quinta-feira, 8 de agosto de 2019

nº 236 O coreto da música de Castelao.

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Sr. D. Casto Sampedro:

Mi querido y respetable amigo: Su carta del 21 pasado, está caústica, pero justificada. Me gusta mucho cantar el mea culpa cuando se debe. sin embargo (siempre la rebaja) crea V. que también mi deseo de complacerle, han tenido que sufrir bastante por causa de tercero. Quiebras de no poder todos todo, como diría el P. Remigio Vilariño.
Hoy (antes no me atreví) le envio mi saludo por año nuevo y deseo que Dios se lo conceda (y me alegraré lo mismo del cacho que ya hemos despachado) con las mayores ganas y satisfaciones de espiritu y de cuerpo.
Y te envío mas fotografías que me manda un amigo mío, a quien había yo confiado su encargo de V. y al que solo la cartita levantó ampollas y obligó a moverse. Eso es, como el dice, complacer a V. a medias, ligero lo haré completamente, para hacer buena la frase de "vale mas tarde que nunca".
Hoy mismo le escribo a ese chico de Rianjo para que complete pronto el encargo. Yo haré que me amplien aqui las fotografias de los escudos, pues tengo quien me lo haga, con gusto y pronto.
Para disculparme algo también yo, le envío la carta de mi amigo de Rianjo. y hasta que vuelva de concurso, al que iré para el 15 y 16 de febrero, Dios mediante, no le contesto, sobre si hay algo en este archivo referente a gremios marineros. Lo haré entonces, lo mas presto posible también para desabraviarle.
Salúdale afestuosamente su afectísimo seguro servidor amº (amigo) y Cap. (capelão?) Valentín Losada.
Cangas. 24 de Enero de 1916.

O padre Valentín Losada é homem bem conhecido pelos afeiçoados a história rianxeira, entre outras coisas, por ser curmão de José Sánchez Vázquez, Chantre da Colegiada de Íria;  sobrinho do bispo auxiliar Araújo Silva e, sobre tudo, por ser tio do poeta Manuel António. Além disso, tem uma rua em Cangas onde exerceu o curato algo mais de trinta anos. Porém, a relação entre o antiquário pontevedrino Casto Sampedro e o padre Valentín deve proceder de quando este último esteve destinado na cidade do Leres. Em 1899, com apenas 25 anos, é nomeado professor de Religião nas Escolas Normais de Ponte Vedra.  Até 1905, que parte com destino a Cangas, vai acumular um longo currículo exercendo de capelão e professor de Religião e Moral do Instituto, coadjutor de São Bartolomé, Senhor Capelão da Adoração Nocturna e Ecônomo de Louriçã. 
A carta que acima transcrevo pertence a uma série epistolar entre duas pessoas que embora sendo amigos utilizam tratamento de respeito. Há que lembrar que ainda que ambos morreram em 1937, Casto Sampedro era vinte e cinco anos maior que o padre Valentín. O tom de desculpa da missiva remete a uma anterior na que o velho antiquário deveu mostrar todo o seu mau humor até ser apelidado pelo seu interlocutor de «caustico». O certo é que esta pequena carta achega-nos informações interessantes que me invitam a fazer algumas reflexões sobre os sujeitos que as escreveram:

1º Casto Sampedro e Folgar (Redondela, 1848; Ponte Vedra, 1937) foi o mais grande investigador galego da sua época em temas relacionados com o folclore –nomeadamente musical– e arqueológico. Não foi um investigador exclusivamente de gabinete, mas desde a sua oficina foi quem de tecer uma rede de informadores por toda a Galiza digna dum James Frazer e o seu Ramo de Ouro. Hoje, como demonstrou Xavier Groba, esta correspondência é fundamental para conhecer a atividade da comunidade científica criada na altura fora dos âmbitos estritamente académicos.

2º Nesta carta, assim como noutras das publicadas pelo professor Groba, a auctoritas de Casto Sampedro resulta mais que evidente. Tanto tem se está a pedir um favor ou a quem lho está a pedir –neste caso um crego–; se o que prometes não o dás em tempo e hora a reprimenda vai ser brutal. 

3º Na carta há algum dato mais que nos permite moldurar a figura de Valentín Losada. Aparece, por exemplo, uma citação a Remigio Vilariño Ugarte (Gernika, 1 de outubro de 1865 - Bilbao, 16 de abril de 1939) jesuíta ultracatólico e ultraconservador. Sabendo da posterior adesão do Padre Valentín ao levantamento militar, esta citação não espanta. Também conta na carta que os dias 15 e 16 de fevereiro assistirá a um concurso. Trata-se, não se levem a engano, do Concurso Geral a Curatos celebrado nesses dias em Compostela. É de supor que ele foi em qualidade de membro do tribunal examinador.

Mas o aspeto que me parece mais interessante reside no motivo principal pelo que Casto Sampedro pede a ajuda do rianxeiro Valentín Losada. O diretor da sociedade arqueológica está a recolher informação sobre o folclore dos mareantes nas Rias Baixas pelo que o padre pode enviar-lhe coisas tanto de Rianxo, onde nasceu, como de Cangas, onde exerce de crego. Também estava interessado pelos escudos, lavras que na vila de Castelao se contam por dúzias. Entre o material que lhe envia há uma coletânea de fotografias, a maioria muito parecidas as que já conhecemos e estão penduradas das paredes da Casa Museo de Manuel Antonio. O autor das fotos penso que pôde ser José Barreiro que em 1912 publica em Vida Gallega, nº 35, uma reportagem fotográfica sobre a vila rianxeira. 
Entre o pequeno grupo de fotografias há uma que centrou imediatamente a minha atenção. Trata-se duma instantânea dum coreto ou palco da música portátil, rodeado de multitude de gente que escuta o concerto duma banda de música. Esta é a imagem.

Museo de Pontevedra
Fundo Casto Sampedro

No avesso da fotografia aparece a lápis uma breve descrição do documento: «Rianjo. Romeria de Guadalupe. (Momento en que el público escucha á la Banda Municipal de Música de Santiago».

Não há dúvida que se trata do Campo de Abaixo, numa fotografia tirada possivelmente desde a farmácia de Seco, atual Museo do Mar. Sabemos pela carta do padre Valentín que a instantânea tem de ser anterior a 1916. Por tanto, só fica saber quando foi que a Banda Municipal de Santiago tocou nas festas da Guadalupe e isto aconteceu na convocatória de 1913.

No Barbeiro Municipal do 6 de agosto, comunica-se o nome do presidente da comissão de festas, D. Manuel Bravo Fernández, e a boa notícia de que o consistório vai achegar 100 pts para sufragar os gastos orçamentados. Assim na Gaceta de Galicia em 4 de setembro  sai o anúncio de que: «para las fiestas de Guadalupe que habrá en Rianjo, los días 13 y 14 ha sido contratada la música municipal de Santiago». O capital achegado pelo concelho era insuficiente para contratar à banda da capital da Galiza, já que segundo tarifas publicadas pela professora Beatriz Cancela Montes, por cada dia de saída fora de Compostela a agrupação cobrava 250 pts, mais gastos de transporte, manutenção e alojamento. Fará falta a ajuda generosa dos vizinhos e, sobre tudo, dos industriais, para chegar a esse capital, uma porção importante do gasto total dos três dias de festa de 1913.

Se resulta maravilhoso encontrar-se com uma imagem dum coreto no Rianxo da Belle Epoque, ainda mais o é depois de ler o seguinte comentário aparecido no Barbeiro Municipal: «En las fiestas de Guadalupe levantarase un artístico palco para la música en la parte más amplia del paseo de la Alameda, que será ornamentado por nuestro gran Castelao con su innegable pericia y primorosa originalidad». 06/09/1913
Não é a única vez que Castelao colaborou com as festas da virgem rianxeira. Anos antes, como é sabido, construíra o famoso cabeçudo que deu lugar ao conto Peito de Lobo. Ao ver em detalhe a imagem do coreto podemos assinalar três elementos básicos na decoração: grinaldas de flores, tabuleiros quadrados com o escudo de Rianxo e umas grandes cabeças de leão de cujas boca saem os motivos vegetais. Foram estas cabeças obra de Castelao? Pois resulta difícil de saber, mas ao engrandecer a imagem apreciam-se partes descascadas, como se se trata-se de material reutilizado.

    
Sobre a cabeça dos músicos há um volumoso farol de gás ou querosene, já que ainda tardaria uns anos em chegar a corrente elétrica a Rianxo. A minha ignorância a respeito destas luminárias é total mas tem certo parecido com lâmpadas penduradas marinheiras, das que eram habituais nos cais ou no interior dos barcos.


O concerto da Banda parece que foi um acontecimento tão extraordinário na vila que fixo pequenas as seguintes edições da festa rianxeira. A frente da agrupação musical vinha Francisco Martínez, músico que, por essas casualidades que sempre se encadeiam, Castelao caricaturou duas vezes. 

Col. part.

Apêndice:

Rianxo conta com um património material de grande valor histórico, etnográfico, artístico... Entre as edificações singulares vamo-nos encontrar com dois coretos ou palcos da música, cenário das velhas festas populares e hoje, infelizmente, quase restos arqueológicos.

1º Paróquia de Assados, ao pé da capela de Santa Lúcia.
Medidas:

Superfície da cena.

Base.

2º Paroquia de Isorna. Quintães.

Superfície da cena.

Base.

Se comparamos os coretos de Assados e Quintães vemos como ambas têm uma base octogonal, com umas dimensões muito parecidas e quase idênticas nas suas proporções. A relação entre o diâmetro da cena e um lado do octógono são nos dois casos de +- 2,6 e entre a altura da base e o largo dum dos lados +- 1,5. As paredes eram de madeira e tenho a impressão que o chão original também. Na atualidade, a superfície da cena foi preenchida com cimento alterando como seria esta nos tempos em que os coretos estavam em uso. Contudo, no de Quintães aprecia-se perfeitamente o sistema de ancoragem das tábuas de madeira à base para sujeitar as paredes do cenário. Em cada ângulo do octógono há um quadrado escavado para colocar um travesseiro. A poucos centímetro do buraco sai da pedra um ferro tal vez para ajustar e impedir que o madeiro se mova. 


Os coretos acostumam a ser colocados em praças e alamedas, em lugares que permitem a visão panóptica dos espetadores, sem edifícios encostados que dificultem a livre contemplação dos músicos sobre o cenário. Teria sido natural que a alameda de Rianxo contara com um coreto de obra, dada a tradição bandística da vila. Mas não foi assim, e isto faz-me perguntar o porquê sim os há noutras paróquias do concelho. Assados tem uma grande tradição musical, com bandas civis desde épocas em que os palcos da música estavam no seu apogeu. Aliás, neste caso, o coreto está no adro anexo à capela de Santa Lúzia, lugar de celebração de romaria e feira de gado. Tem uma localização lógica e parece natural que em dito lugar alguém decidira construir um palco para a banda. O caso de Quintães é muito mais esquisito. Se já este lugar está um bocado afastado do resto dos lugares da paróquia de Isorna, resulta que a eira onde se colocou o coreto está também afastado do núcleo principal de povoação de Quintães. Na imagem aérea de googel maps pode-se ver o lugar nada acostumado onde se localiza o coreto.

 O ponto vermelho indica o lugar exato.


Por último, cabe perguntar que futuro lhes aguarda aos coretos de Rianxo. O de Asados está no médio duma alameda, ao pé da igreja e dum parque para crianças. O de Quintães está sozinho, no médio duma eira que sempre que visitei estava sem gente. Com o passo do tempo e a sua total perda de funcionalidade, que fazer com essas edificações? A cantaria de ambos os dois coretos está em perfeitas condições, só o de Quintães sofreu um destroço num dos seus cantos. As pedras ainda estão lá, no lugar mesmo onde cairão. Entendo que administrativamente este tipo de edificações contam com algum tipo de proteção, mas, em qualquer caso, resulta difícil entender e explicar que o que hoje guardamos é uma simples base octogonal. E ainda bem!

                                                                               Canto da base danado.

Os palcos de música têm a sua origem ligada à democratização da música. As grandes músicas saem dos teatros para espaços abertos de entrada livre e gratuita. Num destes palcos, nas primeiras décadas do s. XX, um rianxeiro podia escutar adaptações de óperas de Verdi ou Wagner, zarzuelas de Chapí ou Amadeo Vives, passodobres de Soutullo ou Cambeses e até o mais atual cuplé da Meller. Agora, o número de músicos, as necessidades técnicas, o volume dos instrumentos daquela inexistentes, levaram as bandas a preferir cenários à italiana e só nos grandes coretos das capitais é que podemos, de quando em vez, assistir a um concerto de quiosque e alameda. Tal vez estou saudoso de mais, mas ainda tenho a esperança de que algum dia atualizemos estes espaços para dar-lhe uma nova vida musical. Que assim seja!

Bibliografia:
Cancela Montes, Beatriz La Banda Municipal de Santiago Santiago de Compostela; Andavira. 2016
Groba González, Xavier [Tese de doutoramento]

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