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sábado, 28 de dezembro de 2024

nº 263 Seguindo os pasos de Castelao por Bruselas IV


Mais dos Velhos Mestres

Hoje estive em dois museus: o de instrumentos musicais e o Maison du Roi ou museu da cidade de Bruxelas. O primeiro pareceu-me ser uma coleção extraordinária, colocada num espaço, os antigos armazéns da Old England, bem lindo. Porém, a exposição dos instrumentos e o conceito do museu dececionaram-me muito. Mas aqui estamos a falar de Castelao e da sua passagem por Bruxelas, por isso voltemos aos velhos mestres.

Alegoria da Fertilidade
Jacob Jordaens

«Jordaens (1577-164o). Ten moitas cousas que me gustan e outras que non me gostan nada. É moi roxo de côr; pero ten cousas ben dibuxadas. Ten unha "Allegorié de la Fecondité" moi decorativa e chea de sensualidade; iste caro ten pintadas moitas froitas, pero polo visto son de Snyders». Diario 1921 p. 198

Parece que esta pintura representa a Pomona, a deusa romana das frutas, das árvores frutíferas, dos jardins e das hortas.O nu central, de costas para o espetador, divide a cena em duas metades, como a coluna de uma janela gémea. Ao se aproximar da tela, percebe-se a mestria com que Jordaens pintou a pele nua, com seus brilhos, sombras, áreas rosadas e até a celulite de uma das suas nádegas. Juntamente ao resto das ninfas e sátiros, formam um círculo que envolve a deusa, que segura no colo enormes cachos de uvas, brancas e tintas. Incluso a fealdade do rosto dos sátiros, não impedem que o tudo seja formoso.

A nossa Senhora das Sete Dores
Adriaen Isenbrant (ca. 1485-1551)

«Estiven pola mañán na Irexa de Notre-Dame. [...] O cadro máis fermoso é un de Adriaen Isenbrant que representa a Nosa Señora da Dôres ; a Virxen está sentada nunha especie de retablo onde están pintadas algunhas esceas da Paisón, e hai tal diferencia entre istas esceas e a figura da Virxen (que parece de David) que non parecen feitas pola mesma mán». p. 225

Uma das pinturas que mais me impressionou de todas as que vi até agora é Nossa Senhora das Sete Dores de Isembrant. É uma tela pintada com a técnica chamada grisaille, que consiste na utilização de pigmentação monocromática que nos dá a sensação de estarmos diante de uma obra escultórica. A iluminação do Museu de Arte Antiga de Bruxelas, en geral, deixa muito a desejar, mas mesmo assim o trabalho de Isembrant é fascinante. Castelao viu esta obra no seu local original, a Igreja de Notre Dame. Imagino que no século XVI, com a fraca iluminação que deve ter existido no interior dos templos, a imagem da Virgem pareceria ter sido esculpida diretamente na pedra. Quando eu e a Tero falávamos desta pintura, lembrei-me do Stabat Mater de Araújo Silva, que este ano ouvimos duas vezes nas vozes dos alunos do Conservatório de Santiago de Compostela. 

Tríptico da abadia de Dieleghem

Detalhe.

Jesus com Simao o Fariseu
Albretch Bouts (ca, 1455-1549)

                               
Detalhe

Desenhos de Castelao

Em Lucas 7: 36-50 podemos ler:

«36 E rogou-lhe um dos fariseus que comesse com ele; e, entrando em casa do fariseu, assentou-se à mesa.

37 E eis que uma mulher da cidade, uma pecadora, sabendo que ele estava à mesa em casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com unguento;

38 E, estando por detrás, aos seus pés, chorando, começou a regar-lhe os pés com lágrimas, e enxugava-lhos com os cabelos da sua cabeça; e beijava-lhe os pés, e ungia-lhos com o unguento.

39 Quando isto viu o fariseu que o tinha convidado, falava consigo, dizendo: se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois é uma pecadora.

40 E respondendo, Jesus disse-lhe: Simão, uma coisa tenho a dizer-te. E ele disse: Dize-a, Mestre.

41 Um certo credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos dinheiros, e outro cinquenta.

42 E, não tendo eles com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Diz, pois, qual deles o amará mais?

43 E Simão, respondendo, disse: tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou. E ele disse-lhe: julgaste bem.

44 E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês tu esta mulher? Entrei na tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta regou-me os pés com lágrimas, e os enxugou com os cabelos da sua cabeça.

45 Não me deste ósculo, mas esta, desde que entrou, não tem cessado de me beijar os pés.

46 Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com unguento.

47 Por isso digo-te que os seus muitos pecados são-lhe perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama.

48 E disse-lhe a ela: os teus pecados são-te perdoados.

49 E os que estavam à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este, que até perdoa pecados?

50 E disse à mulher: A tua fé salvou-te; vai-te em paz».

«Istes dous dibuxos son copias moi lixeiras de un anaquiño onde a Madalena límpalle os pés ó Noso Señor cos seus cabelos loiros. Ollando ises dous cachiños pasei perto de duas horas. ¡A humildade!». p. 184

Esta imagem de uma mulher lavando aos pés do macho alfa, utilizando o próprio cabelo, descreve perfeitamente o papel da mulher na Igreja Católica. Gostaria de pensar que se tivesse havido uma relação entre Cristo e Maria Madalena, esta teria sido de natureza diferente. Por isso não entendo muito bem o significado da palavra humildade, entre os pontos de exclamação de Castelao. Eu teria usado a de humilhação.

Retrato do Dr. J. Scheyring
Lucas Cranach o Velho

«Cranach (1472-1553). Dieste artista xa coñecía bastantes cousas que, pra decir a verdade, non me gostaban. O dibuxo parecíame amaneirado e a côr desagradabel. Pero niste Museo púxenme a ben con il, pois o retrato do Dr. Shewring é unha maravilla de todo». p. 197

É óbvio dizer que o pintor alemão Cranach foi um extraordinário retratista, como demonstra esta imagem do Dr. Scheyring, ou o ainda mais famoso retrato do seu amigo íntimo Lutero. Na minha opinião, a pintura que se conserva em Bruxelas e que Castelao copiou magistralmente, tem muita mais força do que a do teólogo reformista. O gesto severo, a austeridade tão típica do retrato flamengo, o olhar dogmático de quem acredita estar na posse da verdade absoluta, faz olhar para a pessoa representada com respeito, mantendo uma distância que, noutras pinturas dos antigos mestres, tantas vezes gostaria encurtar.

Retrato de Jacob van der Gheenste
Pieter Pourbus (ca. 1523-1584)

«O retrato de J. van der Gheentte é moi bo». p. 197

Para entender da austeridade no retrato flamengo, chega com olhar para o retrato de Pourbus.

Retábulo de Santa Ana
Quinten Metsys

Painel da direita

«Ollando hoxe no Museo o tríptico de Metsys e reparando nas espresións das figuras do painel da dereita que representa a morte de Santa Ana vin que a tristura que teñen as caras non parece tristura senón sorrisa. Isto mesmo se nota en outros primitivos i é que a contracción muscular que estira un pouco a boca é debida, se non lembro mal xa, ó risorio de Santorini en vez de sere por outro, ou outros músculos que baixan un pouco as comisuras dos beizos. A tristura eisprésase por liñas oblícuas de enriba a embaixo e de dentro a fora e non de enriba a embaixo ou de fora a dentro, como se ve nise mañífico cadro de Metsys, un dos mellores do Museo». p. 183

Esta é outra das minhas obras favoritas no museu. Em frente ao retábulo existe um banco onde se pode sentar e observar atentamente as cenas. A arquitetura no fundo da imagem dá uma perspetiva como se estivesses a ver o que está a acontecer mediante uma janela aberta na parede. A luz do quarto de Santa Ana é outro elemento avassalador, difícil de registar com câmara. Uma obra extraordinária, no catálogo de um dos maiores pintores da sua época.


E até aqui as minhas anotações do Museu de Arte Antiga de Bruxelas, que não serão as últimas, pois pretendo retornar. Agora é descansar e tomar um banho que espero seja menos dramático que o de Marat.

A morte de Marat
Jaques Louis David

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

nº 261 Seguindo os passos de Castelao por Bruxelas II


Os velhos mestres 

«Eu non sei saír do Museo antigo. Pásame eiquí o que me pasaba no Museo do Prado que non podía saír diante dos cadros de Patinir; pois ben eiquí as pernas non me levan fora das salas dos primitivos. Eu coido que se tivese algún cadro distes na miña casa min saia dela nin tampouco pintaba e ó mellor volvíame parvo». p. 185 Diario 1921

Hoje iniciamos o nosso passeio pelos Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique, visitando o de Magritte e o dos velhos mestres. Neste último, senti o mesmo que Castelao, a paz uterina de quem vive num espaço protegido, absolutamente a salvo da mediocridade estética do mundo polo que circulamos. Tudo o que vejo alimenta-me e, ao mesmo tempo, reconcilia-me com os humanos. Para o artista Rianxeiro, estar na casa de Brueguel, Bosch ou Huys deve ter sido como conhecer os seus distinguidos antepassados.

Em 1921, Magritte era um jovem de 23 anos que trabalhava numa papelaria. Não creio que Castelao conhecesse o trabalho limitado que o pintor belga tinha naquela época, mas de ter visto os seus desenhos, como os dos cartazes publicitários, tenho a certeza que se teriam dado bem. 

Cartaz de Allumettes Record
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

O resto da exposição Magritte teria muito a comentar, mas agora estamos a falar de Castelao. Precisarei de mais de uma visita para poder comentar todas as obras resenhadas no Diario, mas nesta primeira, as pinturas vieram ao nosso encontro como se Castelao tivesse deixado escrito na parede: eu estive aqui. 

A primeira das telas que reconhecemos foi a Pietá de Rogler van der Weyden (ca. 1399-1466). Deste autor também se mencionam, entre outros, um Calvario e o Retrato de Antoon van Bourgongië.

«O seu cadro “Calvaire” é unha maravilla; o Cristo é dun deseño perfeuto e a Virxen vestida de azul e San Xoán é moi simpático; o San Xoán do painel dereito (o cadro é un tríptico) é dunha beleza singular. A “Pietá” tamén é ademirabel; sobor dun fondo de aurora ou serán amarelento as figuras cheas de dor; a Virxen bicando a cara de Cristo coa tesura da morte. […] Ten, ademáis un retrato mañífico anque perde un pouco à beira dos de Memlig». Diarios 1921 p. 194

Calvaire
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Pietá
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Retrato de Antoon van Bourgongië
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Do tríptico de As Cenas das Tentações de Santo António parecem existir dezenas de exemplares. Algumas fontes, suponho que interessadas, consideram esta de Bruxelas a mais detalhada. Já conhecia as cópias de Madrid e de Lisboa, e a verdade é que não me sinto qualificado para fazer qualquer tipo de julgamento sobre o assunto. O que posso dizer é que, mais uma vez, senti-me privilegiado por estar fronte a um fragmento do meu imaginário particular.

As tentações de Santo António
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Desenhos de Castelao no Diario 1921

    
Fragmentos   

Desenho de Castelao no Diario 1921 
 
Fragmento

«O cadro de Bosch está cheo de humor e de caricaturas xeniaes; verdadeiramente san Antón non podía meditar à beira de tantas cousas divertidas. E logo non hai duas, nin três, nin catro: hai un cento. Asombra o inxenio de Bosch ollando iste cadro, tan bem pintado ademáis e cun paisaxe fermosísimo. Copie três couss que deixo pegadas eiquí. A 1ª é unha figura peluda que vai na popa dun barco moi divertido, leva unha espada espetada nunha perna ó xeito valente, do cú saille un garabullo e no garabullo leva un paxaro encoiro que lle dá peteirazos a unha vella que anda aboiada. A 2º é ise bandullo cun coitelo espetado; é unha cousa bem eispresiva e dun gran huorismo. A 3ª. É xenial; o aspeuto da figura que vai diante co moucho na cabeza fai rir; o tipo que vai detrás é dun huorismo fondo, é un lombudo e coxo ó mesmo tempo com aspeuto de proe de pedir, coa sua zanfona pendurada. Pis bem ista figura ten un detalle de humorismo que non o imaxinaría o mellor humorista inglés: iste malpocado é coxo porque ten… ¡un clavo espetado no pé! ¡É colosal!». Diario 1921 p. 181

Por hoje basta, amanhã mais, porém, não quero terminar este post sem mostrar uma imagem que, assim que a vimos, deixou-nos impressionados a mim e à Tero. É uma pequena pintura de Brueguel II intitulada A Procissão. 

As tentações de Santo António
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Desenho de Castelao
Que San Roquiño nos liberte de médicos,
abogados e boticarios! 

E aqui o dilema. Supostamente, o desenho de Castelao é anterior à visita a Bruxelas. É tudo uma casualidade? Que opinem os sabidos, que eu não sei.

E até amanha, que, parafraseando a Castelao no Diario, estou canso e dói-me a cabeça.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Nº 260 Seguindo os passos de Castelao por Bruxelas I


Passo este Natal, com a minha família, em Bruxelas, uma estadia que aproveitámos para seguir os passos de Castelao, na sua viagem a estas terras em 1921. O diário em que o artista Rianxeiro registou as suas impressões sobre a cidade, os seus monumentos e obras de arte, é um magnífico guia de viagem. 

Neste primeiro passeio pelo centro histórico encontrámos La Grande-Place, um espaço que já tinha visitado na adolescência, e que agora me parecia consideravelmente mais pequena. A primeira vez tive a sensação de estar no interior de um relicário gótico, decorado em latão e prata dourada por um joalheiro extraordinário. Desta volta, a sensação não foi muito diferente.

A Castelao a praça deixou-lhe com a boca aberta:

«É unha plaza chea de carauter cos seus edificios de pedra com dourados e as tendas de flores no medeo. Logo aquilo fálanos, ó esprito, dos tempos idos, cando o traballo estaba cheo de dinidade e cando a libertade adeministrativa e o arredismo cultural chegou a ter os seus mártires».

Os mártires aludidos devem ser Henri Voes e Jean Van Eschen, os primeiros protestantes queimados pola Inquisição e os Condes de Horn e de Egmont, decapitados, este último o protagonista da opus 84 de Beethoven. Estas execuções tiveram lugar em La Grand-Place, como consequência do fanatismo religioso da monarquia espanhola.

A procura da verdade

«Na Gran Plaza e nunha das “Maisons des Corporations” vin unha Verdade em pedra. Ista Verdade está a medeo vestir como a Venus de Milo; na man izquerda ten un libro aberto, o dedo índice da outra mán está pousado enriba dunha das páxinas do libro; o pé da Verdade está unha águia de pedra dourada. É certo que ista Verdade é un pouco más vella que as de Paris: pero ¡qué diferente concepción da Verdade! ¡O qué vai de tempos a tempos e de pobos a pobos!». p. 175

O edifício a que Castelao se refere é a chamada Maisón de la Louve (loba), no nº 5, perto da rue de la Tête d'Or. Sobre uma pilastra de pedra está a figura esculpida por Auguste Braekevelt. A inscrição que a acompanha diz: Hic Verum, Firmamentum Imperi, algo assim como: Eis a Verdade, apoio do Império.

Foto: Tero Rodríguez

Outra visita que fizemos foi ao Manneken-Pis, um meninho a urinar, símbolo de uma cidade que talvez pela sua diversidade cultural e religiosa, inscreveu no seu santoral comun, a um sátiro incontinente.

«Fíxenlle unha visita ó Manneken Pis o “plus vieux bourgeois de Bruxelles”. É unha cousa encantadora e dina de sinxeleza flamenga. Mesmo parece que foi il quén inventou a coarteta popular:

Ma nudité n’a rien de dangereux.

Sans péril, regardez-moi faire;

Je suis ici comme l’enfant heureux

Qui fait pipi sur le sein de as mère». Diario 1921 p. 174


A tradução da quadra poderia ser esta:

Não há nada perigoso na minha nudez,

não se preocupe, veja-mo fazer,

estou aqui como a criança feliz

que faz xixi no peito da mãe.


Talvez, Castelao, grande colecionador de postais, encontrou-se com uma como esta. 


Como uma anedota bizarra, encontramos o urinante vestido de Pai Natal. Parece que se acostuma a disfarçá-lo por diversos motivos, possuindo um guarda-roupa com mais de 800 fatos.

Amanhã iremos conhecer o Museu de Arte Antiga que tanto impactou o Castelão. Aí procuraremos as telas que destacou no seu diário.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

nº 236 O coreto da música de Castelao.

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Sr. D. Casto Sampedro:

Mi querido y respetable amigo: Su carta del 21 pasado, está caústica, pero justificada. Me gusta mucho cantar el mea culpa cuando se debe. sin embargo (siempre la rebaja) crea V. que también mi deseo de complacerle, han tenido que sufrir bastante por causa de tercero. Quiebras de no poder todos todo, como diría el P. Remigio Vilariño.
Hoy (antes no me atreví) le envio mi saludo por año nuevo y deseo que Dios se lo conceda (y me alegraré lo mismo del cacho que ya hemos despachado) con las mayores ganas y satisfaciones de espiritu y de cuerpo.
Y te envío mas fotografías que me manda un amigo mío, a quien había yo confiado su encargo de V. y al que solo la cartita levantó ampollas y obligó a moverse. Eso es, como el dice, complacer a V. a medias, ligero lo haré completamente, para hacer buena la frase de "vale mas tarde que nunca".
Hoy mismo le escribo a ese chico de Rianjo para que complete pronto el encargo. Yo haré que me amplien aqui las fotografias de los escudos, pues tengo quien me lo haga, con gusto y pronto.
Para disculparme algo también yo, le envío la carta de mi amigo de Rianjo. y hasta que vuelva de concurso, al que iré para el 15 y 16 de febrero, Dios mediante, no le contesto, sobre si hay algo en este archivo referente a gremios marineros. Lo haré entonces, lo mas presto posible también para desabraviarle.
Salúdale afestuosamente su afectísimo seguro servidor amº (amigo) y Cap. (capelão?) Valentín Losada.
Cangas. 24 de Enero de 1916.

O padre Valentín Losada é homem bem conhecido pelos afeiçoados a história rianxeira, entre outras coisas, por ser curmão de José Sánchez Vázquez, Chantre da Colegiada de Íria;  sobrinho do bispo auxiliar Araújo Silva e, sobre tudo, por ser tio do poeta Manuel António. Além disso, tem uma rua em Cangas onde exerceu o curato algo mais de trinta anos. Porém, a relação entre o antiquário pontevedrino Casto Sampedro e o padre Valentín deve proceder de quando este último esteve destinado na cidade do Leres. Em 1899, com apenas 25 anos, é nomeado professor de Religião nas Escolas Normais de Ponte Vedra.  Até 1905, que parte com destino a Cangas, vai acumular um longo currículo exercendo de capelão e professor de Religião e Moral do Instituto, coadjutor de São Bartolomé, Senhor Capelão da Adoração Nocturna e Ecônomo de Louriçã. 
A carta que acima transcrevo pertence a uma série epistolar entre duas pessoas que embora sendo amigos utilizam tratamento de respeito. Há que lembrar que ainda que ambos morreram em 1937, Casto Sampedro era vinte e cinco anos maior que o padre Valentín. O tom de desculpa da missiva remete a uma anterior na que o velho antiquário deveu mostrar todo o seu mau humor até ser apelidado pelo seu interlocutor de «caustico». O certo é que esta pequena carta achega-nos informações interessantes que me invitam a fazer algumas reflexões sobre os sujeitos que as escreveram:

1º Casto Sampedro e Folgar (Redondela, 1848; Ponte Vedra, 1937) foi o mais grande investigador galego da sua época em temas relacionados com o folclore –nomeadamente musical– e arqueológico. Não foi um investigador exclusivamente de gabinete, mas desde a sua oficina foi quem de tecer uma rede de informadores por toda a Galiza digna dum James Frazer e o seu Ramo de Ouro. Hoje, como demonstrou Xavier Groba, esta correspondência é fundamental para conhecer a atividade da comunidade científica criada na altura fora dos âmbitos estritamente académicos.

2º Nesta carta, assim como noutras das publicadas pelo professor Groba, a auctoritas de Casto Sampedro resulta mais que evidente. Tanto tem se está a pedir um favor ou a quem lho está a pedir –neste caso um crego–; se o que prometes não o dás em tempo e hora a reprimenda vai ser brutal. 

3º Na carta há algum dato mais que nos permite moldurar a figura de Valentín Losada. Aparece, por exemplo, uma citação a Remigio Vilariño Ugarte (Gernika, 1 de outubro de 1865 - Bilbao, 16 de abril de 1939) jesuíta ultracatólico e ultraconservador. Sabendo da posterior adesão do Padre Valentín ao levantamento militar, esta citação não espanta. Também conta na carta que os dias 15 e 16 de fevereiro assistirá a um concurso. Trata-se, não se levem a engano, do Concurso Geral a Curatos celebrado nesses dias em Compostela. É de supor que ele foi em qualidade de membro do tribunal examinador.

Mas o aspeto que me parece mais interessante reside no motivo principal pelo que Casto Sampedro pede a ajuda do rianxeiro Valentín Losada. O diretor da sociedade arqueológica está a recolher informação sobre o folclore dos mareantes nas Rias Baixas pelo que o padre pode enviar-lhe coisas tanto de Rianxo, onde nasceu, como de Cangas, onde exerce de crego. Também estava interessado pelos escudos, lavras que na vila de Castelao se contam por dúzias. Entre o material que lhe envia há uma coletânea de fotografias, a maioria muito parecidas as que já conhecemos e estão penduradas das paredes da Casa Museo de Manuel Antonio. O autor das fotos penso que pôde ser José Barreiro que em 1912 publica em Vida Gallega, nº 35, uma reportagem fotográfica sobre a vila rianxeira. 
Entre o pequeno grupo de fotografias há uma que centrou imediatamente a minha atenção. Trata-se duma instantânea dum coreto ou palco da música portátil, rodeado de multitude de gente que escuta o concerto duma banda de música. Esta é a imagem.

Museo de Pontevedra
Fundo Casto Sampedro

No avesso da fotografia aparece a lápis uma breve descrição do documento: «Rianjo. Romeria de Guadalupe. (Momento en que el público escucha á la Banda Municipal de Música de Santiago».

Não há dúvida que se trata do Campo de Abaixo, numa fotografia tirada possivelmente desde a farmácia de Seco, atual Museo do Mar. Sabemos pela carta do padre Valentín que a instantânea tem de ser anterior a 1916. Por tanto, só fica saber quando foi que a Banda Municipal de Santiago tocou nas festas da Guadalupe e isto aconteceu na convocatória de 1913.

No Barbeiro Municipal do 6 de agosto, comunica-se o nome do presidente da comissão de festas, D. Manuel Bravo Fernández, e a boa notícia de que o consistório vai achegar 100 pts para sufragar os gastos orçamentados. Assim na Gaceta de Galicia em 4 de setembro  sai o anúncio de que: «para las fiestas de Guadalupe que habrá en Rianjo, los días 13 y 14 ha sido contratada la música municipal de Santiago». O capital achegado pelo concelho era insuficiente para contratar à banda da capital da Galiza, já que segundo tarifas publicadas pela professora Beatriz Cancela Montes, por cada dia de saída fora de Compostela a agrupação cobrava 250 pts, mais gastos de transporte, manutenção e alojamento. Fará falta a ajuda generosa dos vizinhos e, sobre tudo, dos industriais, para chegar a esse capital, uma porção importante do gasto total dos três dias de festa de 1913.

Se resulta maravilhoso encontrar-se com uma imagem dum coreto no Rianxo da Belle Epoque, ainda mais o é depois de ler o seguinte comentário aparecido no Barbeiro Municipal: «En las fiestas de Guadalupe levantarase un artístico palco para la música en la parte más amplia del paseo de la Alameda, que será ornamentado por nuestro gran Castelao con su innegable pericia y primorosa originalidad». 06/09/1913
Não é a única vez que Castelao colaborou com as festas da virgem rianxeira. Anos antes, como é sabido, construíra o famoso cabeçudo que deu lugar ao conto Peito de Lobo. Ao ver em detalhe a imagem do coreto podemos assinalar três elementos básicos na decoração: grinaldas de flores, tabuleiros quadrados com o escudo de Rianxo e umas grandes cabeças de leão de cujas boca saem os motivos vegetais. Foram estas cabeças obra de Castelao? Pois resulta difícil de saber, mas ao engrandecer a imagem apreciam-se partes descascadas, como se se trata-se de material reutilizado.

    
Sobre a cabeça dos músicos há um volumoso farol de gás ou querosene, já que ainda tardaria uns anos em chegar a corrente elétrica a Rianxo. A minha ignorância a respeito destas luminárias é total mas tem certo parecido com lâmpadas penduradas marinheiras, das que eram habituais nos cais ou no interior dos barcos.


O concerto da Banda parece que foi um acontecimento tão extraordinário na vila que fixo pequenas as seguintes edições da festa rianxeira. A frente da agrupação musical vinha Francisco Martínez, músico que, por essas casualidades que sempre se encadeiam, Castelao caricaturou duas vezes. 

Col. part.

Apêndice:

Rianxo conta com um património material de grande valor histórico, etnográfico, artístico... Entre as edificações singulares vamo-nos encontrar com dois coretos ou palcos da música, cenário das velhas festas populares e hoje, infelizmente, quase restos arqueológicos.

1º Paróquia de Assados, ao pé da capela de Santa Lúcia.
Medidas:

Superfície da cena.

Base.

2º Paroquia de Isorna. Quintães.

Superfície da cena.

Base.

Se comparamos os coretos de Assados e Quintães vemos como ambas têm uma base octogonal, com umas dimensões muito parecidas e quase idênticas nas suas proporções. A relação entre o diâmetro da cena e um lado do octógono são nos dois casos de +- 2,6 e entre a altura da base e o largo dum dos lados +- 1,5. As paredes eram de madeira e tenho a impressão que o chão original também. Na atualidade, a superfície da cena foi preenchida com cimento alterando como seria esta nos tempos em que os coretos estavam em uso. Contudo, no de Quintães aprecia-se perfeitamente o sistema de ancoragem das tábuas de madeira à base para sujeitar as paredes do cenário. Em cada ângulo do octógono há um quadrado escavado para colocar um travesseiro. A poucos centímetro do buraco sai da pedra um ferro tal vez para ajustar e impedir que o madeiro se mova. 


Os coretos acostumam a ser colocados em praças e alamedas, em lugares que permitem a visão panóptica dos espetadores, sem edifícios encostados que dificultem a livre contemplação dos músicos sobre o cenário. Teria sido natural que a alameda de Rianxo contara com um coreto de obra, dada a tradição bandística da vila. Mas não foi assim, e isto faz-me perguntar o porquê sim os há noutras paróquias do concelho. Assados tem uma grande tradição musical, com bandas civis desde épocas em que os palcos da música estavam no seu apogeu. Aliás, neste caso, o coreto está no adro anexo à capela de Santa Lúzia, lugar de celebração de romaria e feira de gado. Tem uma localização lógica e parece natural que em dito lugar alguém decidira construir um palco para a banda. O caso de Quintães é muito mais esquisito. Se já este lugar está um bocado afastado do resto dos lugares da paróquia de Isorna, resulta que a eira onde se colocou o coreto está também afastado do núcleo principal de povoação de Quintães. Na imagem aérea de googel maps pode-se ver o lugar nada acostumado onde se localiza o coreto.

 O ponto vermelho indica o lugar exato.


Por último, cabe perguntar que futuro lhes aguarda aos coretos de Rianxo. O de Asados está no médio duma alameda, ao pé da igreja e dum parque para crianças. O de Quintães está sozinho, no médio duma eira que sempre que visitei estava sem gente. Com o passo do tempo e a sua total perda de funcionalidade, que fazer com essas edificações? A cantaria de ambos os dois coretos está em perfeitas condições, só o de Quintães sofreu um destroço num dos seus cantos. As pedras ainda estão lá, no lugar mesmo onde cairão. Entendo que administrativamente este tipo de edificações contam com algum tipo de proteção, mas, em qualquer caso, resulta difícil entender e explicar que o que hoje guardamos é uma simples base octogonal. E ainda bem!

                                                                               Canto da base danado.

Os palcos de música têm a sua origem ligada à democratização da música. As grandes músicas saem dos teatros para espaços abertos de entrada livre e gratuita. Num destes palcos, nas primeiras décadas do s. XX, um rianxeiro podia escutar adaptações de óperas de Verdi ou Wagner, zarzuelas de Chapí ou Amadeo Vives, passodobres de Soutullo ou Cambeses e até o mais atual cuplé da Meller. Agora, o número de músicos, as necessidades técnicas, o volume dos instrumentos daquela inexistentes, levaram as bandas a preferir cenários à italiana e só nos grandes coretos das capitais é que podemos, de quando em vez, assistir a um concerto de quiosque e alameda. Tal vez estou saudoso de mais, mas ainda tenho a esperança de que algum dia atualizemos estes espaços para dar-lhe uma nova vida musical. Que assim seja!

Bibliografia:
Cancela Montes, Beatriz La Banda Municipal de Santiago Santiago de Compostela; Andavira. 2016
Groba González, Xavier [Tese de doutoramento]

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quarta-feira, 1 de maio de 2019

nº 233 Antón Fraguas e Castelao.



«Non foi esquencido Castelao na nosa terra de Cotobade; a súa vida, o seu arte e a súa preocupación pola grandeza de Galiza xunguidos na delicadeza do esprito que transcendía ó seu redor queda eiquí como unha luz, como unha estrela nordesía alcendida no máis outo valo pra alumear os vellos camiños do val e da montaña.» Fraguas Fraguas, Antonio Boletín Real Academia Galega nº 357 1975 pp.54-59. 

Em 1926, Castelao passa o verão em Paços, Carvalhedo, concelho de Cotobade, por mor dos conselhos do doutor para melhorar a saúde do seu filho Alfonso Luís (Estrada, 01/II/1914; Ponte Vedra, 03/I/1928). Os ares de Cotobade apenas alargaram a vida do raparigo, mas sim foram frutíferos no que faz a respeito da produção artística do mestre rianxeiro. Os cruzeiros, incluídos nas Cruzes de Pedra da Galiza; o Carvalho do Quinteiro, que hoje tem cem anos mais e continua rejo e são; a dedicatória a Florentina no livro segundo de Cousas, uma moça que morreu de amor... Nesses dias estivais Castelao ia e vinha, como lhe relata a Díaz Baliño, à capital da província para ocupar-se do seu trabalho em Fazenda: «Querido Camilo: Eu estou en Carballedo (capital de Cotobade) e teño que vir á oficiña e logo marchar alá n'unha camioneta Ford máis ruín que os vellos coches de cabalos.» Rodríguez Castelao, Alfonso Daniel, Obra V. 6 Epistolario. Xerais, 2000. p.102

A passada fim de semana, na companha dos meus caros amigos Ramom Pinheiro e Xavier Grova, teve a oportunidade de comprovar como a memória dos dias em que Castelao morou em Cotobade continua viva na vizinhança de Loureiro. Foram, com certeza, os próprios vizinhos e vizinhas os que nos contaram como o pai de Antón Fraguas, Manuel Fraguas Rodríguez, convidou a Castelao a visitar a sua paróquia, cortesia ao antigo professor do seu filho no Instituto pontevedrino. Sentiam-se orgulhosos de que o prócer rianxeiro os visitassem e os imortalizassem coletivamente na sua obra nada menos que a través dos seus elementos mais simbólicos como o Carvalho do Quinteiro.

Lembrei, nestes dias de trabalho em torno a figura de Antón Fraguas, duma velha gravação em VHS conservada no Fondo Local de Música do Concello de Rianxo. Nela vê-se a retransmissão que a TVE-G fiz da chegada dos restos de Castelao a Galiza em 28 de junho de 1984, dia em que se cumpriam 48 anos do plebiscito do Estatuto de Autonomia. Daquela retransmissão apenas nos lembramos das imagens da carga policial, mas houve outros momentos dum valor histórico incalculável. Um desses momentos é o vídeo que agora vos presento. 

A cena que amostra a retransmissão é a seguinte: O avião que traz os restos de Castelao desde Buenos Aires sofre em Madrid uma ameaça de bomba. Devido a que o aparato está detido na capital do Estado, a TVE-G tem que improvisar sobre a marcha para cobrir esse tempo de mais. A pé de pista, no aeroporto de Lavacolha, um reporteiro –José Martínez Couselo– faz uma série de perguntas muito inteligentes a Antón Fraguas, Ramón Martínez López e a Xaquín Lorenzo, os quais, com as suas diferentes experiências vitais e ponlas do ideário galeguista dão uma lição magistral de história da Galiza contemporânea.

Sobre o que dizem, obviamente, eu tenho as minhas próprias opiniões. Poderia divagar a redor de episódios que me parecem imprescindíveis de contar, como o sequestro do Estatuto de Autonomia por elementos do governo republicano, tão bem contado em primeira pessoa por Emilio González López, mas prefiro que escuteis aos mestres. Por certo, onde fica já esse galego, o que falam os velhos galeguistas e que faz ruborizar aos políticos de hoje. Quanto fomos perdendo pelo caminho!

Nota: Lamento o deficiente som e imagem, mas acho que dá para perceber. 

Ver no canal: youtube



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

n° 218 O pano da Pimpinela.


Esta semana o meu cole excursionou à casa museu de Rosália de Castro em Padrão, espaço que visitei muitas vezes e que considero um desses lugares sagrados que todo bom galego deveria visitar. Gostaria muito de ter demorado mais tempo com os pequenos para lhes contar o muito que para mim significam algumas das peças expostas, como o retrato de Rosália de Castro de Modesto Brocos, pintor e escritor a quem tanto admiro.
Entre os objetos mais emotivos tanto para mim como para o resto d@s rianxeiro@s está um pano bordado que à atriz Maruxa Villanueva levou posto na estreia de Os velhos não deveram de namorar-se. Ela mesma conta a história da sua feitura:

«Mirade. Castelao díxonos que comprásemos un pedazo de tela negra, que fose seda ou cousa semellante; era un triángulo, o que é un mantón, e tendémolo nunha mesa; compramos tamén varios cachos de paño militar, de moitas cores, sobre todo encarnado, amarelo, verde, non recordo que máis... [...] Entón o señor Castelao ía facendo os trisquiños e colocándoos, debuxando os rosetós, e dona Virxinia hilvanábaos: por último, Maruja Iniesta coseunos a máquina, un por un, entusiasmada, a toda velocidade, con ese nervio que ela ten» POCIÑA, Andrés &; LÓPEZ, Aurora Maruxa Villanueva (Hércules ed.; s.l) p.77

O mais interessante para @s rianxeir@s está umas linhas mais abaixo do livro de Pociña e López, onde Maruxa expressa o seu desejo a respeito da futura localização do pano:

«O mantón doneino á casa museo de Rosalía. Pero espero que cando fagan o Museo de Castelao o leven alí, como corresponde. Xa lle lo teño dito ós membros do Patronato Rosalía de Castro. Alí, no Museo de Castelao, é onde lle corresponde estar, xa que se trata dunha obra feita por el. E penso que debe estar exposto, porque é unha pintura máis del, un cuadro feito de trapo, ¿non si?» Idem.

Suponho que se alguma vez há um museu dedicado a Castelao, com certeza que este estará localizado na casa dos Castelao, na rua de abaixo rianxeira, essa milha de ouro das letras galegas da que tão orgulhosos nos sentimos os que aqui vivemos. Assim que não esqueçamos o desejo da grande Maruxa Villanueva, por se os astros se aliam e algum dia habemus museu .

Foto: Covadonga Rodriguez.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

nº 206 O translado dos restos de Castelao e a política local.


Acaba de chegar às minhas mãos um exemplar do Barbeiro Municipal, porta-voz do BNG de Rianxo datado em julho do 1984. Acho que se trata dum documento muito interessante pelas razões a seguir:

1º Em 1981 são as primeiras eleições ao parlamento autónomo da Galiza. O BNPG-PSG –o BNG não tem a sua assembleia constituinte até setembro do 1982– obtém três deputados que são expulsos do parlamento por não jurar a constituição. Em Rianxo, nas municipais de 1983, o BNG consegue três vereadores que junto aos 15 do PSOE são as únicas forças pressentes no consistório.

2º Os restos mortais de Castelao chegam a Galiza o 28 de junho de 1984. Em Rianxo há um sentimento quase unánime de rechaço, que se vai traduzir em diversos atos e manifestações populares e institucionais. Mas não existe uma motivação única a este rejeitamento. Por uma parte estão os que consideram que Castelao deve de ser enterrado na sua terra natal e por outro, os que opinam que não se dão as condições políticas necessárias para a sua repatriação, pois o anseio soberanista do mestre não foi satisfeito com o estatuto de autonomia.

3º Não menos importante para mim é o texto em si mesmo. O galego que emprega o redator/a do documento parece-me esplêndido para o que, na altura, era comum aos textos políticos. Está cuidada a redacção, que resulta limpa e concisa, e também, e isso aumenta o meu interesse, a ortografia. 








domingo, 6 de março de 2016

nº 201 Lela. Uma canção à procura de um autor. II

II


Na postagem anterior comentávamos como no programa da TVG No bico un cantar salientavam o parecido entre a cantiga de tuna Fonseca e a Lela de 1941. O parentesco é evidente –chega com uma simples escuta para um se aperceber dele– porém, considero que não está de mais fazer uma pequena análise comparativa para ver quanto há de imitação entre estas duas peças, assim como com a Lela de Mato Hermida. Com tal fim utilizo um método ao que denomino análise paradigmático, o qual, obviamente inspirado na linguística, vem a assinalar a relação vertical dos signos, neste caso musicais, que pela sua presença ou ausência indicam um maior ou menor parentesco entre as melodias estudadas.

Para a realização do estudo coloquei num mesmo sistema as melodias, e por esta ordem, de Fonseca, a Lela de 1941 e a Lela de Mato Hermida, transportadas a uma tonalidade comum. As fontes utilizadas para a transcrição da Lela do 1941 são as partituras depositadas no Museo de Pontevedra e para a de Mato Hermida, a publicada pela sua filha(1). De Fonseca não temos uma partitura que podamos considerar canónica, pelo que tivemos que confiar nas que circulam por internet, assim como das gravações comerciais realizadas por diversas tunas. Cabe a hipóteses de que esta Fonseca, em certo modo contemporânea, seja sensivelmente diferente à que Castelao lembrava do seu passo pela estudantina.

Com linhas verdes ficam identificadas as identidades entre Fonseca e a Lela de 1941. A linha descontínua indica que para verificar tal identidade teve de utilizar várias vozes. Com linhas vermelhas marcamos as identidades entre Fonseca e a Lela de Mato Hermida ou entre as três. 

fig.1
 
fig.2
fig3

Para uma melhor compreensão das ilustrações, dividi a partitura em três secções. As partes A e B são tão similares entre Fonseca e a Lela de 1941 que poderíamos afirmar que estamos ante a mesma peça. É na parte C onde a obra estreada na Argentina manifesta uma maior originalidade a respeito da histórica canção de tuna. Mas, que é o que acontece com a Lela de Mato Hermida? Se nos fixamos nos quadrados vermelhos há muitas células comuns às três partituras, até frases quase completas, como nos compassos que vão do 14 ao 16. Especialmente ilustrativo me parece o sol #, segundo tempo do compasso 14, o qual se repete com uma recursividade suspeitosa no 22. Curiosamente, na parte C [figura 3], parece que há um maior parentesco entre a versão de Mato Hermida e Fonseca que entre esta última e a Lela do 1941. Incluso, e isto enreda tudo ainda mais, Mato Hemida faz no compasso 41 uma variante melódica de Fonseca calcada da do Lela de 1941. 

Por se ficasse qualquer dúvida de que Mato Hermida teve presente a valsa estudantil, observe-se a figura 4 onde o sombreado indica as identidades verticais, esta vez não das notas, senão das figuras.

fig.4


Á vista da figura 4, e se só tivéssemos em conta a figuração, poderíamos agora dizer que as três peças são a mesma com apenas ligeiras variações. Mas a velha definição lembrava que a música é a combinação de sons no tempo. Baseando-me nesta elementar equação é que, na minha opinião, a Lela de Mato Hermida resulta uma melodia original inspirada na valsa estudantil Fonseca
Para uma definição do Lela de 1941, melhor escutar primeiro ao próprio Castelao.

A Lela de Castelao.

Não há qualquer dúvida de que quando Castelao fez a letra de Lela soava na sua cabeça a música de Fonseca. Pretendia fazer uma espécie de fake sem muitos dissimulação. Na própria letra resulta evidente a homenagem. 

Fonseca:
Las calles están mojadas y parece que llovió,
son las lágrimas de una niña, por el amor que perdió.

Lela:
Estão as nuvens chorando por um amor que morreu,
estão as ruas molhadas de tanto como choveu.

Manuel Rosales(2), editor da obra narrativa de Castelao, remete-nos nas suas notas a um fragmento do Diario de 1921 cujo contido resulta esclarecedor:

«Iste teatro [teatro do Morcego] é o que ocupa todolos meus pensamentos, tanto que penso faguer disto na primeira ocasión alá na nosa Terra. A côr é a que trunfa por riba de todo e logo o bó gosto do que adapta o asunto. Pensando e pensando sobor disto xa se me ocurriron algunhas cousas pra faguer en Galicia. Velahí van: a) Nunha taberna de cibdade (a decoración ten de sere unha tolería de cousas pra decoración ten de sere unha tolería de cousas dise mal gosto subrime do pobo) ármase un orfeón onde canta o barbeiro o ebanista, o zapateiro o escribente de xuzgado e ainda o mesmo taberneiro pode botar un solo. O que canten ten de sere así como unha caricatura de calquera obra de orfeón: a obra "Oh, Pepita" poño por comparanza de cousa ridícula. [...] c) Nunha noite dun azul ben fondo con estrelas de córes cantan os mariñeiros orredor do lume onde se está cocendo a caldeirada, un canto que ainda podía sere acompañado por un acordeón. d) Duas rapaciñas ben fermosas e vestidas coma no tempo do romanticismo cantan un duo galego. As figuras estarán iluminadas pola luz da lua que entra por unha fenestra. [...] f) Unha parexa ou un grupo poden cantar calquera cousa axeitada; pero han sere os personaxes dun cadro pintado que non teña máis que as cabezas de verdade e tan ben pintadas que parezan brochazos. [...] Deixo apuntadas isas cousas que se me ocurriron. Do noso folklore sairán cousas a milleiros.» p. 107 (3)

Pareceria, portanto, que Castelao procurava com a sua Lela fazer uma caricatura de Fonseca, por ser esta melodia estudantil a que melhor poderia evocar as saudades do boticário. O autor do arranjo musical do 1941 –nós continuamos a defender a tese de que foi Emilio Pita– conhecia de primeira mão o transunto melódico de Lela, que como toda boa caricatura tinha de parecer-se ao original dentro da sua meditada deformação.

A Lela do Teatro Mayo.

Tal é como demonstramos na postagem anterior, uns meses antes da estreia de Os velhos não deberam de namorar no Teatro Mayo de Bos Aires em Agosto do 1941, Lela foi interpretada na cidade de Rosario. A peça foi cantada pelo grupo Ultreya, dirigido por Emilio Pita, com a presença do próprio Castelao. Imagino a sua emoção ao escutar os seus versos naquelas terras argentinas, tão longe dos palcos para os que a obra fora criada. Chegados a este ponto cabe fazer-se mais uma pergunta. Como e quem interpretou esta peça no Teatro Mayo na première de Os vellos...? Pois o certo é que a dia de hoje este aspeto continua a ser para mim uma autêntica incógnita.

A Companhia de Comedias contava com uma boa e experimentada cantante, a própria Maruja Villanueva que deu numerosos concertos como soprano. Além disso o elenco habitual da compoanhia contava com músicos e bailarinos habituais. Não parece, de igual modo, que a ideia de Castelao fosse que cantassem exclusivamente os atores, senão que a parte musical, de grande peso na obra, tinha de estar ilustrada por músicos e dançantes. Neste sentido são fulcrais as palavras duma pessoa que acudiu ao Teatro Mayo esse 8 de agosto do 1941, Eduardo Blanco Amor. Ele aponta a importância que para Castelao tem o elemento folclórico como base do teatro galego, contando coisas tão interessantes como estas:

«Hai, sin dúbida, na obra de Castelao alento folklórico, pro tal como debe sere; ponto de partida, non de chegada; proceso de estilización; raíz e non folla. No seu folklorismo trascendente está a sua galeguidade pura, como obra realizada e tamén como guieiro e proieción. niste senso é moi eispresiva a nota  que pon Castelao ao comezo, afirmando que a escribe "pra regalía do pobo" e "como proba de teatro galego". A sua intención era de "rematar os tres lances pra dar una sesión compreta de teatro, contando coa Polifónica de Pontevedra». p. 91 (4)

O feito de que a partitura que se conserva no Museo de Pontevedra e que supostamente foi executada nessa estreia do Teatro Mayo seja um arranjo a três vozes –as três escritas em clave de sol– indica que foi composta para ser cantada por um coro polifónico. Tal vez o coro Ultreya? 
Na mesma publicação donde tiramos a cita anterior, Blanco Amor termina pronunciando um alegado final verdadeiramente impactante:

«E direi, pra remate, que os "Vellos" non deben reestrenárese senón nas condicións devanditas, na sua realización mais óptima, ou sexa; desenrolo masivo das esceas rítmicas (danza dos espantallos, muiñeira final, etc.) ilustracións musicaes derivadas dos temas folklóricos pro levadas a grandes masas sinfónicas e vocaes; reprodución fidel das carautas e telóns, cuios orixinaes detalladísimos, –liña e coor–, consérvanse de mans de Castelao, etc.

Será moi lamentábel que un apresuramento eilitista ou unha devoción mal entendida levase a alguén a tentar esta faena, desfigurando o pensamento do autor e sin conecer a fondo o que se fixo i-o que non se pudo facere no seu estreno. Por non sere a de Castelao obra común, percisa de meios pouco comúns. Botar man dela sin telos será profanar un belido intento sin froitos para ninguén.» p. 92-93 op.cit.

A grandíssima Maruja Boga, a Pimpinela de Os velhos... morreu em Buenos Aires em 2010. Ela poderia ter despejado a maioria das minhas dúvidas e não deixo de me perguntar se ficará alguém com vida a quem poder interrogar. 

E então, apareceu uma gravação.

Pois sim. O meu caro amigo Ramom Pinheiro Almuinha, depois de ler a primeira parte deste pequeno trabalho, anunciou-me a existência duma gravação americana da Lela, posterior a estreia do Teatro Mayo e anterior a versão galega de Cantigas e Agarimos. O Ramom Pinheiro é uma das maiores autoridades a respeito das gravações históricas,  assim como dos coros de aquém e além mar. Nas suas anotações estava o seguinte apontamento:

  1. (TC 127) O' gaiteiro de Soutelo /Moi ben capeal'o vento. Foliada Int.Coro del Centro Gallego de Montevideo. Dir.: Pepe Rosales y J. de María. Acordeón: D. Treglia Sondor Nº 5582 - A, matriz 3498/9 Montevideo
  2. (TC 166) Lela. "Serenata compostelana" Coro del Centro Gallego de Montevideo. Drt.Pepe Rosales y J. de María. Acordeón D. Treglia. Sondor Nº 5583 - A, matriz 3500 Montevideo
A dia de hoje, e sem descartar novos achados, podemos afirmar que esta é a primeira gravação musical da Lela de Castelao. Como se pode apreciar nos créditos, a gravação correu a cargo do Coro do Centro Galego de Montevideu, e esta circunstância obriga-nos a falar brevemente desta cidade em relação as representações de Os vellos...

Depois da estreia do Teatro Mayo em 14 de agosto do 1941 na cidade de Buenos Aires, a companhia de Maruja Villanueva cruzou o rio para i-la representar a Montevideu, no Teatro Solis, em 8 de outubro do mesmo ano. Foi com motivo deste evento que Castelao gravou uma fonopostal, que pode ser escutada online na página do Consello da Cultura Galega. Após dessas datas não há um registo das vezes que a peça de Castelao foi representada no continente americano, mas deveram ser numerosas. Já na década de 50 nasce o Coro do Centro Gallego de Montevideo, que vai ter uma relação curiosa com Os vellos...

«El Coro del Centro Gallego de Montevideo se crea en el año 1951 y, desde ese momento, serán muchas las oportunidades en que ambas instituciones: (Casa de Galicia y Centro Gallego de Montevideo) actúen juntas con sus respectivos coros y cuerpos de baile. En el año 1953 los coros de estas instituciones cierran la velada de presentación de la película "Sabela de Cambados". Al año siguiente, el Coro del Centro Gallego y el Cuerpo de Baile de Casa de Galicia participan en la comedia musical de Pepe Fernández "Tamén os vellos poden namorarse"». p. 228 (5)

Penso que os créditos do disco do Coro do Centro Galego contêm um erro. O diretor deveu ser este Pepe Fernández, pai da grandíssima cantante galego-uruguaia Cristina Fernández e não Pepe Rosales, como se indica na etiqueta. Tendo em conta, precisamente, a numeração da etiqueta da companhia discográfica Sondor, a gravação realizou-se depois da representação da comédia musical de Pepe Fernández, por volta do 1954/1955. 

Ramom Pinheiro teve a lúcida intuição de que este disco em 78 r.p.m. podia estar na coleção da Deputação Provincial de Ponte Vedra, feito que foi confirmado pelo conservador e magnífico gaiteiro Óscar Ibáñez. Aguardamos poder escutar esta gravação e comprovar se se trata da mesma dos papeis do museu pontevedrino, aquela da estreia do 1941, ou se por contra estamos ante uma nova versão.

Há mais um aspeto que resulta interessante desta gravação: a presença dum acordeonista acompanhante, e isto provoca em mim outra pergunta: houve na estreia de Os vellos... músicos para acompanhar os coros? Tal vez também nas baixadas de telão? E de ser assim, quem foram estes músicos? Infelizmente mais uma vez desconheço a resposta. O que sim sei é que Castelao contava com que os houvesse. 

«Cando a muiñeira soe, ergueranse os espantallos, virán bailando, un após do outro, cara diante, para puntear a muiñeira acompañada por timbales e que, en algúns treitos, non quede máis que un bruído rítmico.» p. 557

Em relação com a presença ou ausência de músicos na première de Os vellos... simplesmente e como colofão a esta segunda postagem –haverá uma terceira?– deixo-vos duas fotografias publicadas na rede em www.culturagalega.org. no álbum dedicado ao gaiteiro Manuel Dopazo. Nelas aparece Manuel retratado em Montevideu com a companhia de Maruja Villanueva em 5-X-1940, foto do arquivo do investigador argentino Norberto Pablo Cirio. Na outra está a Pimpinela Maruja Boga com o próprio Manuel Dopazo, os acordeonistas Moreiras e o actor Tacholas, também do elenco de Os velhos... 

Menbros da Companhia de Teatro Maruja Villanueva
Foto dos Membros da Companhia do Teatro Maruja Villanueva,
na quinta da Casa de Galicia de Montevideo. Entre outros:
1. O tenor Domingo Caamaño; 2. o gaiteiro Manuel Lorenzo; 
3 e 4 a parella de baile Héctor e Sara Dopazo; 5. Carmen Dopazo:
6. Tito Dopazo: 7. Manuel Dopazo: 8. a cantante Maruja Villanueva, 
Isaura Vázquez. Montevideo 5-X-1940 (Arq. Norberto Pablo Círio)


Remate

Terá de haver um epílogo a este trabalho meu. Quiçá um epílogo ao modo de Os velhos não deveram de namorar onde os esqueletos nos contem a verdadeira história duma estreia jamais contada. A mim resta-me falar do contido dessa gravação uruguaia, com quase total certeza a primeira Lela com registo sonoro. Também gostaria de falar doutra Lela, a mais rianjeira de todas, a composta por Manuel Vicente "Chapi" como trilho musical na encenação de "Os velhos..." levada a cabo pelo grupo Airiños de Assados no 1982. Mais isso será doutra volta.