sábado, 28 de dezembro de 2024

nº 263 Seguindo os pasos de Castelao por Bruselas IV


Mais dos Velhos Mestres

Hoje estive em dois museus: o de instrumentos musicais e o Maison du Roi ou museu da cidade de Bruxelas. O primeiro pareceu-me ser uma coleção extraordinária, colocada num espaço, os antigos armazéns da Old England, bem lindo. Porém, a exposição dos instrumentos e o conceito do museu dececionaram-me muito. Mas aqui estamos a falar de Castelao e da sua passagem por Bruxelas, por isso voltemos aos velhos mestres.

Alegoria da Fertilidade
Jacob Jordaens

«Jordaens (1577-164o). Ten moitas cousas que me gustan e outras que non me gostan nada. É moi roxo de côr; pero ten cousas ben dibuxadas. Ten unha "Allegorié de la Fecondité" moi decorativa e chea de sensualidade; iste caro ten pintadas moitas froitas, pero polo visto son de Snyders». Diario 1921 p. 198

Parece que esta pintura representa a Pomona, a deusa romana das frutas, das árvores frutíferas, dos jardins e das hortas.O nu central, de costas para o espetador, divide a cena em duas metades, como a coluna de uma janela gémea. Ao se aproximar da tela, percebe-se a mestria com que Jordaens pintou a pele nua, com seus brilhos, sombras, áreas rosadas e até a celulite de uma das suas nádegas. Juntamente ao resto das ninfas e sátiros, formam um círculo que envolve a deusa, que segura no colo enormes cachos de uvas, brancas e tintas. Incluso a fealdade do rosto dos sátiros, não impedem que o tudo seja formoso.

A nossa Senhora das Sete Dores
Adriaen Isenbrant (ca. 1485-1551)

«Estiven pola mañán na Irexa de Notre-Dame. [...] O cadro máis fermoso é un de Adriaen Isenbrant que representa a Nosa Señora da Dôres ; a Virxen está sentada nunha especie de retablo onde están pintadas algunhas esceas da Paisón, e hai tal diferencia entre istas esceas e a figura da Virxen (que parece de David) que non parecen feitas pola mesma mán». p. 225

Uma das pinturas que mais me impressionou de todas as que vi até agora é Nossa Senhora das Sete Dores de Isembrant. É uma tela pintada com a técnica chamada grisaille, que consiste na utilização de pigmentação monocromática que nos dá a sensação de estarmos diante de uma obra escultórica. A iluminação do Museu de Arte Antiga de Bruxelas, en geral, deixa muito a desejar, mas mesmo assim o trabalho de Isembrant é fascinante. Castelao viu esta obra no seu local original, a Igreja de Notre Dame. Imagino que no século XVI, com a fraca iluminação que deve ter existido no interior dos templos, a imagem da Virgem pareceria ter sido esculpida diretamente na pedra. Quando eu e a Tero falávamos desta pintura, lembrei-me do Stabat Mater de Araújo Silva, que este ano ouvimos duas vezes nas vozes dos alunos do Conservatório de Santiago de Compostela. 

Tríptico da abadia de Dieleghem

Detalhe.

Jesus com Simao o Fariseu
Albretch Bouts (ca, 1455-1549)

                               
Detalhe

Desenhos de Castelao

Em Lucas 7: 36-50 podemos ler:

«36 E rogou-lhe um dos fariseus que comesse com ele; e, entrando em casa do fariseu, assentou-se à mesa.

37 E eis que uma mulher da cidade, uma pecadora, sabendo que ele estava à mesa em casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com unguento;

38 E, estando por detrás, aos seus pés, chorando, começou a regar-lhe os pés com lágrimas, e enxugava-lhos com os cabelos da sua cabeça; e beijava-lhe os pés, e ungia-lhos com o unguento.

39 Quando isto viu o fariseu que o tinha convidado, falava consigo, dizendo: se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois é uma pecadora.

40 E respondendo, Jesus disse-lhe: Simão, uma coisa tenho a dizer-te. E ele disse: Dize-a, Mestre.

41 Um certo credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos dinheiros, e outro cinquenta.

42 E, não tendo eles com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Diz, pois, qual deles o amará mais?

43 E Simão, respondendo, disse: tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou. E ele disse-lhe: julgaste bem.

44 E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês tu esta mulher? Entrei na tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta regou-me os pés com lágrimas, e os enxugou com os cabelos da sua cabeça.

45 Não me deste ósculo, mas esta, desde que entrou, não tem cessado de me beijar os pés.

46 Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com unguento.

47 Por isso digo-te que os seus muitos pecados são-lhe perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama.

48 E disse-lhe a ela: os teus pecados são-te perdoados.

49 E os que estavam à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este, que até perdoa pecados?

50 E disse à mulher: A tua fé salvou-te; vai-te em paz».

«Istes dous dibuxos son copias moi lixeiras de un anaquiño onde a Madalena límpalle os pés ó Noso Señor cos seus cabelos loiros. Ollando ises dous cachiños pasei perto de duas horas. ¡A humildade!». p. 184

Esta imagem de uma mulher lavando aos pés do macho alfa, utilizando o próprio cabelo, descreve perfeitamente o papel da mulher na Igreja Católica. Gostaria de pensar que se tivesse havido uma relação entre Cristo e Maria Madalena, esta teria sido de natureza diferente. Por isso não entendo muito bem o significado da palavra humildade, entre os pontos de exclamação de Castelao. Eu teria usado a de humilhação.

Retrato do Dr. J. Scheyring
Lucas Cranach o Velho

«Cranach (1472-1553). Dieste artista xa coñecía bastantes cousas que, pra decir a verdade, non me gostaban. O dibuxo parecíame amaneirado e a côr desagradabel. Pero niste Museo púxenme a ben con il, pois o retrato do Dr. Shewring é unha maravilla de todo». p. 197

É óbvio dizer que o pintor alemão Cranach foi um extraordinário retratista, como demonstra esta imagem do Dr. Scheyring, ou o ainda mais famoso retrato do seu amigo íntimo Lutero. Na minha opinião, a pintura que se conserva em Bruxelas e que Castelao copiou magistralmente, tem muita mais força do que a do teólogo reformista. O gesto severo, a austeridade tão típica do retrato flamengo, o olhar dogmático de quem acredita estar na posse da verdade absoluta, faz olhar para a pessoa representada com respeito, mantendo uma distância que, noutras pinturas dos antigos mestres, tantas vezes gostaria encurtar.

Retrato de Jacob van der Gheenste
Pieter Pourbus (ca. 1523-1584)

«O retrato de J. van der Gheentte é moi bo». p. 197

Para entender da austeridade no retrato flamengo, chega com olhar para o retrato de Pourbus.

Retábulo de Santa Ana
Quinten Metsys

Painel da direita

«Ollando hoxe no Museo o tríptico de Metsys e reparando nas espresións das figuras do painel da dereita que representa a morte de Santa Ana vin que a tristura que teñen as caras non parece tristura senón sorrisa. Isto mesmo se nota en outros primitivos i é que a contracción muscular que estira un pouco a boca é debida, se non lembro mal xa, ó risorio de Santorini en vez de sere por outro, ou outros músculos que baixan un pouco as comisuras dos beizos. A tristura eisprésase por liñas oblícuas de enriba a embaixo e de dentro a fora e non de enriba a embaixo ou de fora a dentro, como se ve nise mañífico cadro de Metsys, un dos mellores do Museo». p. 183

Esta é outra das minhas obras favoritas no museu. Em frente ao retábulo existe um banco onde se pode sentar e observar atentamente as cenas. A arquitetura no fundo da imagem dá uma perspetiva como se estivesses a ver o que está a acontecer mediante uma janela aberta na parede. A luz do quarto de Santa Ana é outro elemento avassalador, difícil de registar com câmara. Uma obra extraordinária, no catálogo de um dos maiores pintores da sua época.


E até aqui as minhas anotações do Museu de Arte Antiga de Bruxelas, que não serão as últimas, pois pretendo retornar. Agora é descansar e tomar um banho que espero seja menos dramático que o de Marat.

A morte de Marat
Jaques Louis David

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

nº 262 Seguindo os passos de Castelao por Bruxelas III

 

Estátua de Francesc Ferrer i Guàrdia

Um dos primeiros monumentos da cidade de Bruxelas mencionados por Castelao é a estátua erguida ao pedagogo Francesc Ferrer i Guàrdia (1859-1909). Este monumento tem uma história curiosa e a citação do artista Rianxeiro merece algum comentário.

Mas vamos por partes. O homenageado é o pedagogo Ferrer i Guardia, criador da Escola Moderna, centro educacional de curta duração e com pouco alunado  (1901-1906). Apesar de tudo, talvez por ter uma imprensa, uma revista... a sua influência nas gerações futuras foi grande. Lembro-me de ter estudado este pedagogo e esta instituição no Magistério, o mesmo currículo que ignorava a existência da Escola Plurilingue e Jacinta Landa Vaz, ou a obra ensaística do seu marido, Vicente Viqueira. 

O facto é que o Estado Espanhol tomou o ilustre pedagogo catalão como bode expiatório dos acontecimentos ocorridos na Semana Trágica de Barcelona. Ferrer i Guàrdia foi baleado no fosso do Castelo de Monjuic em 13 de outubro de 1909, apesar dos fortes protestos internacionais, que exigiam o perdão do rei Alfonso XIII. Como sempre, o Bourbon olhou para o outro lado, concretizando a demissão retórica de Maura, presidente do Governo, que não conseguia acreditar no seu despido.

Após o encerramento da La Escuela Moderna, Ferrer i Guardia viajou para Paris e Bruxelas, período no que funda a Ligue International pour l’Éducation Rationnelle de l’Enfance. 

Conhecida a execução do pedagogo catalão, iniciou-se um movimento popular na capital belga pedindo a criação de um monumento a ele dedicado. Este foi inaugurado em 5 de novembro de 1911, sendo os seus autores o escultor Auguste Puttemans e o arquiteto Adolphe Puissant, ambos franc-maçons, como Ferrer i Guàrdia. Na realidade, a construção deste monumento tem muito a ver com a fraternidade maçónica internacional, sendo dedicado aos mártires da liberdade de consciência, como se pode verificar na inscrição original.

A estátua não durou muito, pois durante a Primeira Guerra Mundial, após a entrada do exército alemão em Bruxelas, foi abalada e só foi devolvida ao seu local original em 1919. Nesse lugar, a praça de Sante Catherine, foi onde Castelao contemplou a escultura dedicada a Francesc i Guàrdia.

Sua visão provocou estas poucas, mas interessantes reflexões em Castelão.

«Vin a estatua de Ferrer. É moi interesante como escultura. Unha figura alongada cara o ceo, como se fose do Greco, non pode simbolizar a liberdade de concencia… de Ferrer. Fixeron bem em borrarlle o nome de Ferrer pois non merecía ise moimento. E a libertade de concencia dos avanzados tampouco pode simbolizarse cunha figura que se alonga cara enriba em sentido vertical senón como unha figura que se alonga em sentido horizontal. Os avanzados que viran as costas à gran plaza de Bruselas non podem falar de libertade». Diario 1921 p. 175

Parece evidente a pouca simpatia que Castelao teve com os internacionalistas. No Diário há várias reflexões sobre o arredismo galego, o que passa necessariamente pelo conhecimento de nós e por uma soberania estética que parte do facto diferencial para invadi-lo tudo. Quando Castelao fala de pessoas avançadas, acho que ele coloca no mesmo saco a anarquistas, maçons, esperantistas e qualquer outro utópico que sonhe com uma sociedade global, uma massa internacional de iguais. Castelao estuda a diferença, o folclórico, o artesanal. Se um pintor belga se parece com outro pintor francês ou espanhol, ele despreza-o porque trai a sua tradição. Sem este ensimesmamento cultural, Castelao não teria construído em torno de si o seu universo estético, o universo estético no qual nos vemos refletidos.




Placa com um texto de Francesc Galcerán Ferrer
advogado defensor de Ferrer i Guàrdia.

Inscrição na base da estátua

Em 1984, por iniciativa do estudantado, a estátua foi transladada desde a sua localização original a enfrente da fachada da Universidade Livre de Bruxelas.


Posteriormente, em 1990, a cidade de Barcelona inaugurou uma réplica da estátua de Bruxelas, no lugar onde o pedagogo catalão fora assassinado. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

nº 261 Seguindo os passos de Castelao por Bruxelas II


Os velhos mestres 

«Eu non sei saír do Museo antigo. Pásame eiquí o que me pasaba no Museo do Prado que non podía saír diante dos cadros de Patinir; pois ben eiquí as pernas non me levan fora das salas dos primitivos. Eu coido que se tivese algún cadro distes na miña casa min saia dela nin tampouco pintaba e ó mellor volvíame parvo». p. 185 Diario 1921

Hoje iniciamos o nosso passeio pelos Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique, visitando o de Magritte e o dos velhos mestres. Neste último, senti o mesmo que Castelao, a paz uterina de quem vive num espaço protegido, absolutamente a salvo da mediocridade estética do mundo polo que circulamos. Tudo o que vejo alimenta-me e, ao mesmo tempo, reconcilia-me com os humanos. Para o artista Rianxeiro, estar na casa de Brueguel, Bosch ou Huys deve ter sido como conhecer os seus distinguidos antepassados.

Em 1921, Magritte era um jovem de 23 anos que trabalhava numa papelaria. Não creio que Castelao conhecesse o trabalho limitado que o pintor belga tinha naquela época, mas de ter visto os seus desenhos, como os dos cartazes publicitários, tenho a certeza que se teriam dado bem. 

Cartaz de Allumettes Record
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

O resto da exposição Magritte teria muito a comentar, mas agora estamos a falar de Castelao. Precisarei de mais de uma visita para poder comentar todas as obras resenhadas no Diario, mas nesta primeira, as pinturas vieram ao nosso encontro como se Castelao tivesse deixado escrito na parede: eu estive aqui. 

A primeira das telas que reconhecemos foi a Pietá de Rogler van der Weyden (ca. 1399-1466). Deste autor também se mencionam, entre outros, um Calvario e o Retrato de Antoon van Bourgongië.

«O seu cadro “Calvaire” é unha maravilla; o Cristo é dun deseño perfeuto e a Virxen vestida de azul e San Xoán é moi simpático; o San Xoán do painel dereito (o cadro é un tríptico) é dunha beleza singular. A “Pietá” tamén é ademirabel; sobor dun fondo de aurora ou serán amarelento as figuras cheas de dor; a Virxen bicando a cara de Cristo coa tesura da morte. […] Ten, ademáis un retrato mañífico anque perde un pouco à beira dos de Memlig». Diarios 1921 p. 194

Calvaire
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Pietá
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Retrato de Antoon van Bourgongië
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Do tríptico de As Cenas das Tentações de Santo António parecem existir dezenas de exemplares. Algumas fontes, suponho que interessadas, consideram esta de Bruxelas a mais detalhada. Já conhecia as cópias de Madrid e de Lisboa, e a verdade é que não me sinto qualificado para fazer qualquer tipo de julgamento sobre o assunto. O que posso dizer é que, mais uma vez, senti-me privilegiado por estar fronte a um fragmento do meu imaginário particular.

As tentações de Santo António
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Desenhos de Castelao no Diario 1921

    
Fragmentos   

Desenho de Castelao no Diario 1921 
 
Fragmento

«O cadro de Bosch está cheo de humor e de caricaturas xeniaes; verdadeiramente san Antón non podía meditar à beira de tantas cousas divertidas. E logo non hai duas, nin três, nin catro: hai un cento. Asombra o inxenio de Bosch ollando iste cadro, tan bem pintado ademáis e cun paisaxe fermosísimo. Copie três couss que deixo pegadas eiquí. A 1ª é unha figura peluda que vai na popa dun barco moi divertido, leva unha espada espetada nunha perna ó xeito valente, do cú saille un garabullo e no garabullo leva un paxaro encoiro que lle dá peteirazos a unha vella que anda aboiada. A 2º é ise bandullo cun coitelo espetado; é unha cousa bem eispresiva e dun gran huorismo. A 3ª. É xenial; o aspeuto da figura que vai diante co moucho na cabeza fai rir; o tipo que vai detrás é dun huorismo fondo, é un lombudo e coxo ó mesmo tempo com aspeuto de proe de pedir, coa sua zanfona pendurada. Pis bem ista figura ten un detalle de humorismo que non o imaxinaría o mellor humorista inglés: iste malpocado é coxo porque ten… ¡un clavo espetado no pé! ¡É colosal!». Diario 1921 p. 181

Por hoje basta, amanhã mais, porém, não quero terminar este post sem mostrar uma imagem que, assim que a vimos, deixou-nos impressionados a mim e à Tero. É uma pequena pintura de Brueguel II intitulada A Procissão. 

As tentações de Santo António
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Desenho de Castelao
Que San Roquiño nos liberte de médicos,
abogados e boticarios! 

E aqui o dilema. Supostamente, o desenho de Castelao é anterior à visita a Bruxelas. É tudo uma casualidade? Que opinem os sabidos, que eu não sei.

E até amanha, que, parafraseando a Castelao no Diario, estou canso e dói-me a cabeça.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Nº 260 Seguindo os passos de Castelao por Bruxelas I


Passo este Natal, com a minha família, em Bruxelas, uma estadia que aproveitámos para seguir os passos de Castelao, na sua viagem a estas terras em 1921. O diário em que o artista Rianxeiro registou as suas impressões sobre a cidade, os seus monumentos e obras de arte, é um magnífico guia de viagem. 

Neste primeiro passeio pelo centro histórico encontrámos La Grande-Place, um espaço que já tinha visitado na adolescência, e que agora me parecia consideravelmente mais pequena. A primeira vez tive a sensação de estar no interior de um relicário gótico, decorado em latão e prata dourada por um joalheiro extraordinário. Desta volta, a sensação não foi muito diferente.

A Castelao a praça deixou-lhe com a boca aberta:

«É unha plaza chea de carauter cos seus edificios de pedra com dourados e as tendas de flores no medeo. Logo aquilo fálanos, ó esprito, dos tempos idos, cando o traballo estaba cheo de dinidade e cando a libertade adeministrativa e o arredismo cultural chegou a ter os seus mártires».

Os mártires aludidos devem ser Henri Voes e Jean Van Eschen, os primeiros protestantes queimados pola Inquisição e os Condes de Horn e de Egmont, decapitados, este último o protagonista da opus 84 de Beethoven. Estas execuções tiveram lugar em La Grand-Place, como consequência do fanatismo religioso da monarquia espanhola.

A procura da verdade

«Na Gran Plaza e nunha das “Maisons des Corporations” vin unha Verdade em pedra. Ista Verdade está a medeo vestir como a Venus de Milo; na man izquerda ten un libro aberto, o dedo índice da outra mán está pousado enriba dunha das páxinas do libro; o pé da Verdade está unha águia de pedra dourada. É certo que ista Verdade é un pouco más vella que as de Paris: pero ¡qué diferente concepción da Verdade! ¡O qué vai de tempos a tempos e de pobos a pobos!». p. 175

O edifício a que Castelao se refere é a chamada Maisón de la Louve (loba), no nº 5, perto da rue de la Tête d'Or. Sobre uma pilastra de pedra está a figura esculpida por Auguste Braekevelt. A inscrição que a acompanha diz: Hic Verum, Firmamentum Imperi, algo assim como: Eis a Verdade, apoio do Império.

Foto: Tero Rodríguez

Outra visita que fizemos foi ao Manneken-Pis, um meninho a urinar, símbolo de uma cidade que talvez pela sua diversidade cultural e religiosa, inscreveu no seu santoral comun, a um sátiro incontinente.

«Fíxenlle unha visita ó Manneken Pis o “plus vieux bourgeois de Bruxelles”. É unha cousa encantadora e dina de sinxeleza flamenga. Mesmo parece que foi il quén inventou a coarteta popular:

Ma nudité n’a rien de dangereux.

Sans péril, regardez-moi faire;

Je suis ici comme l’enfant heureux

Qui fait pipi sur le sein de as mère». Diario 1921 p. 174


A tradução da quadra poderia ser esta:

Não há nada perigoso na minha nudez,

não se preocupe, veja-mo fazer,

estou aqui como a criança feliz

que faz xixi no peito da mãe.


Talvez, Castelao, grande colecionador de postais, encontrou-se com uma como esta. 


Como uma anedota bizarra, encontramos o urinante vestido de Pai Natal. Parece que se acostuma a disfarçá-lo por diversos motivos, possuindo um guarda-roupa com mais de 800 fatos.

Amanhã iremos conhecer o Museu de Arte Antiga que tanto impactou o Castelão. Aí procuraremos as telas que destacou no seu diário.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

nº 259 Isabel Castelo, uma diva na lista da Forbes

 

 Uma diva na lista da Forbes

A primeira vez que me deparei com o nome de Isabel Castelo deve ter sido ao rever a biografia de Teresa Turné, na sequência da minha pesquisa sobre o Festival de la Canción Española de Ponte Vedra. A soprano madrilena, presença constante no concurso de música da capital do Leres, ganhou o Prémio de Canto Isabel Castelo em 1963 ‒talvez ela apenas um accéssit‒, o mesmo que ganhariam vozes tão prestigiadas como a Berganza ou a Orán. Mas foi recentemente que a minha mulher me perguntou se eu sabia alguma coisa sobre a história da Castelo: marquesa, cantora de ópera nascida na Corunha, protagonista com a voz de um famoso anúncio de televisão e integrante da lista da Forbes como uma das grandes fortunas de Espanha. Devo dizer que depois de tantos anos estudando e escrevendo sobre a música do meu país, e especialmente as mulheres músicas, o meu orgulho sofreu um duro golpe. Quase não sabia nada além da existência de um prémio que levava seu nome.

Aos poucos fui descobrindo aspetos de sua vida pessoal e, sobretudo, de seu trabalho como cantora lírica que me pareceram relevantes o suficiente para comentá-los aqui, sabendo que a personagem mereceria uma atenção mais demorada de alguém com um tempo do que eu não disponho. Em suma, espero que este artigo sirva para mostrar o meu respeito por uma soprano com um trabalho profissional digno de ser lembrado.

 

Ramón D’Ortega y Hervella, o avó fundador

Ramón D’Ortega y Hervella, fundou em 1920, na cidade de Vigo, a companhia de seguros Ocaso.  Se temos pouca informação biográfica sobre a neta, não temos muito mais sobre o avô. Da mesma forma, gostaria de poder traçar o perfil deste personagem que fundou do nada, há mais de cem anos, um império económico que não parou de crescer até hoje.

O trabalho de Dom Ramón ‒aquele que ele desempenhará até a criação da seguradora‒ era o de tipógrafo, igual ao do também galego Pablo Iglesias, fundador da UGT. Com ideias profundamente progressistas, ingressou na Sociedade Tipográfica (1914) e em 1928 representou a Vigo no XIV Congreso Ordinario de la Federación Gráfica Española, precisamente dependente da UGT, realizado em Saragoça. 

Como tipógrafo trabalhou, entre muitos outros lugares, nas oficinas da revista de Jaime Solá, Vida Gallega.

Do seu espírito progressista, é-nos revelado o facto de em 1912 ter participado, com a quantia de 500 réis, numa angariação de fundos, aberta no Brasil, para ajudar à família de Francisco Rodríquez Pancho, vítima de um homicídio cometido por um clã caciquil da vila de Salvatierra. 

Na Gazeta de Madrid de 23 de junho de 1920, é autorizado o registo da seguradora de Vigo, denominada: Seguro Funerario El Ocaso

Em 1934, Don Ramón aparece como vice-presidente do Partido Democrático Radical da Corunha, formação liderada no Estado Espanhol pelo também tipógrafo e maçom, Diego Martínez Barrio (Sevilha, 1883; Paris, 1962). O executivo da Corunha esteve composto na presidência por César Alvajar; vice-presidente, Ramón D’Ortega; secretário, Ovidio Rodríguez Blanco; o vice-secretário, Manuel Varela Fernández; tesoureiro, Juan Martínez Morás; o contador Francisco Suárez; primeiro vogal, Antonio Domínguez Lamela; idem segundo, Ángel Saavedra Ponte; idem terceiro,  Jesús Mejuto.

Nesta lista encontram-se várias pessoas que, após o golpe militar de 36, serão acusadas de pertencer à Maçonaria, como, por exemplo, César Alvajar, Rodríguez Blanco ou Antonio Domínguez Lamela. O próprio Ramón D'Ortega será obrigado a declarar na sede da Falange, acusado de ser membro da irmandade e, posteriormente, pagará por este motivo, uma multa, muito elevada para a altura, de 10.000 pts.

É possível que a hostilidade de uma cidade nas mãos das milícias armadas dos Caballeros de la Coruña e da Falange, o tenha encorajado a mudar a sua residência para Madrid, onde a sua vida transcorreu discretamente, dedicado a seus negócios, até à sua morte em 1950.

 

Ramón D’Ortega y Hervella
Escultura de Juan Cristobal, 1951
Fonte: https://juancristobalescultor.es/

 

Concepción D’Ortega López. O início do matriarcado

Em junho de 1962, Concepción D’Ortega, herdeira do império Ocaso, em trânsito para a Argentina, fez escala no Brasil. No documento emitido pelo consulado brasileiro em Madrid consta que a sua profissão era a de prendas caseiras. Em realidade, ela era a legatária da empresa fundada polo seu pai, e a iniciadora duma saga que transmitirá o património de filha única em filha única até os nossos dias. 

Conchita D’Ortega nasceu em Madrid o 25 de Junho de 1905. O nome de sua mãe era Isabel López Briceño (1874-1974), uma mulher nascida na Câmara Municipal de Tielmes, Comunidade Autónoma de Madrid.

 

Concepción D’Ortega acompanhada de seu pai Ramón D’Ortega.
Vida Gallega. Ano XIII Nº 168

 

Em maio de 1928, casou com Santiago Castelo Cortés (A Corunha, 26 de junho de 1903; Madrid, 18 de junho de 1986) na igreja de São Nicolas da Corunha. O Santiago era filho de Manuel Castelo Rey (1864-1934), oficial do registo civil, e de Agustina Cortés Ramos (1863-1944). A ele é creditada a ascensão da seguradora, da qual foi presidente do Conselho de Administração no período de 1952 a 1971, bem como a diversificação dos seus negócios.

 


"Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965," Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (National Archives, Rio de Janeiro) in familysearch.org

 

Isabel Castelo D’Ortega.

O 19 de junho de 1929 nasce, na Corunha, Isabel Castelo D’Ortega, a principal protagonista do nosso artigo. 

 

 
Isabel Castelo, com 2 anos. 
 Vida gallega : ilustración regional: Ano XXIII Número 504 - 1931 novembro 30

 

Enquanto se aguarda uma investigação mais aprofundada nos arquivos das escolas da Corunha e do Conservatório Superior de Madrid, pouco podemos acrescentar sobre a formação musical da Castelo, além do que ela própria declarou na imprensa ‒ou possa testemunhar qualquer dia‒ se tiver vontade de fazê-lo. Aos dez anos, a família mudou a sua residência da Corunha para Madrid, pelo que é possível que tenha recebido as primeiras aulas de música nas margens do Orção. De ser assim, com toda probabilidade, seria aluna da tiple Bibiana Pérez Mateo (1865-1950). 

Entre as professoras que menciona, maioritariamente do Conservatório de Madrid, destaca-se Mili Porta (A Coruña, 1918; Madrid, 1971). Esta pioneira na regência de orquestra foi uma das fundadoras do coro Anaquiños da Terra, sociedade formada por membros da comunidade galega da capital espanhola. Como mecenas, Isabel Castelo teve alguma relação com esta entidade, da que foi madrinha.

A sua professora de canto, como a da maioria das cantoras da sua geração, foi Lola Rodríguez Aragón (1910-1984), fundadora da Escuela Superior de  Canto. 

Por fim, Isabel Castelo confessa ter sido aluna de Carlota [Charlotte] Dahmen (1884-1970), soprano especializada em Wagner e Strauss, que no final da vida se dedicou a dar aulas privativas de canto na capital de Espanha. Carlota Dahmen casou em 1916 com seu professor, o galego-cubano Eladio Chao Sedano (1874-1951). Quando questionada por uma jornalista sobre o que as suas professoras pensavam da sua voz, a resposta da soprano galega foi esta:

«La primera [Mili Porta] decía que me tenía que meter el temperamento en el bolsillo, y la segunda [Carlota Dahmen] que tengo demasiada voz». El Ideal gallego. 25/05/1955 p. 10

Isabel Castelo casa em dezembro de 1950 com o tenente de navio Ángel de Mandalúniz y Uriarte, surpreendentemente, apenas dois meses após a morte do avô Ramón D'Ortega, fundador da seguradora Ocaso. Na altura tem 21 anos e, como ela mesma confessa, abandonou a carreira musical para agradar o marido, portanto, seriam poucas as suas apresentações públicas antes do casamento.

 

"Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965," Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (National Archives, Rio de Janeiro) in familysearch.org

 

A síndrome da mulher casada levou inúmeros grandes talentos a abandonarem prematuramente a profissão, privando a humanidade, também composta por homens, do fruto de anos de estudo e dedicação. É por isso que o patriarcado, implacável com as mulheres, é também extremamente prejudicial para os homens. E embora nesta sinistra costume de cercear carreiras profissionais para criar donas de casa submissas e devotadas, não faltem exemplos tanto em lares conservadores como progressistas, a verdade é que a figura de Isabel Castelo foi apresentada como o modelo apurado de mulher do regime, como se pode ver na seguinte manchete de El Ideal Galego que não deixa margem para dúvidas.

 

El Ideal gallego : diario católico, regionalista e independiente: Año XXXIX Número 11874 - 1955 mayo 25 

 

A herdeira de uma das grandes seguradoras de Espanha não tem nome, referem-se a ela como “uma jovem da Corunha”. Além disso, destacam o facto de que para criar o prémio mais importante de Espanha «foi autorizada pelo marido», ninguém vaia pensar que ela age de motu proprio.

As frases finais deste artigo, colocadas na boca de Isabel, são definidoras: 

«Hay que preparar un refugio para las horas de dolor y de tedio, y eso sólo se encuentra en la religión y en el arte».

 

O Premio Isabel Castelo

Na Ordem de 12 de agosto de 1955, publicada o 1 de setembro do mesmo ano, dá-se a classificação da Fundação Isabel Castelo como benéfico docente de carácter particular. Parece que este facto foi conseguido em tempo recorde, já que o pedido feito por Ángel de Mandalúniz y Uriarte levava data  do 17 de junho anterior.

O fim único da fundação era o de 

«otorgar un premio de enseñanza de Canto, ya que su propósito es fomentar la enseñanza de este arte, estimulando la formación de futuros valores nacionales, y al mismo tiempo honrar la vocación de su esposa, doña Isabel Castelo D’Ortega. consagrada a cultivarlo». 

Por este motivo, a fundação contava com um capital nominal de 200.000 pesetas. com o qual seria atribuído um prémio anual, entregue o primeiro de março, de 20.000 pesetas, na primeira vez, e 7.000 nas convocatórias subsequentes. Em realidade, logo passou a ser definitivamente de 20.000.

Poderão aspirar ao prémio

«los cantantes de ambos sexos que no hubieren  cumplido cuarenta años de edad y que hayan obtenido de sobresaliente en los exámenes de convocatoria oficial y libre, correspondientes al final de la carrera de Canto celebrado en el Conservatorio de Música de España donde estén establecidos dichos estudios, con anterioridad no superior a cinco años y con relación a la fecha en que se celebre el concurso».

Na verdade, até onde sei, os prémios só foram atribuídos a vozes femininas. Na Ordem também se detalha a composição do júri.

«[...] el Director del Real Conservatorio de Música de Madrid, como Presidente; la fundadora o persona en quien ella delegue, como vocal primero, eligiéndose a su fallecimiento de entre los herederos, si hubiere varios en igualdad de condiciones, al más idóneo, con la intención y significación del premio: un académico de la Sección de Música de la Real Academia de Bellas Artes de San Femando como vocal segundo; los dos Catedráticos más antiguos de la Enseñanza de Canto, y el Catedrático más antiguo de la Enseñanza de Armonía; ocupando sus puestos los tres Catedráticos—del Real Conservatorio de Música de Madrid—, por orden de antigüedad, v finalmente un Catedrático o Profesor especial del Real Conservatorio de Música de Madrid, designado por la fundadora, que hará de Secretario, teniendo todos los miembros del Tribunal voz y voto».

Além do prémio monetário, as vencedoras receberiam um diploma e uma medalha com a efígie de Isabel Castelo, sendo obrigadas, em troca, a realizar um concerto solidário no local e dia que a fundadora decidisse.

 



Medalha Prémio de Canto Isabel Castelo
 Escultor Juan Cristobal (1896-1961)
 Fonte: https://juancristobalescultor.es/

 

Isabel Castelo vangloriou-se de que o seu prémio tinha um valor financeiro de 20.000 pesetas. em comparação com as 2.000 do Lucrecia Arana, prémio de fim de carreira do Conservatório de Madrid. Obviamente, o prestígio não reside, exatamente, na quantidade de dinheiro que uma vencedora recebe. Em vez disso, deveríamos olhar para o nome das ganhadoras e para a composição dos júris. 

A primeira convocação, proclamada extraordinariamente em janeiro de 1956, correspondeu a Enriqueta Tarrés. Em 1957 foi a vez de Teresa Berganza, facto este que normalmente é omitido nas suas biografias ou dá-se-lhe o valor errado de 1955, quando o prémio ainda nem existia. Outras das vencedoras foram Isabel Penagos, 1958, María Orán, 1968… Em 1960, entre os membros do júri estavam Mili Porta, Lola Rodríguez Aragón e o maestro Guridi.

 

Finalmente, a sua voz

Na década de 60, Isabel Castelo gravou dois discos com acompanhamento orquestral, ambos sob a direção do maestro Pablo Sorozábal. O aval do maestro guipuscoano deveria bastar para credenciar estas gravações, mas a verdade é que cada vinil tem a sua história e, embora neste caso não tenhamos todos os dados, ambos merecem um pequeno comentário.

La canción del Olvido. Libreto de Federico Romero Sarachaga e Guillermo Fernández-Shaw Iturralde e música de José Serrano. 

Regente: Pablo Sorozabal

Maestro concertador: Julián Perera

Diretor de coro: José Perera

Orquestra: Orquesta de Conciertos de Madrid

Coro Cantores de Madrid

Soprano: Isabel Castelo [Rosina]

Barítono: Renato Cesari [Leonello]

Tenor: José María Higuero [Toríbio e Sargento Lombardi]

Hispavox, S.A. 1963 HH 10-228

 


A primeira coisa que destaco neste álbum é a qualidade sonora. Mesmo no meu modesto toca-discos, é surpreendente o quão equilibradas soam as diferentes secções da orquestra, com close-ups de muito sucesso, principalmente, na minha opinião, quando a protagonista é a harpa. Um som magnífico como acostuma a passar com os discos procedentes da casa Hispavox. A título de curiosidade, no caderno interior do LP, somos informados do processo tecnológico inovador com que se conseguiu um som tão sofisticado:

«Al escuchar esta versión de La Canción del Olvido se podrá observar una novedad singular, ligeramente apreciable en su edición monosural y muy notoria en estéreo: la realidad teatral, traducida en un encuadramiento y realce de la perspectiva sonora.

Antes de efectuar la grabación, los equipos artísticos y técnicos de la Empresa han efectuado un estudio cuidadoso de los recursos escénicos, y a ellos han procurado ajustarse con la máxima fidelidad. Como consecuencia, algunos planos sonoros  cercanos se superponen a otros más alejados del oyente, hasta concretar al máximo el contorno de actuación y aún de movilidad de cada personaje [...].

Cantantes, coros, orquesta y director han colaborado eficazmente en esta difícil Grabación Audioscenica, haciendo posible este intento para el que Hispavox, S.A., ha puesto a contribución los más modernos adelantos técnicos».

Renato Cesari, que interpreta o personagem Leonello, é um barítono que me fascina. Ao ouvi-lo cantar uma romanza, às vezes temos a impressão de estar diante de um crooner ou de uma estrela do tango ou da canção napolitana. Em todo caso, sua voz mundana é deliciosa e credível, mesmo quando lhe tocou representar personagens castiços nas muitas zarzuelas que Sorozabal lhe dirigiu. 

O tenor estremenho José María Higuero transmite uma certa angústia, quando presenciamos a sua luta constante, muitas vezes sem sucesso, para encontrar a nota certa nas cadências finais.

E Isabel Castelo? Que podemos dizer dela? Pois bem, a minha impressão é que a sua voz soa afinada; correta na execução; com agudos potentes e bem colocados; com um fiato reflexo da sua grande capacidade pulmonar. Contra isso, um hieratismo que pode irritar, ou fazer com que o espetador implore por um bocadinho mais de salero. Talvez tenha sido esse o aspeto do seu temperamento que a grande Mili Porta recomendou que guardasse no bolso.

De qualquer forma, acho que estamos ante o seu melhor LP.

 

O maestro Sorozabal, o barítono Cesari e os primeiros violinos Luis Antón e Jesús Corvino.

Caderno interior. La canción del olvido. HH 10-228

 

Caderno interior. La canción del olvido. HH 10-228

 

Lírica Española. VV.AA.

Regente: Pablo Sorozabal

Maestro concertador: Julián Perera

Soprano: Isabel Castelo

Introdução: P. Federico Sopeña

Alhambra [Columbia] 1965 MCCP 29,019

 



 
Capa e autógrafo do meu exemplar.
Arq. do Pico Rodríguez

 

Mais uma vez, Sorozábal dirige à Castelo, desta vez para nos oferecer uma seleção de romanzas de zarzuela, na sua maioria, muito populares. É deste álbum que foram recuperadas as músicas ouvidas nas propagandas Ocaso. Começaram a ser emitidas por volta de 2006, sempre apresentando o sol que o fundador da seguradora funerária imaginou pousando no horizonte, figura poética do fim da vida.

Na primeira edição, a música escolhida foi «Romanza de la Duquesa» de Jugar con fuego. Em parcelas sucessivas, utilizaram-se a «Polonesa» de El Barbero de Sevilla, o rondó de El Maestro Camponone ou as «Carceleras» de Las hijas de Zebedeo. Estes anúncios, ou melhor, as suas bandas sonoras, provocaram numerosos comentários críticos na Internet, a maioria deles ao nível da prestigiada ágora digital denominada Forocoches. 

Quanto à atuação de Isabel Castelo, penso que é mais do que digna, e mostra-nos uma soprano solvente e com boa técnica, como convém a quem se formou no Conservatório de Madrid. Mesmo assim, achamos que Federico Sopeña é muito generoso quando diz no texto que apresenta o álbum:

«la voz de Isabel Castelo  escala brillantemente los agudos proprios de las sopranos ligeras, se centra y se agranda para el dramatismo de “Gigantes y Cabezudos” y se abre para “armar jaleo” indispensable que lo castizo pide, pero sin perder nunca esse sello de musicalidad, de rigor que convierte a la romanza de la zarzuela en algo “distinto”». 

Em suma, nem tanto, nem tão pouco.

 

Cancionero Sefardi vol.1

Voz: Isabel Castelo

Flauta: Luis Amaya

Celo: José Mª Alcazar

Percussão: Mª Cruz López de Rego

Arranjo, harmonização e direção musical: Adelino Barrio

Diapasón [Dial Discos S.A.] 1985 52.5089

 

Retrato da contracapa e capa.
 Arq. do Pico Orjais

 

Este álbum seria surpreendente, e até um acerto, se a fascinante Sofía Noel não o tivesse gravado primeiro. Até o repertório é muito parecido com os discos da soprano e folclorista belga. Em suma, os arranjos de Adelino Barrio são elegantes e agradáveis de ouvir, isto se primeiro consegues isolar ‒e a poder ser, eliminar para sempre da tua cabeça‒ a excêntrica pandeira, conseguindo assim se concentrar nos belos acordes da guitarra e nos contrapontos da flauta.

Com a participação da Castelo, o conjunto funciona mais ou menos bem, é gostoso de ouvir, mesmo paga a pena experimentar a sua escuta. Mas a sombra da Noel é tão longa!

 

Para concluir

Dito o que foi dito, espero que ninguém se sinta tentado a pensar que os discos de Isabel Castelo são um capricho de uma rapariga rica. Nada está mais longe da realidade. É evidente que a sua voz não resiste à comparação com a da Berganza ou a de Victoria de los Ángeles, mas quem da sua geração a suportaria? Mas, da mesma forma, é preciso dizer que ela não é pior do que algumas das que saíram da escola de Lola Rodríguez Aragón e que tiveram uma carreira artística com os seus bons momentos, concertos em praças importantes e gravações que hoje continuam a circular, para deleite de nostálgicos, nas plataformas digitais.

É verdade que a figura pública de Isabel Castelo D'Ortega, Marquesa de Taurisano, pode ser pouco atraente para o pessoal por ela pertencer à nobreza, ser uma das pessoas mais ricas de Espanha e por ter aquele vício tão típico das milionárias ‒em muitos casos para limpar a consciência ou o caminho que leva ao céu‒ da caridade piedosa. O que não saberei eu sobre este preconceito sendo como sou ateu, comunista e levando gravado na consciência, aquilo que dizia Marx: de cada um de acordo com sua capacidade, par cada um de acordo com sua necessidade. Mas também qualifica a nossa opinião saber que ela é neta de um tipógrafo afiliado à UGT, criador de uma empresa galega, Ocaso, que foi investigado e extorquido pelo regime franquista por ser membro da Maçonaria. O avô paterno, Manuel Castelo Rey, foi o responsável polo Registo Civil da Corunha que assinou a ata do casamento de Marcela e Mário, ou melhor, de Marcela e Elisa. Também não parece que tivesse aversão a trabalhar com pessoas que não foram afins ao regime imposto por Franco. Pablo Sorozábal, que provavelmente salvou a sua vida graças a amigos influentes, teve que se demitir da Orquestra Sinfónica de Madrid poucos anos antes de gravar com a Castelo, por querer incluir uma sinfonia de Shostakovich no seu repertório de concertos. O próprio Juan Cristobal, criador da medalha que recebeu a vencedora do prémio Isabel Castelo, foi fundador em 1931 da Associação de Amigos da União Soviética. Em quanto o mecenato, Isabel Castelo, por exemplo, colaborou com a Associação dos Amigos da Ópera e o Festival de Ópera da Corunha.  Além disso, em sua cidade existe uma sala no Aquário que leva seu nome, que com certeza, não foi uma homenagem que lhe veio de graça.

Estamos, portanto, ante  uma mulher de contrastes, como todas as que fazem parte da historia de um pais. Ela pertence a uma saga de filhas únicas. Sua mãe e ela mesma, até a morte do primeiro marido, herdeiras legítimas do império familiar, foram apresentadas pela imprensa da época como donas de casa submissas. Porém, ao receber a Medalha da Galiza, no site oficial da Xunta foi possível ler que deixou a música para atender aos seus negócios e não para agradar ao marido, como nos tinham dito. É difícil pensar que uma mulher que vai levar sua empresa a alturas nunca alcançadas, aprendera de repente a ser empresária, após a morte prematura do seu companheiro.

Não procurem por Isabel Castelo na Enciclopedia Galega, no Álbum de Múlleres Galegas ou no Diccionario de la Música Española e Hispanoamericana. Agora, ela gravou dois discos com Sorozabal e criou um prémio que durante alguns anos ajudou a muitas sopranos contemporâneas a lançarem suas carreiras. É difícil documentar todas as iniciativas musicais que tiveram o seu apoio, mas, certamente, o seu patrocínio ajudou a abrir muitos panos em teatros de toda a Espanha. 

Acredito que estudar a personagem, em relação à sua intervenção na música do seu tempo, nos daria uma visão realista de uma geração de artistas líricas que sempre vemos com um certo halo de mitificação e elitismo, e que, no entanto, foram trabalhadoras esforçadas na Espanha castrense e repressiva que o déspota Franco projetou. 

Por fim, e como remate a esta curta biografia da Castelo, permito-me incluir as únicas palavras dela, ditas ou cantadas, que consegui resgatar em galego. São as pronunciadas perante o Presidente da Xunta na entrega das Medalhas da Galiza:

«Graças Galiza, porque nasci na tua terra, nasci no teu chão, no Fogar de Breogão».

sábado, 22 de junho de 2024

nº 258 02 Flexi Disc

 


Bibliografia: 

Antología del folklore musical de España. Primera selección antológica [Grabación sonora]
Autor: García Matos, Manuel 1912-1974 
Editor: Hispavox
Data de pub.:D.L. 1959
Descriçao física: 4 discos : 33 1/3 rpm, mono ; 30 cm+2 livros (34 y 69 p.) 
Fonte: BNE

Antonio Fraguas e a memoria musical de Cotobade
Autor: Groba González, Xavier 
Editor: aCentral Folque, Centro Galego de Música Popular
Data de pub.:[2019] 
Descriçao física: 1 disco sonoro ; 12 cm+1 livro (235 páginas)
ISBN:9788494951183 
Fonte: BNE