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sexta-feira, 23 de março de 2018

nº 220 A casa do Pintor.


A casa do Pintor.
Uma história quase verdadeira.

A casa do Pintor erguia-se na rua mais cêntrica da Cidade. Uma rua cheínha de baixos comerciais com vitrinas enormes, reclamo de sapatarias, fotógrafos e lojas de roupa. Mas o prédio no que morava o Pintor era estreito e vetusto, quiçá dos tempos em que os dinheiros da emigração fizeram dum pequeno burgo marinheiro a mais grande metrópole do Reino.
Com o papelinho na mão fui contando os números ímpares até chegarem ao portal indicado. Apertei o interfone e foi nesse mesmo instante que cai na conta de que não levava nada preparado, nada razoável que lhe dizer à pessoa que falava desde o outro lado.

-Quem é? inquiriu uma voz feminina.
-Sou o Mário, está o Pintor?

Para a minha surpresa o automatismo ativou-se de imediato sem que mediara mais explicação. Uns segundos mais tarde partilhava mesa redonda com o meu admirado pintor, um velhote adorável de cabelos brancos baixo um boina puída pelo uso quase perpétuo.

-E tu a que te dedicas?
-Sou músico e estudo na Universidade.
-Pois ainda bem que és músico, senão quanto tempinho perdido, meu neno!

Passaram vários minutos dedicados pelo Pintor a me interrogar sobre as minhas afeições, a minha idade, a minha origem... até chegarem a pergunta que deveria ter sido -e não foi- a primeira:

-Então, por que você veio onda mim?
-Conheço muito bem a sua obra e agora queria conhece-lo a voçê. Enquanto nascia a resposta e a escutava tal e como saia dos meus lábios, percebia bem às claras o esquisita que soava. Mas, curiosamente, o Pintor pareceu gostar imenso do meu barroquismo durante todo o que levávamos de conversa.

A casa na que me encontrava estava decorada com sumo gosto, móveis de carvalho com linhas art nouveau muito sofisticadas, papel pintado com pássaros e motivos florais nas paredes e vários vasos com margaridas de longo talho sobre tapetes de croché. Quando a mulher do Pintor nos serviu um café e vi o seu rosto cor-de-rosa moldurado com cabelos brancos, o seu avental e a travessa de prata, pareceu-me estar ante Mrs. Hudson no 221B de Baker Street.
Foi depois de admirar alguns quadros magníficos pendurados com aparente desordem nos vãos abertos entre o mobiliário, que o Pintor colocou-me a mão no ombreiro e disse-me:

–Oi, tu não conheces a minha Lolinha?
–Acho que não, contestei, sem saber de que caráfio me estava a falar.
–Anda, pois vem que cha apresento.

Abriu uma porta e penetramos num quarto interior iluminado com a escassa claridade que penetrava por uma janela translúcida. Os meus olhos foram devagarinho afazendo-se a aquela ténue luz que me permitia perceber vultos apenas intuídos. A minha atenção concentrou-se imediatamente sobre um corpo que jazia sobre a cama. Achinei os olhos até adivinhar uma silueta, ficando paralisado ao compreender que se tratava duma mulher nua, deitada de costas, formando com os seus braços e pernas uma espécie de homem de Vitrúbio de longos cabelos. Então o Pintor se achegou a mesa de cabeceira e acendeu uma lâmpada que iluminou a estância dum vermelho prostibular.
Percebi, finalmente, que aquele vulto sobre o cobertor era uma boneca insuflável de cabelos loiros, olhos apestanados e um contínuo O nos seus beiços.

–Linda, não sim? É cuspidinha a Brigitte Bardot.
-Pois tem-che um ar, sim, disse sem vontade, ainda que o pareça, de ser irónico. 

Botamos algum tempo mais contemplando aquela bóia sexual, comentando a sua beleza, a sua paciência no posado e até a finura do seu cútis.

Depois de conhecer a Lolinha saudei a patroa da casa, dei uma aperta ao Pintor e sai esqueiras abaixo até o pé da rua, meditando o que se acontecera e compondo na minha cabeça um relato coerente para contar algum dia. Mas nunca até agora contei, quiçá porque aos poucos meses o Pintor morreu e me parecia um assunto demasiado privado para andar espalhando.

Quando a morte ocorreu, o maestro estava a trabalhar numa série de quadros figurativos, uma última etapa cheia de cor e pinceladas de grossos traços. A Junta do Reino acordou fazer uma exposição que amostrara o material, algumas obras terminadas e outras simples esboços. Acheguei-me até a sala e caminhei pelos seus corredores, saudoso do Pintor com o que apenas comparti uma tarde de conversa. 

Antes de deixar o local não pude reprimir um sorriso ao ver o retrato duma moça loira com um eterno O entre os seus lábios.
    

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

nº 211 A fraternidade 888.


888


In Memoriam da 
A. C. Arcos de Maçarelos,
funambulistas das artes.

Conheci a Eduardo uma manhã de abril do 1983. O departamento de música da faculdade de Arte pedira-me dar uma aula magistral sobre folclore e cancioneiros. Apenas iniciada a palestra -a cuja redação dedicara inúmeras horas das últimas semanas– soou um despertador. O são do percussor a bater no sino metálico resultava anacrónico mesmo para aquela década dos oitenta. Um raparigo vestido de chapéu e capote pousou a mão sobre o relógio e de imediato saiu da sala caminhando pausadamente ante os sorrisos desconcertados do auditório.
Assim era o Eduardo. Meses mais tarde, quando já éramos íntimos amigos, pedi-lhe uma explicação ao incidente do despertador. A sua resposta foi um brevíssimo: 

Tinha coisas que fazer.

O caso é que a minha amizade com Eduardo durou apenas uns meses, intensos, com certeza, cheios de surrealismo e perigos reais para a minha pessoa.

O episódio que quero relatar hoje tem a ver com uma loja, uma irmandade ou algo semelhante, chamada a Fraternidade 888. Sei que o seu nome pode soar a maçonaria, mas não era exatamente isso, ou sim, ou que sei eu. O certo é que o 8 de agosto de 1983 fui o primeiro profano em cem anos –e derradeiro– que assistiu a um capítulo da Fraternidade.

E ali estava eu, sentado num cadeirão do Salão Amarelo do Casino de Homens. Ao redor duma mesa circular, oito fulanos, melhor, oito tipinhos, com os seus chapéus, os seus bigodes quase de adolescentes, o seu tabaco de enrolar, na altura absolutamente démodé. E eu entre eles, desportivo, com chinelos e calças curtas, bizarro de puro contemporâneo.
Então, porque é que fui eleito para fazer parte de aquela última reunião capitular da Fraternidade 888?
Oi, Mário, preciso que a próxima segunda-feira venhas comigo a uma reunião de amigos, espetou-me o Eduardo sem mais explicação.
Conhecendo o tipo de reuniões às que ia meu amigo, estava certo que não me ia aborrecer.

O capítulo durou apenas uns minutos. Os moços, todos da minha mesma idade, sentaram sem dizer palavra. O Eduardo deu os bons dias e, a continuação, cantaram o seu hino, uma peça titulada Adeus a Santiago. Esta valsa fora composta fazia exatamente cem anos pelo barítono valenciano Várvaro que chegou à cidade com o elenco duma companhia italiana de ópera. Para o empresário, também levantino, semelhante apelido resultava pouco comercial –e mesmo pouco italiano– razão suficiente para aparecer nos cartazes como Pietro Fárvaro. A letra levava a assinatura dum moço aprendiz de farmacêutico, Lisandro Barreiro, um dos padres fundadores da Fraternidade.

Partitura de Adiós a Santiago.
Fondo Local de Música
do Concello de Rianxo.

Logo de cantar o hino, os oito tiraram das correntes e colocaram sobre a mesa oito esplêndidos relógios, todos exatamente iguais: caixa de prata, três oitos gravados sobre a tampa e o que resulta mais excêntrico, as suas esferas só marcavam um ciclo de oito horas.
Aquele era o princípio fundamental da Fraternidade, o reparto alíquota do dia em terços de oito horas: um fragmento dedicado ao trabalho, outro para o estudo e o restante para o descanso. Uma divisão beneditina do tempo que era levada até as últimas consequências. Os irmãos, por exemplo, comiam três vezes ao dia: às 8, às 16 e às 24, o início de cada um dos três intervalos diários. No resto das horas, só a bebida e o tabaco estavam permitidos.
Tão logo como foram depositados os relógios sobre a mesa, Eduardo tirou duma saqueta um martelo protocolar de bronze e, um a um, escachou todas as maravilhosas esferas deixando inservíveis os aparelhos. Com uma pequena pá e uma vassourinha recolheu cuidadosamente os anacos e os meteu noutra bolsa que atou com múltiplos nós.

Assim acabou a reunião, com o meu coração a bater depois de ver como o meu amigo inutilizava os preciosos mecanismos construídos, como cheguei a saber, por um relojoeiro alquimista de Mondonhedo.
Durante os cem anos que durou a Fraternidade, por ali passaram vultos como os periodistas Labarta Posse ou o próprio Lisardo Barreiro –pais fundadores– Castelao, Pérez Lugín, Filgueira, Cunqueiro e tantos outros. Oito homens, sempre homens, que renovavam o capítulo cada quatro anos. Todos eles tinham algo em comum: o seu amor pela Tradição galeguista e o desprezo pelos seus estudos universitários, considerados um médio, mas que um fim em si mesmo. Segundo me contou o Eduardo, houve vários membros da Fraternidade que atraiçoaram os princípios fundamentais, mas foram os menos.
Em definitiva, o meu amigo, Grande Mestre da Fraternidade 888, queria que eu fosse o notário ou cronista do seu óbito, da morte duma loja inútil, absurda e elitista. Ou quem sabe….


Anotação no meu dietário de 1983.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

nº 195 Os Papeis de Humboldt


Ao meu amigo Ernesto Vázquez Sousa, 
perito em livromancias,
em agradecimento pelo seu Sarmiento.

Os papeis de Humboldt
film noir.

Caro Roberto:

É de supor que depois de tantos anos não esperavas receber uma carta minha. O de escrever cartas resulta tão vintage! Mesmo duvidava de que continuassem a existir os selos.
A razão de que te escreva é que antes do acontecido em julho do 2004 tu eras o meu melhor amigo –quiçá o único– uma pessoa pela qual, na altura, sentia autêntica devoção. Depois de aquilo jamais voltamos a falar. Não teve a oportunidade de te dar a minha opinião e, com certeza, terás lido ou escutado muita merda sobre mim.
Como sabes, a minha paixão foi de sempre o documentalismo. Andei nos arquivos musicais na procura de velhas partituras, como um arqueólogo de sons ocultos baixo décadas –às vezes séculos– de desinteresse. Nisso ocupava as minhas vacações, verões inteiros viajando de arquivo em arquivo na procura do objeto cobiçado. Quando encontrava algo bom botava dias, às vezes semanas, transcrevendo, documentando e finalmente redigindo para logo enviar os meus artigos a revistas especializadas, portais de internet, associações, universidades... Só algum daqueles trabalhos foi publicado e destes, apenas um par tiveram certa repercussão na comunidade científica.
Considerava que ainda não dera com o documento que me catapultasse ao cume dos grandes investigadores, é dizer, esse seleto grupo de indivíduos aos que só conhece outra minoria ansiosa de acompanhá-los. Mas no meu foro íntimo sabia que nunca seria um deles. Eu não jogava na sua liga. O meu lugar ficava longe do seu mundinho académico, sendo apenas um triste funcionário, um freelancer indocumentado de baixa estofa.
Aquela manhã abri a base de dados dum dos computadores da Sala de Investigadores e bastou-me media hora para comprovar que já tinha consultado todo o fundo musical. Não dava para ir a outro lugar. Estava canso de pegar no carro e a minha incipiente migranha recomendava-me prescindir de tomar mais cafés. Far-me-ia bem sair dar um passeio pela cidade. Comecei a recolher as minhas coisas, peguei no caderno e quando procedia a fecha-lo vi umas assinaturas que remetiam a velhos livros do fundo geral ainda não consultados.
Um deles resultou ser um cancioneirinho sem qualquer interesse para mim. Li algum dos poemas anónimos que continha e comecei a inspecionar o volume quase com uma atitude forense. Suponho que todo documentalista sonhou alguma vez com encontrar-se um pergaminho Vindel nas guardas dum livro de Cícero. Eu também. Assim quando chegava as minhas mãos um velho volume procurava nele notas marginais, recortes escondidos entre as suas folhas e como não, escritos ocultos nas suas guardas. O cancioneirinho do século XVIII que estava a inspecionar não parecia guardar nenhum secreto. Então reparei no groso papel que envolvia o volume. Era um papel de tina sobre o qual escreveram o título e o autor da obra, utilizando, com tal motivo, belíssimas letras manuscritas. As dobras estavam muito ajustadas, mas não coladas, pelo que era possível desprende-las. Numa manhã de julho, na solidão da sala de investigadores, deixando-me levar pelo meu instinto, cometi a temeridade de ir à procura do meu Vindel. Na sua cara oculta, aquele papel resultou ser uma folha manuscrita pautada na que foram registadas cinco canções galegas e cinco castelhanas. Também havia um título e o nome do autor: Galizisch und Kastilisch Songs. Wilhelm Von Humboldt. 1799.
Quando vi o nome do grande linguista alemão lembrei de imediato os papeis de Humboldt, hoje conservados na Biblioteca Jagiellonska da Uniwersvtet Jagiellonski de Cracovia. Entre esses documentos encontra-se o titulado A música no País Vasco, fruto do trabalho de campo feito por Humboldt nas suas viagens a Euskadi. Mas em 1799 o alemão percorre o norte de Espanha desde Vitória até Madrid e quem sabe se no caminho se encontrou com jornaleiros galegos, cómicos da légua, com aguadeiros em Madrid... Entres as quadras recolhidas está esta que muitas vezes lembro nas minhas penosas noites de insónia:

Mininha bunita
o pé do castelo,
se levares mala noite
tamém a eu levo.

Num ato reflexo e depois de valorizar a situação brevemente, –como bom cidadão que acabava de desnudar um livro do século XVIII– fui comunicar o achado à funcionária que recolhia os pedidos detrás do balcão.
A primeira reação desta foi de espanto. Procurei explicar-me, mas as minhas tentativas resultaram infrutuosas. Com o livro numa mão e o envoltório na outra, a veterana arquivista foi onda a sua superiora, uma mocinha de aparência quase adolescente recentemente nomeada Diretora do Arquivo. Imediatamente fui conduzido onda ela que me recebeu com semblante sério e palavras graves.

–O senhor sabe o que fiz.
–Pois sim. Acabo de fazer uma grande descoberta para a historiografia musical galega, e mesmo europeia, comentei-lhe sem valorizar muito o significado exato do que acabava de dizer.
–E você um bocadinho presunçoso, não é? Falou a Chefa, e dos seus beiços assomou o seu primeiro sorriso.

Aquela careta não resolveu o meu incomodo, ainda mais, provocou que deixara de ver a diretora do arquivo como uma Lolita de bata branca para se converter num rosto calculador e dominante.

–O senhor acaba de manipular um documento sem a nossa autorização para, além disso, causar-lhe danos tal vez irreparáveis. Vou pôr o caso em conhecimento do nosso serviço jurídico e já veremos que resolução tomamos ao respeito. Pelo momento pedir-lhe-ei que abandone o arquivo e não volte até ter notícias nossas.

Durante alguns minutos mais tentei defender-me. Disse-lhe que levava décadas investigando, que era o que se denomina um rato de bilbioteca. Disse-lhe que nessa mesma casa havia muitos empregados que me conheciam de sobra e que no posto que ela ocupava eu já tivera ocasião de ver passar a diferentes pessoas. Disse-lhe que jamais deteriorara nada e que tinha que me estar agradecida por ter descoberto nada menos que um dos Papeis de Humboldt do que até agora ninguém sabia rem.

–Humboldt o naturalista? Foi a única interrupção que a Chefa do Arquivo fez ao meu desiderato.
–Não, esse é o irmão. Este é Wilhelm, filólogo e um dos primeiros folcloristas em fazer recolhas na Península Ibérica, disse esperançado de que por fim estávamos a falar ao caso.

Um silêncio valorativo para espetar-me a queima-roupa:

–Repito. Vaiasse à sua casa e já nos poremos em contacto com Você.

Fui à sala, recolhi as minhas coisas e, aturdido, caminhei pelas ruas da Zona Velha na procura do meu carro. Sentia-me eufórico de ter feito o descobrimento da minha vida, mas a conversa com a Chefa do Arquivo converteu o meu cérebro num aparelho em muito mau estado. Procurei nos petos um paracetamol e só encontrei um blíster vazio que me causou um corte diminuto no polegar e um não tão pequeno síndrome de abstinência. Numa das minhas pálpebras notei que começava a bulir o tique nervoso associado aos meus processos migranhosos.  Procurei uma farmácia, comprei uma caixinha e me traguei uma grama da minha droga favorita com um grolinho da água fresca que manava dum torno da fonte da Praza.

Aguardei uns dias uma chamada do Arquivo, mas não existiu. Uma semana mais tarde vi no jornal a grande nova. No restauro dum livro do Arquivo Provincial fora encontrado um documento cujo autor resultou ser Wilhelm Humboldt. Segundo se contava no artigo, o livro tivera de ser tratado logo de que um investigador o deteriorara selvagemmente. Assim, os restauradores decataram-se de que o volume estava protegido por um papel que continha umas partituras e uns textos. Posto o feito em conhecimento da Diretora do Arquivo, esta de seguido percebeu-se da importância do achádego.
Na foto aparecia a máxima responsável junto com o presidente da Deputação.
Para o outro dia, cheguei ao Arquivo a primeira hora depois de toda uma noite sem conseguir fechar um olho. Devido às muitas visitas que realizara a esse centro, havia entre o funcionário do controlo de entrada e mais eu uma certa cordialidade. Escrevi o meu nome e caminhei apresado até a sala de investigadores. Detrás do balcão estava a mesma mulher que me atendera o outro dia. Acheguei-me a ela e pedi ver a Diretora do Arquivo. A funcionária disse-me que não me podia atender, seica estava muito ocupada. As minhas súplicas foram elevando o seu tono até se converter em imperativos. Os gritos tinham que se escutar na oficina da Diretora. Algum usuário da Sala fazia-me gestos de que calasse ou fosse gritar fora. Quando já estava a ponto de agredir a algum dos meus colegas chegou a Chefa acompanhada do funcionário do Controlo da Entrada o qual, levantado da sua cadeira, resultou ter uma envergadura intimidante. Juntos, o vigilante simiesco e a jovem diretora lembraram-me a um Quasimodo e a sua Esmeralda.

–Acalme-se, e faça o favor de acompanharmo-nos.

Segui a estranha parelha até uma sala próxima. A Diretora, sem modificar um bocado o seu gesto hierático disse-me:

–A partir deste momento você tem proibida a entrada nesta instituição.

Não foi por medo ao gigante, mais bem foi a humilhação a que me esmagou como a um inseto e me deixou sem recursos, sem palavras. Sai daquele arquivo convencido de que as partes mais cristalinas do meu cérebro foram definitivamente feitas cacos. 
Comecei a caminhar pelo Casco Velho. Várias vezes os meus passos reconduziram-me à porta do arquivo como um penitente, atormentado pela migranha e a luminosidade dolorosa duma manhã soalheira do mês de julho. Caminhava enjoado, médio aturdido por ter consumido mais gramas do habitual. No cristal duma montra vi o meu rosto refletido. Estava avelhantado, pálido, sentia lástima de mim mesmo, de ver-me naquele estado. Então pensei em ligar para Laura. Ela sempre me cuida, sempre está para me proteger... Se a tivesse ligado ter-me-ia dito que a aguardasse nalgum bar, que fosse ao banheiro, que abrira a torneira e molhara a frente e a nuca com água fresca, que me sentasse numa mesa longe da janela, que não tomasse mais pastilhas... Mas não liguei.

Deveram passar horas e uma vez mais estava a poucos metros da porta do arquivo, encostado a uma parede protegida pela sombra do prédio vizinho. Senti que me doía o polegar. Todo o tempo que vaguei pelo empedrado a minha mão direita deveu estar a manipular o botãozinho duma caneta de inoxcrom. Só agora escutava o seu clique metálico. A dor do polegar era insignificante comparado com o da minha cabeça. Então aconteceu. Da porta do arquivo saiu a Diretora deixando trás de sim os brilhos da sua longa cabeleira loura.  Não o pensei. Não foi premeditado. Acheguei-me a ela e com um certeiro golpe cravei a minha caneta na sua garganta, tão violentamente que a atravessei como se fosse de manteiga. Os seus olhos ficaram, por sua vez, cravados nos meus. Os seus lábios deixaram ver uns dentes branquíssimos e uma língua tão amável que teve desejos de a beijar. Quiçá o tivesse feito de não brotar da sua boca um coágulo de sangue que me pareceu piche, dum preto e espessura impróprio daquela princesinha. Caiu ao chão como um peso morto, como o que era. Então eu comecei a caminhar, agora sem rumo, cara a nenhuma parte. Levaria vinte ou trinta metros percorridos quando senti um forte golpe nas minhas costas. Depois do abalo estava tirado no chão, sentindo na minha cara o calor das lousas aquecidas pelo sol.

De resto já sabes. Um juízo. Uma condena. Sei que cometi um crime terrível, mas não sinto arrependimento. Nunca antes cometera um assassinato e nunca mais volverei a cometer outro, mas desse, repito, não me arrependo.
No cárcere não se está tão mal. Estou ao cargo da biblioteca e contra o que caberia pensar, está magnificamente dotada. Leio todo o dia, algo que na rua jamais pude fazer. Laura continua a cuidar-me. Pelo meu aniversário presenteou-me Disparem sobre o pianista, edição de luxo, do meu adorado Truffeau. E seria uma fina ironia pela sua parte? Que asneira perguntar-te qualquer coisa! Bem sei que tu jamais contestarás a esta carta. Pobre Laura, como pode querer-me tanto alguém que nunca me amou.

Mais nada. Muitas saudades.

                                                                                           Mário


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

nº 193 Um maço de notas furadas.


«Siempre imagine que el paraíso sería algún tipo de biblioteca.»
Jorge Luís Borges

A S. que me aprendeu uma história parecida.

A Prima A acariciava com a ponta do seu dedo indicador as etiquetas. AMB, AND, ANS, BOR, ANT... Olha ai! Que faz este BOR extraviado? Quem o colocaria neste lugar? Sei lá. Algum leitor não iniciado ou tal vez alguém que considerou irrelevante o cognome do poeta e tirou de estilo, de gosto pessoal, de ano ou país de nascimento para juntar este com aquele outro. A Prima A tinha bem de tempo para pensar nestas coisas por enquanto «fatigava andeis», como diria o seu adorado Borges —por acaso, aquele volume extravagante era do poeta argentino—. A citação é que tal vez não fosse dele. Lera-lha ao Vila-Matas e é sabido que desse farsante um não se deveria fiar jamais. Uma vez que o livro estava em suas mãos, a Prima A não foi quem de devolvê-lo ao seu lugar certinho sem abri-lo para ler qualquer verso.
¿Que podemos buscar en el altillo
sino lo que amontona el desorden?

Altillo soou-lhe a Prima A démodé, chegando à conclusão de os faiados hoje em dia nada ter a ver com os de antanho. Aqueles versos evocaram na Prima A o desvão da casa dos avôs, um lugar ao que subia com a Prima B quando as famílias se juntavam para celebrar ou para trabalhar nas leiras. As duas se adentravam no país das aranheiras e dos ratos, sem medos, sem fobias, na procura de tesouros no fundo das gavetas, dos armários ou das dúzias de caixas que deviam ser contemporâneas desses mouros dos que tanto nos falava a avozinha. Algumas vezes encontravam pequenas caixas de metal ou cofrezinhos de madeira. Essa sim que era boa! Dentro apareciam cartas com remites de Argentina, da Havana, de Uruguai... A nossa era uma família grande, dizia a avó, e a gente teve de emigrar a toda a parte.
Numa dessas viagens no tempo, as Primas encontraram um maço de notas dentro duma velha caixa de latão. Estavam dobradas pela metade e tinham uma singularidade que as fazia ainda mais especiais: um pequeno furado atravessava o maço permitindo olhar através dele como pelo olho duma porta. As Primas baixaram à cozinha para amostrar aos parentes aquele tesouro inesperado. O pessoal ficou admirado. Ninguém na casa sabia qual era a sua origem. Só quando o avô chegou de arrombar as vinhas, sentenciou emocionado:

- Trazei para aqui esses quartos! São meus e não quero que andeis a brincar com eles.

Os olhos vidrentos do avô desaconselharam aos parentes fazer qualquer pergunta. Só a avozinha foi sentar onde o seu homem, cônscia de que o velho não era de se emocionar por qualquer ninharia.

Passaram os anos e as meninas fizeram-se adultas. A Prima A gostava de falar com seu pai das coisas de antes, de quando era criança e matinha intacta a inocência primigênia. Foi então que o pai lembrou a história das notas furadas, sem reparar em que sua filha apenas conhecia do assunto a parte relativa ao descobrimento.
A Prima A soube então a história certa, uma história mais ou menos tal que assim:

«Na primavera do 1937, um vizinho nosso, falangista, meteu-lhe na cabeça ideias raras a um grupo de moços da redonda entre os quais estava o avô. Com pretensões de chegar a heróis, aqueles adolescentes apresentaram-se voluntários e foram enviados à frente de Vizcaya. Quando se deram conta do erro que cometeram já não havia volta atrás. Nada mais chegar, o filho do falangista, também enrolado na Santa Cruzada, morreu vítima do fogo amigo. –Justo pago, disseram muitas vozes na aldeia. Nas batalhas prévias ao assalto ao Cinturão de Ferro, os soldados dum e outro bando iam caindo em combate. Os republicanos, semiocultos em mínimas trincheiras, disparavam a chou, pelo que só algumas balas acertavam no alvo. Então, os soldados que continuavam com vida estavam na obriga de apoderar-se de quanto podia ser-lhes de utilidade: armamento, munição, alguma peça de roupa, víveres, dinheiro... O avô resistia-se a revistar aos seus companheiros mortos na procura de dinheiros, mas a ordem era contundente. No peto duma jaqueta encontrou o maço furado por uma bala republicana. As notas foram com ele o resto do tempo que botou na Guerra, para uma vez na casa terminar no fundo duma ucha velha.»

Na sua Biblioteca de Babel, a Prima A pensa no avô, agora muito velhinho e quase cego. Pensa em ele e novamente em Borges e nos seus versos:

«Ahora solo perduran las formas amarillas
y solo puedo ver para ver pesadillas.»

*  *
*

domingo, 11 de maio de 2014

nº 183 Na casa do Conde de Aurora.


Chegamos a Ponte de Lima ao anoitecer, nessa hora em que o prioritário começa a ser encontrar alojamento. A primeira tentativa foi um Hotel & Spa que fica mesmo na entrada da cidade: luxuoso, moderno, muito europeio. Só havia quarto para uma noite, mas ficamos tranquilos; de não encontrar outra coisa, quando menos hoje teremos onde pernoitar. Continuamos até o interior do casco antigo, na beira do rio e da ponte que dão nome à vila mais antiga de Portugal. Estacionamos. Tero desceu do carro, entrou numa farmácia e a continuação num restaurante para perguntar se alguém saberia dum quarto para alugar no centro histórico, um espaço urbano cuja formosura nos fez esquecer imediatamente o pós-moderno Hotel & Spa. Na botica não houve sorte, mas o dono do restaurante saiu a rua e ligou o seu telefone, como se os móbiles precisaram de céu aberto para funcionar. Também sem sucesso. Apesar das muitas marcações ninguém contestou. Então aconteceu algo:

—Ó Dona Rosa, faça favor de vir cá! —ponhamos por caso que Rosa era o nome da pessoa alvo dos gritos emitidos pelo nosso amigo hostaleiro—.

Aquela senhora véu até onde nós estávamos e perguntou amavelmente em que podia ajudar. O dono do restaurante contou-lhe apressadamente que uns espanhóis (sic) andavam a procura dum quarto com casa de banhos privativa para duas noites. Também contou que ele ligara para não sei que pessoal sem qualquer resultado. A Dona Rosa pegou no seu telemóvel e ligou por sua vez a alguém que tinha o quarto por nós sonhado. Quando já estávamos na ideia de que os 2.800 habitantes de Ponte de Lima ou alugam quartos ou levam no seu celular o número de alguma pessoa que o faz, soubemos que a tal Rosa era a funcionária de Turismo e que, mesmo fora de horas, não fazia outra coisa que o seu trabalho.

Só havia que andar uns cem metros desde onde estacionamos o carro até a hospedagem. No breve percurso pelas ruelas de Ponte de Lima, a funcionária municipal explicou que onde íamos dormir era um velho paço dedicado a turismo de habitação. 

—Vê aquela figura de bronze? —diz a Dona Rosa assinalando com seu dedo uma estátua a tamanho natural assenta num banco de pedra—. É o conde de Aurora. Vocês vão dormir no seu paço.

Impactado pela notícia e sem tempo para perguntar mais alguma coisa sobre o tal conde, chegamos até o casarão, um paço ajardinado do século XVIII —e com capela!—, algo vindo a menos, mas todavia com ar de fidalgo orgulhoso. 

O quarto pronto a ocupar não fazia parte do edifício principal. Na altura deveu ser uma dependência anexa, quiçá a vivenda para o serviço. A porta culminava um formoso patamar de pedra. Dois pregos cravados a uma viga sustinham as suas respectivas andorinhas que, mália estar a altura das nossas cabeças, semelhavam ignorarmos. Talvez aqueles passarinhos também pertenciam à aristocracia.

O quarto resultou modesto, quase franciscano, anacrónico em muitos aspectos, mas não isento de certo encanto. Uma parede meeira unia-nos a capela. Tal e como se viera desenvolvendo o drama, aquela elevadíssima cama de castanheiro presentava-se ante nós como um final feliz. Deitamos e dormimos os três na cama grande, já que a Dália nem quis saber nada da supletória.

No médio da noite acordei. Abri os olhos como se acabasse de pestanejar, sem restos de sono, estranhamente desperto. As minhas pequenas dormiam, oculto o quarto por uma escuridão sem fissuras. Na procura do mais mínimo sinal luminoso que me dera a certeza de não ter ficado cego, —é o que tem ser de natureza paranoica— girei o meu corpo 180º ficando frente da janela, o único vão, junto com a porta, aberto nos seculares muros da estância. Aconteceu então que uma minúscula partícula de luz começou a crescer, a fazer-se, lentamente, cada vez maior. Ao princípio só era luz, mas pouco a pouco fui vendo como aparecia um rosto com seu chapéu, um colo com seu laço, um corpo vestido à moda do Pessoa. Percebi que o rosto sorria, que o corpo tinha vida e antes de mais teve uma revelação: aquele ectoplasma era José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho, III Conde de Aurora. 

Suponho que os fantasmas têm um poder anestesiante, ou tal vez simplesmente um bom domínio da cena porque a pesares de estar a viver o meu primeiro sucesso paranormal nem teve medo, nem houve histeria, nem teve tentação de acordar as minhas companheiras de lençóis. Outra coisa que vivi com total naturalidade foi a de como entre o Conde e mais eu estabelecer-se-ia uma cordial conversa telepática na que acabaríamos falando de literatura, de gastronomia, de futebol, de política... Nesta conversa, além de mais, ficou provado que o meu sotaque em português telepático é mais que aceitável.

—Oi, galego, você sabe que eu vivi um ano na Galiza? Teve que me exilar a Vigo em 1919, depois da derrota dos monárquicos. 

—A Monarquia do Norte, —disse eu para impressionar—.

—Pois, a mais heroica contrarrevolução, —disse o Conde silabando com-tra-rre-vo-lu-ção com um jeitinho quase daliniano—. Anos mais tarde, —continuo meu parceiro de conversa— em 1923, teve um acidente na ponte internacional de Tui. O meu carro bateu contra o dum lisboeta. A condessa de Aurora —suponho que é coisa de nobles chamar pelo título às suas mulheres— foi lançada a grande distância, sofrendo graves feridas. 

Também me contou que eu não era o primeiro galego em visitar o paço. Já lá estivera o José Maria Castroviejo na altura em que premiaram ao Conde da Aurora com o I concurso Virgen Peregrina pelo seu trabalho El camino de las peregrinaciones portuguesas a Compostela. Para ilustrar-me o evento, D. José de Sá Coutinho tirou da sua carteira fantasma um velho recorte de jornal no que aparecia retratado em animada conversa junto ao intelectual de Tirã.



Sem que eu lho perguntara confessou-me gostar mais dos escritores galegos quando estes escreviam em espanhol. Esteve a ponto de me indignar, mas com que motivo? No fundo concordávamos plenamente.

Assim passou o tempo, nem sei quanto. Do mesmo modo que a luz foi nascendo, assim também esmoreceu paulatinamente. Quando apenas tão só ficava o seu rosto acesso, o Conde disse-me algo que cheguei a ouvir apenas segundos antes de ficar novamente dormido.

—Ao acordar, olha debaixo da cama. Lá verás uma mala e no seu interior um livro. Não há é um objeto qualquer. Possível que seja o livro mais importante da tua vida. 

Volvi a abrir os olhos. Desta volta o quarto estava plenamente iluminado pelo sol duma manhã esplêndida em Ponte de Lima. Dália queria acordar e esfregava os olhos com suas mãozinhas de veludo. A mamãe aproveitava os últimos segundos de paz matinal. Levantei-me e fui à casa de banhos. Urinei e lavei as mãos, o rosto, os dentes... Vi a minha imagem refletida no espelho: olheiras mais escuras do habitual, canas mais brancas, gesto fatigado e avelhentado. Dava pena. 

Foi então que lembrei ao Conde. Com a escova ainda entre os dentes sussurrei um castiço palavrão e durante uns intermináveis segundos fiquei paralisado. Cuspi o dentífrico e enxaguei a boca. Sai da casa de banhos lentamente e me sentei no cadeirão onde na noite passada se sentara o fantasma do Conde. Estava certo de que todo fora um sonho. Não acredito em Deuses nem em Santos, muito menos em fantasmas intelectuais, —quando se tratar de intelectuais defuntos, é claro—. 

Baixei os olhos. Da cama pendurava uma colcha onde estavam bordadas duas iniciais: C.A. A rés-do-chão, quase oculta pelas roupas desarrumadas da cama, vislumbrava-se uma mala de madeira pintada de verde com os acabamentos em metal. Fiquei tão surpreso que nem me podia mexer. Neste estado catatónico andei uns instantes ata que o sangue quis volver a circular pelo seu circuito de veas e capilares, regando o meu cérebro e activando os meus paralisados músculos. 

A mala no lugar onde foi encontrada.


Quando consegui despegar-me do cadeirão fui até a mala, tirei-a de debaixo da cama e dispus-me a abri-la. Efetivamente, dentro havia um livro em oitavo encadernado em pele, com a capa nua de caracteres e ilustrações. Para enquanto, Tero e Dália já participavam da cena observando atónitas a minha busca do tesoiro. Como bom enfermo de literatura, patologia descrita pelo Vila-Matas, sou vítima dum ritual à hora de acercar-me a uma nova literária. Sempre pego no livro com uma mão e o acarinho docemente com a outra antes de abri-lo. Depois arrecendo as suas páginas e após rematar a leitura, beijo a contracapa, agradecido pelo favor recebido.

O livro que me apresentara o Conde de Aurora tinha uma peculiaridade que só descobri quando o abri para cheira-lo: as suas páginas estavam em branco. Foi nesse instante que percebi a brincadeira do meu anfitrião. Aquele livro não era uma incitação a leitura, ele sabia que eu não precisava tal coisa, era, isso sim, um desafio a escrever.  
P. S. O Conde, durante a conversa dessa noite, seica os fantasmas o sabem tudo, lembrou que a sua morte aconteceu só um mês antes de eu nascer. José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho III Conde de Aurora(Ponte de Lima, 19 de abril de 1896; Ponte de Lima, 3 de Maio de 1969).


Lendo no cadeirão onde sentou o Conde.

                                           foto: © Dália do Pico Rodríguez

quarta-feira, 26 de março de 2014

nº 181 Morrer.


Vou morrer. Desta vez é claro que vou morrer. Já não posso mover as pernas, nem os braços. Tenho o corpo tudo paralisado; não posso falar. Será que já morri? Acho que não. Sinto dor no peito ao respirar. Se respiro, mesmo que muito dificultosamente, será que estou vivo, né! Mas não posso dizer que me pegue de surpresa. Á minha idade morrer deve ser o acostumado. Quando a gente fale de mim dirá: -Morreu no seu tempo! E terá razão, vivi anos de mais, por isso não tenho medo a morrer. Resulta curioso que o único que ainda me funcione bem seja o cérebro. Tal vez isto é sempre assim. Pode ser que a natureza nos permita conversar com nós mesmos para fazer balanço do nosso passo pela terra. Quiçá esse instante final seja o céu ou o inferno do que falam os padres. Eu nunca teve medo á morte. Fui bom com os meus e jamais odiei, assim que agora posso desfrutar do céu e morrer como um bendito. Pergunto-me quanta gente haverá na paróquia que morrera ou vaia morrer no mesmo quarto no que nasceu. No tempo dos meus pais seriam mais dos que agora, isso com certeza. A casa era mais pequena, quando eu nasci. Debaixo deste quarto estavam as cortes. Fizemos a cozinha após a vinda da tropa, a primeira cozinha... Meus pais queriam este quarto porque as janelas davam ao levante. Nós, mudamos para aqui quando os velhos morreram. Rosa morreu aqui e aqui vou morrer eu. O meu filho também nasceu neste quarto mas ele não, ele há morrer na Corunha, no seu andar, num prédio cheio de desconhecidos, ou num hospital, ou dum infarto no meio da rua, ou duma volta qualquer que lhe dê o corpo. A gente de agora não sabe onde vai morrer. Quando era um menino saia todos os dias pela porta da casa, olhava para a santinha do cruzeiro e fazia o sinal da cruz. Ainda ontem fiz o mesmo. Quando foi que deixei de ir à missa? Quando foi que deixei de crer? Seria no 36. Naquele tempo vi como muitos santarrões assassinavam vizinhos com a bênção da igreja. Eu já duvidava, mas daquela deixei de duvidar. Só lamento não ver à santinha uma vez mais. A minha santinha! De criança tinha grande devoção por ela. Pedia-lhe a diário para que curara ao avó; à vaca que tivera mal parto; para que acalmara o vento e papá não correra perigo no mar... Umas vezes a coisa funcionava e outras não. Quando funcionava era a santinha, tão boa; quando não, a culpa era nossa, grandes pecadores; ou minha em exclusiva, que sempre fui um mal cumpridor dos preceitos. Tudo mudou quando fui à tropa. Foi antes da guerra, pouco antes. Estávamos na África Espanhola. Éramos novos, cheios de vida. Fumávamos charutos marroquinos. Eu nunca fora de putas. Não, aquelas moças não eram putas. Tinham fome e nós éramos só um bocado mais ricos do que elas. Foi a minha primeira vez. Aqui deixara uma moça, mas nem um bico lhe dera. A Rosa foi a minha moça desde crianças... a única moça que teve. Quando volvi para a aldeia entrei na casa de madrugada. Minha mãe sentiu-me. Levantou-se da cama, abraçou-me e chorou enquanto me fritava uns ovos e aquecia uma cunca de leite... Meu pai ficou na cama. Quando nos encontramos ao outro dia, jantamos em silêncio e na sobremesa ofereceu-me um pito. Ao sair pela porta olhei mais uma vez para a santinha. Agora já não tinha aquela carinha de menina santa. Agora o seu rostro de mulher semelhava o mais formoso do mundo. Aqueles olhos! Aqueles beiços! Ainda estou vivo. Quanto tempo terei ainda de vida! Na tropa, durante a guerra, tal vez matei a um homem. Estávamos em revista e um sargento dirigia-se a nos a gritos para indicar-nos qualquer incorrecção no nosso aspecto. Havia que contestar –Si, mi sargento. Um basco, alto coma um salgueiro, esqueceu o de mi sargento e só disse -Si. Caiu-lhe uma hóstia que se escutou em tudo o pátio. O basco não o pensou duas vezes e duma porrada deslocou-lhe a mandíbula ao tal sargento. Houve conselho de guerra sumaríssimo. Criou-se um pelotão de voluntários. Como não houve suficiente pessoal escolheram a dedo alguns companheiros do pobrezinho soldado. Tocou-me a mim. Quando se deu a ordem de disparar eu fechei os olhos. Igual não lhe dei. Igual sim. Ao acabar a guerra casei contigo. Ai Rosinha!. O dia que casamos não houve festa. Estavas de luto pelo teu irmão. Era da CNT e ao acabar a guerra escondeu-se nas minas de Sanfins. Quando o prendeu a Guardia Civil estava feito um saco de ossos. Não podes-te visitá-lo. Na noite de bodas vim-te nua por primeira vez. Eras virgem, mas parecias mais experimentada do que eu. Montei-a, e quando a penetrava fechei os olhos. Então eu não estava com a Rosa. Com os olhos fechados podia ver o rostro da santinha, esses olhos, essa boca... Quando rematamos senti remorsos. Fui à igreja, acheguei-me ao confessionário e confessei. Mas só banalidades, como sempre. Na altura, havia que cumprir o trâmite. Cada vez que folhava com a Rosa, era a santinha a que se me oferecia. Uma noite acheguei-me ao cruzeiro, subi ao estrado e estiquei o braço. Com a ponta dos dedos toquei os seus beiços, os seus olhos, as suas bochechas. Toquei as dobras do seu manto, as suas mãos... Olhei ao meu redor para ter certeza de que ninguém me vira. O caminho estava deserto, só quando olhei para a casa é que te vi. Estavas parada na porta. Não disseste nada. Depois de nascer o nosso filho, começas-te a andar mal. Cada vez estava mais cativa, não havia dinheiro para andar em médicos. Manuel acabava de cumprir quatro anos quando morres-te. Nesta mesma cama. Neste mesmo quarto. Quando estavas a agoniar acerquei-me ao teu ouvido e contei-te o da santinha. Não te queria fazer dano, mas queria que souberas o meu secreto antes de nos separar. Sei que não te importou porque olhaste para mim com um sorriso. Esse sorriso transmitiu-me toda a tua compreensão. Não houve outra mulher, só a santinha, sempre no meu desejo e na minha devoção. Já não posso respirar! Alguém virá petar na porta quando vejam que não abri as contras. Vou pensar na santinha! Vou subir ao céu!




©Texto e fotografia: José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres, Rianjo.
Março de 2014.



sexta-feira, 14 de março de 2014

nº 180 XYZ


XYZ
A Marcial e a Alberto, por esta ordem.

Esta história aconteceu a fins da década de 90, uma época da minha vida sonora como uma fanfarra de ciganos romenos. Depois de muitos anos de ausências, X, Y e Z, três amigos da infância, encontram-se no átrio duma igreja. Vemos a cena desde os olhos emocionados de X, um músico hipocondríaco que acaba de descobrir que o seu umbral da dor é baixíssimo. Z é introduzido no templo nos ombros de quatro funcionários duma funerária, num caixão de mogno sobre cuja tampa reluz um crucifixo e um Cristo metalizados. 


Passados uns minutos, o pessoal que fica no átrio esta constituído por ateus, impontuais, tabaquistas e falabaratos, quase que todos homens. X, elemento do primeiro sector, sente-se um bocado incómodo, pois detesta a todos os demais grémios. Do interior da igreja abarrotada de gente brota uma melodia melancólica como trazida por um vento mareiro. A letra da canção é um trilho para este povo de marujos que tanta gentinha perdeu no mar: «Tu, has venido a la orilla / no has buscado, ni a ricos ni a pobre...». X, interessado desde criança pela história das canções, sabe que Pescador de hombres, foi composta por Cesáreo Gabaraín, um padre músico e desportista que mesmo chegou a ganhar um disco de ouro. Quando o coro recita os versos «en la arena he dejado mi barca / junto a ti, buscaré otro mar» as conversas no exterior cessam, as olhadas dirigem-se ao chão, há alguma bágoa nos mais sensíveis...

Num momento em que X faz um varrido de esquerda à direita do seu campo de visão, os seus olhos se cruzam na distância com os de Y, que sorri apercebido da presença do seu velho colega de turma. Y aproxima-se a X. Quando estão a poucos centímetros Y estende a sua mão:

-Venha mais cinco! -disse Y.
-Que caralho faz tu aqui? -contestou X.

Y, que viste um impecável traje preto, acomoda a gravata, move ligeiramente a cabeça e vai-se embora, silencioso, com o rostro contrariado, semi-oculto trás uns óculos de pasta preta. Há movimento no interior do templo. A gente começa a sair; soam os sinos; forma-se o cortejo fúnebre. X integra-se na comitiva e coloca-se de par de Z que agora é sustentado pelos parentes mais próximos. O padre lidera uns cantos ou plegárias acompanhados de sineta que faz pensar a X naquele poema de Alfredo Brañas chamado O avelhão no que se descreve um rito funerário localizado na vizinha Vila Nova. Por um instante, X esquece onde está e se imagina fazendo uma roda que caminha muito de vagar em torno ao catafalco de Z, emitindo os dançantes um zumbido monótono, sinistro... Na realidade, o que acaba de visionar é uma cena dum filme antigo, quiçá uma adaptação cinematográfica dum romance de Valle Inclán. Haverá alguma conexão Branhas↔Valhe Inclán? D. Alfredo esteve na nossa ilha em 1891 no bota-fora do vapor Teresita, propriedade dum industrial da localidade. →José Manuel de la Peña y Oña, bisavó de Valle Inclán, teve de se deslocar desde Vila Nova até a Arousa fugindo das represálias do exercito francês.→ No breve espaço de tempo que José Manuel de la Peña y Oña e a sua mulher Serapia Fernández Cardacid moraram aqui, tiveram uma criança de nome Francisco Peña, avô de Valle Inclán.→Durante os anos que seguiram à derrota dos franceses, os contrabandistas carcamãens assenhorearam-se do Mar da Arousa.→O mais ilustre desta casta de contrabandistas foi o genovês Benito Vicetto Beneto, pai do historiador ferrolano do mesmo nome. Todas estas ideias desordenadas vieram a cabeça de X durante os escassos cem metros que distavam desde a igreja até o campo-santo.

A entrada ao cemitério era ampla, mas ficou pequena ante as presas da multidão desejosa dum bom lugar desde o que contemplar a inumação. X deixou-se levar, mas quando se encontrou diante da boca aberta daquele nicho de formigão, compreendeu que não queria presenciar como esta se devorava ao seu amigo. Aos seus ouvidos, no médio dum silêncio sepulcral, chegaram os lamentos da mãe e das irmãs do defunto cada vez mais desatados. Saiu discretamente. Ao ultrapassar o umbral do recinto, divisou ao longe a figura de Y, que tal vez também não suportou a cena. X teve a impressão melodramática de ter assistido ao enterro duma grande amizade.

Na actualidade, ano 2014, X é um poeta frustrado e uma pessoa razoavelmente feliz. Y tem um largo historial de reclusões em cárceres de todo o estado. Numa delas chegou a coincidir, a típica casualidade galega, com P, outro ex-companheiro de estudos agora funcionário de prisões. Z é um pequeníssimo segmento da coluna azul dum diagrama que X viu recentemente na prensa local e cujo cabeçalho era exactamente este: Percentagem de homens menores de trinta anos falecidos na década dos noventa a consequência do consumo em massa de drogas.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

nº 179 Tetos

Tetos
Micro-novela erótica

C. I

Começou sendo apenas um ruidinho semelhante a uma pingueira a bater no parapeito da janela, fácil de ignorar ou de acomodar aos pensamentos. Mas na meia-noite os sons vão-se singularizando, fazendo-se grandes até atrair toda a tua atenção, ensimesmando-te. Agora percebia um ritmo de cadência lenta, monótona, ligeiramente sincopado. Percebia um tempo accelerando que me levou a pensar que no andar superior alguém praticava sexo sobre uma cama indiscreta. Incomodou-me. Por um instante senti que se estava a invadir a minha solidão, como se na distância alguém acertasse a meter-me o dedo na chaga. Mas a minha paranoia esvaeceu-se quando escutei a sua voz. Foi nascendo, ao igual que aquele ruidinho primigénio, um chio cadencioso ao pouco convertido em grito apenas dissimulado. Reconheci a voz duma mulher em pleno gozo, sentindo-me, hei de confessa-lo, moderadamente excitado. Mas, trás a aparição da Prima Donna, o ato correu com brevidade, ficando eu dormido quase que no instante em que caia o telão.

C.II

Ao outro dia deitei-me cedo. Não eram mais das dez quando pousava o livro sobre a mesinha e apagava a lâmpada, na esperança de que as horas ganhadas à noite haviam-me ajudar a sobreviver. Vã ilusão! Às doze da noite em ponto, novamente o ruidinho começou a invadir o meu quarto. Tão diminuto como era e tinha o poder de me acordar dum sono aparentemente profundo. Não pude evitar olhar o relógio de números luminosos. Não pude evitar escutar com atenção. Não pude evitar uma alegria súbita quando a voz feminina proclamou, urbe et orbi, o seu júbilo.  

C.III

Passaram quatro ou cinco dias nos que ao dar as doze começavam os ruídos, os gritos, sempre o mesmo protocolo; um mesmo início e um mesmo final. Para então, eu já não podia dormir sem presenciar o espetáculo que se desenvolvia no andar de acima. As minhas fortes enxaquecas  acostumaram-me a deitar  cedo, a levantar cedo, a levar uma rotineira vida de frade bento. A meia-noite era para mim um tempo proibido. Até a hora de começo da função lia passando, despreocupado, as folhas, sabendo que os de acima seriam pontuais. Alguma vez, cônscio desta pontualidade inexplicável, pôs o despertador na esperança de dormir umas horinhas, mas de nada serviu. Só com o grito final da rapariga o meu corpo se entregava, ficando dormido até a manhã seguinte.

C.IV

Um dia escutei uns tacões a bater no chão. Normalmente, antes de começar o ato, uma porta se abria; sentia-se algum deambular pelo andar; às vezes alguma urgência para estar na hora no lugar adequado. Mas só foi ao escutar os tacões que cai na conta de que durante todo este tempo os únicos ruídos humanos identificados por mim eram de mulher. Essa noite esteve mais atento ainda. Agora é que tinha a certeza: toda a atividade do andar superior era provocada por uma única dama a qual eu escutava enquanto ela se masturbava. As minhas sensações então foram contraditórias. Por uma parte senti por vez primeira que estava a violar a intimidade de alguém. Isto só o senti uns segundos.  O sentimento mais potente foi o de solidariedade ou mais bem admiração por uma mulher autossuficiente, liberada dos caprichos do sexo contrário.

C.V

Os dias a seguir não fizeram mais que confirmar as minhas suspeitas sobre a pontualidade onanista da vizinha de acima, além de fazer medrar a minha admiração por um ser tão motivado em dar-se prazer. A mim sempre me deu tanta preguiça!

C.VI

O prédio onde ambos morávamos era um lugar desolador em inverno. Das numerosas vivendas, apenas estavam ocupadas três ou quatro, sendo imperceptível o trânsito pelos espaços comuns: os patamares, os elevadores ou a garagem. Premi o botão e as portas metálicas abriram-se para mostrar o meu rosto avelhentado no espelho do fundo. Penetrei no habitáculo justo no momento em que batia a porta da rua. Coloquei a mão na célula fotoelétrica para evitar que se fecharam as portas. Quando aquela rapariga véu que ia partilhar o elevador surpreendeu-se tanto coma mim, colorando-lhe as suas façulas um assomo de rubor. Vestia um uniforme que reconheci ao momento e foi então que lembrei a sua presença junto ao posto de frutas do supermercado da esquina. Eu sou alérgico a numerosas frutas, nomeadamente aquelas que têm pelo, às tropicais e alguma mais que nem sei, assim que procuro não me acercar demasiado. Só compro maçãs que ela, em várias ocasiões, me pesou amavelmente. Tenho observado que quando a bicha e muito comprida, reclamam a fruteira pelo alto-falante, incorporando-se à linha de caixas e deixando o seu posto vago até que só ficam umas poucas pessoas a espera.

C.VII

Como poderia explicar-vos o momento em que o seu dedo pecador premeu o número de andar acima do meu. O ruborizado então fui eu. Sai do elevador e abri a porta, mas no canto de entrar, fiquei na espera de verificar que a fruteira abria, por sua vez, a porta correta. Todo correu como estava previsto. Passaram as horas. Aguardei a que o duplo zero substituíra ao 59. Novamente o ruidinho. Começava o espetáculo. Então senti vergonha. Lembrei a cara da rapariga das maçãs. Pensei que podia ser seu pai. Pensei na sua vontade de estar soa, de gozar ensimesmada. Pensei em Foucault e nos problemas de comunidade de  Schopenhauer: o velho professor atirou a sua vizinha Caroline Marquet  pelas escadas. Tudo aconteceu subitamente. Levantei-me e fui para o quarto do lado contrário. Durante os poucos meses que continuei a morar naquele andar, jamais volvi à minha antiga cama.

C. FINAL

Segui comprando-lhe maçãs. Paulatinamente melhorei muito das minhas dores de cabeça.

© José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres. Rianjo. 
Fevereiro de 2014.