira mão o transunto melódico de Lela, que como toda boa caricatura tinha de parecer-se ao original dentro da sua meditada deformação.

A Lela do Teatro Mayo.

Tal é como demonstramos na postagem anterior, uns meses antes da estreia de Os velhos não deberam de namorar no Teatro Mayo de Bos Aires em Agosto do 1941, Lela foi interpretada na cidade de Rosario. A peça foi cantada pelo grupo Ultreya, dirigido por Emilio Pita, com a presença do próprio Castelao. Imagino a sua emoção ao escutar os seus versos naquelas terras argentinas, tão longe dos palcos para os que a obra fora criada. Chegados a este ponto cabe fazer-se mais uma pergunta. Como e quem interpretou esta peça no Teatro Mayo na première de Os vellos...? Pois o certo é que a dia de hoje este aspeto continua a ser para mim uma autêntica incógnita.

A Companhia de Comedias contava com uma boa e experimentada cantante, a própria Maruja Villanueva que deu numerosos concertos como soprano. Além disso o elenco habitual da compoanhia contava com músicos e bailarinos habituais. Não parece, de igual modo, que a ideia de Castelao fosse que cantassem exclusivamente os atores, senão que a parte musical, de grande peso na obra, tinha de estar ilustrada por músicos e dançantes. Neste sentido são fulcrais as palavras duma pessoa que acudiu ao Teatro Mayo esse 8 de agosto do 1941, Eduardo Blanco Amor. Ele aponta a importância que para Castelao tem o elemento folclórico como base do teatro galego, contando coisas tão interessantes como estas:

«Hai, sin dúbida, na obra de Castelao alento folklórico, pro tal como debe sere; ponto de partida, non de chegada; proceso de estilización; raíz e non folla. No seu folklorismo trascendente está a sua galeguidade pura, como obra realizada e tamén como guieiro e proieción. niste senso é moi eispresiva a nota  que pon Castelao ao comezo, afirmando que a escribe "pra regalía do pobo" e "como proba de teatro galego". A sua intención era de "rematar os tres lances pra dar una sesión compreta de teatro, contando coa Polifónica de Pontevedra». p. 91 (4)

O feito de que a partitura que se conserva no Museo de Pontevedra e que supostamente foi executada nessa estreia do Teatro Mayo seja um arranjo a três vozes –as três escritas em clave de sol– indica que foi composta para ser cantada por um coro polifónico. Tal vez o coro Ultreya? 
Na mesma publicação donde tiramos a cita anterior, Blanco Amor termina pronunciando um alegado final verdadeiramente impactante:

«E direi, pra remate, que os "Vellos" non deben reestrenárese senón nas condicións devanditas, na sua realización mais óptima, ou sexa; desenrolo masivo das esceas rítmicas (danza dos espantallos, muiñeira final, etc.) ilustracións musicaes derivadas dos temas folklóricos pro levadas a grandes masas sinfónicas e vocaes; reprodución fidel das carautas e telóns, cuios orixinaes detalladísimos, –liña e coor–, consérvanse de mans de Castelao, etc.

Será moi lamentábel que un apresuramento eilitista ou unha devoción mal entendida levase a alguén a tentar esta faena, desfigurando o pensamento do autor e sin conecer a fondo o que se fixo i-o que non se pudo facere no seu estreno. Por non sere a de Castelao obra común, percisa de meios pouco comúns. Botar man dela sin telos será profanar un belido intento sin froitos para ninguén.» p. 92-93 op.cit.

A grandíssima Maruja Boga, a Pimpinela de Os velhos... morreu em Buenos Aires em 2010. Ela poderia ter despejado a maioria das minhas dúvidas e não deixo de me perguntar se ficará alguém com vida a quem poder interrogar. 

E então, apareceu uma gravação.

Pois sim. O meu caro amigo Ramom Pinheiro Almuinha, depois de ler a primeira parte deste pequeno trabalho, anunciou-me a existência duma gravação americana da Lela, posterior a estreia do Teatro Mayo e anterior a versão galega de Cantigas e Agarimos. O Ramom Pinheiro é uma das maiores autoridades a respeito das gravações históricas,  assim como dos coros de aquém e além mar. Nas suas anotações estava o seguinte apontamento:

  1. (TC 127) O' gaiteiro de Soutelo /Moi ben capeal'o vento. Foliada Int.Coro del Centro Gallego de Montevideo. Dir.: Pepe Rosales y J. de María. Acordeón: D. Treglia Sondor Nº 5582 - A, matriz 3498/9 Montevideo
  2. (TC 166) Lela. "Serenata compostelana" Coro del Centro Gallego de Montevideo. Drt.Pepe Rosales y J. de María. Acordeón D. Treglia. Sondor Nº 5583 - A, matriz 3500 Montevideo
A dia de hoje, e sem descartar novos achados, podemos afirmar que esta é a primeira gravação musical da Lela de Castelao. Como se pode apreciar nos créditos, a gravação correu a cargo do Coro do Centro Galego de Montevideu, e esta circunstância obriga-nos a falar brevemente desta cidade em relação as representações de Os vellos...

Depois da estreia do Teatro Mayo em 14 de agosto do 1941 na cidade de Buenos Aires, a companhia de Maruja Villanueva cruzou o rio para i-la representar a Montevideu, no Teatro Solis, em 8 de outubro do mesmo ano. Foi com motivo deste evento que Castelao gravou uma fonopostal, que pode ser escutada online na página do Consello da Cultura Galega. Após dessas datas não há um registo das vezes que a peça de Castelao foi representada no continente americano, mas deveram ser numerosas. Já na década de 50 nasce o Coro do Centro Gallego de Montevideo, que vai ter uma relação curiosa com Os vellos...

«El Coro del Centro Gallego de Montevideo se crea en el año 1951 y, desde ese momento, serán muchas las oportunidades en que ambas instituciones: (Casa de Galicia y Centro Gallego de Montevideo) actúen juntas con sus respectivos coros y cuerpos de baile. En el año 1953 los coros de estas instituciones cierran la velada de presentación de la película "Sabela de Cambados". Al año siguiente, el Coro del Centro Gallego y el Cuerpo de Baile de Casa de Galicia participan en la comedia musical de Pepe Fernández "Tamén os vellos poden namorarse"». p. 228 (5)

Penso que os créditos do disco do Coro do Centro Galego contêm um erro. O diretor deveu ser este Pepe Fernández, pai da grandíssima cantante galego-uruguaia Cristina Fernández e não Pepe Rosales, como se indica na etiqueta. Tendo em conta, precisamente, a numeração da etiqueta da companhia discográfica Sondor, a gravação realizou-se depois da representação da comédia musical de Pepe Fernández, por volta do 1954/1955. 

Ramom Pinheiro teve a lúcida intuição de que este disco em 78 r.p.m. podia estar na coleção da Deputação Provincial de Ponte Vedra, feito que foi confirmado pelo conservador e magnífico gaiteiro Óscar Ibáñez. Aguardamos poder escutar esta gravação e comprovar se se trata da mesma dos papeis do museu pontevedrino, aquela da estreia do 1941, ou se por contra estamos ante uma nova versão.

Há mais um aspeto que resulta interessante desta gravação: a presença dum acordeonista acompanhante, e isto provoca em mim outra pergunta: houve na estreia de Os vellos... músicos para acompanhar os coros? Tal vez também nas baixadas de telão? E de ser assim, quem foram estes músicos? Infelizmente mais uma vez desconheço a resposta. O que sim sei é que Castelao contava com que os houvesse. 

«Cando a muiñeira soe, ergueranse os espantallos, virán bailando, un após do outro, cara diante, para puntear a muiñeira acompañada por timbales e que, en algúns treitos, non quede máis que un bruído rítmico.» p. 557

Em relação com a presença ou ausência de músicos na première de Os vellos... simplesmente e como colofão a esta segunda postagem –haverá uma terceira?– deixo-vos duas fotografias publicadas na rede em www.culturagalega.org. no álbum dedicado ao gaiteiro Manuel Dopazo. Nelas aparece Manuel retratado em Montevideu com a companhia de Maruja Villanueva em 5-X-1940, foto do arquivo do investigador argentino Norberto Pablo Cirio. Na outra está a Pimpinela Maruja Boga com o próprio Manuel Dopazo, os acordeonistas Moreiras e o actor Tacholas, também do elenco de Os velhos... 

Menbros da Companhia de Teatro Maruja Villanueva
Foto dos Membros da Companhia do Teatro Maruja Villanueva,
na quinta da Casa de Galicia de Montevideo. Entre outros:
1. O tenor Domingo Caamaño; 2. o gaiteiro Manuel Lorenzo; 
3 e 4 a parella de baile Héctor e Sara Dopazo; 5. Carmen Dopazo:
6. Tito Dopazo: 7. Manuel Dopazo: 8. a cantante Maruja Villanueva, 
Isaura Vázquez. Montevideo 5-X-1940 (Arq. Norberto Pablo Círio)


Remate

Terá de haver um epílogo a este trabalho meu. Quiçá um epílogo ao modo de Os velhos não deveram de namorar onde os esqueletos nos contem a verdadeira história duma estreia jamais contada. A mim resta-me falar do contido dessa gravação uruguaia, com quase total certeza a primeira Lela com registo sonoro. Também gostaria de falar doutra Lela, a mais rianjeira de todas, a composta por Manuel Vicente "Chapi" como trilho musical na encenação de "Os velhos..." levada a cabo pelo grupo Airiños de Assados no 1982. Mais isso será doutra volta.