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domingo, 24 de fevereiro de 2019

nº 229 Antolorjia do Barão de Orjais.


A Mariña Longa –moça a que além de querer muito como afilhada, admiro imenso como artista– lembrou-me os ditos e saberes que um dia recompilei da obra completa do meu mestre, o Barão de Orjais. Baixo o título Antolorjia do Barão de Orjais fiz um brevíssimo percurso pela obra do único aristocrata com permissão para pôr um pé na minha Ilha. Seria impossível poder abarcar em apenas uma dúzia de  páginas todo o que aprendi deste homem, mas é suficiente para entender o seu génio incomum e a sua incessante busca do ideal estético. 
Um dia, maravilhado pelo uso que lhe dava ao cérebro, ofereci-lhe a minha Ilha para solar da sua baronia. Chateado repreendeu-me: –O meu feudo é o amor cortês. 
Desfruta, leitor ou leitora, do seu legado: a palavra dum homem que foi, a partes iguais, romântico, hedonista e ateu, é dizer, um shandy dos nossos. 


domingo, 3 de agosto de 2014

nº 187 As pantufas de Filgueira Valverde.

As pantufas de Filgueira Valverde.

Teve a oportunidade de falar com o Dr. Filgueira Valverde só uma vez, nos tempos em que cursava primeiro de carreira na escola normal de Ponte Vedra. Na altura visitava assiduamente o Museo de Pontevedra cujas instalações, salas e arquivo, foram a minha universidade, o lugar onde me formei e me apaixonei pela história cultural do meu país.
Um dia, ao entrar no edifício Castro Monteagudo, reparei na prateleira onde se mostravam os livros à venda. Entre eles salientava um exemplar do Cancionero Musical de Galicia de Casto Sampedro. Para mim, aquele era um livro quase mitológico que conhecia graças aos créditos dos discos de Milladoiro. Perguntei o preço. Custava, se não estou em erro, três mil pesetas, que ainda parecendo-me uma barateza era um dinheiro que não tinha. Juntei pesinho a pesinho. Alguns companheiros do grupo Leixaprén —no que daquela eu tocava— encomendaram-me vários exemplares.
Com o bolso cheio de bilhetes fui à banca do museu e pedi os cancioneiros a um funcionário que anotou a minha compra num livro, algo que na altura já me resultou um bocadinho démodé. Foi nesse instante que pela porta vi entrar ao Dr. Filgueira. O empregado saudou-o muito respeitosamente, mesmo com certo boato, e ele acercou-se a onde nós estávamos e cravou os seus olhos nos cancioneiros que acabava de comprar. Depois olhou para mim e disse-me algo acerca de que aqueles livros eram uma joia, um tesouro da nossa cultura. Eu assentia e deixava-o falar sem ser cônscio do papel jogado por ele na edição do dito cancioneiro. Finalizado o seu elogio sobre a obra de Casto Sampedro —e em parte também dele— o Dr. Filgueira dirigiu-se ao funcionário perguntando-lhe quantos exemplares ficavam ainda em stock. Deviam ser poucos, pois o velho professor ordenou que fossem retirados da venda de imediato.

 O encontro terminou com uma anedota quase de vaudeville. Outro empregado apareceu de dentro do museu e dirigiu-se ao ex-diretor:

— Don José! Ya están preparados los canapies.

D. José olhou para mim e sorriu, caminhando na direção em que viera o funcionário hipercastelhanista. E foi nesse momento em que reparei como embora ele vestisse traje, gravata e uma gabardina tipo Bogarth, nos pés levava umas pantufas de flanela a quadros, as pantufas dos avós de toda a vida. Com o passo do tempo, a lembrança dum ex-diretor de museu idoso, trajado e com pantufas é a melhor imagem que se me ocorre dos últimos anos do Dr. Filgueira. Um homem que apôs quase cinquenta anos a frente do Museo de Pontevedra andava por aquelas instalações como pela sua própria casa.

*

Graças ao Cancionero Musical de Galicia de Casto Sampedro aprendi entre alalás, moinheiras e gotas a ler música. Mas, por cima de tudo, foi com a extraordinária introdução historiográfica de José Filgueira Valverde que conheci o universo musical do nosso país, com a sua visão holística do folclore onde se misturam as artes, os estilos, os géneros, as épocas... Também descobri graças a ele a existência dum homem em Vilancosta que a mediados dos anos quarenta do século XIX começou a recolher música tradicional, sendo nisto —como em tantas outras coisas— um autêntico pioneiro. Esse homem, Marcial Valladares Núñez, foi o meu objeto de estudo principal durante anos, chegando a editar, em parceria com Isabel Rei Samartim, o seu cancioneiro Ayes de mi pais.
Os folclorista sabem que o Dr. Filgueira Valverde foi o fazedor que possibilitou a edição dos dois grande cancioneiros galegos, o mencionado de Casto Sampedro e o Cancioneiro Galego de Bal y Gay e Torner. Essas duas grandes coletâneas do nosso folclore foram concebidas antes da Guerra Civil mas publicadas durante a ditadura, em 1942 e 1973 respectivamente. O Cancioneiro Galego é a obra de dois republicanos que tomaram o caminho do exílio.  Jesús Bal y Gay retornou a Espanha em 1965 e foi com ele com quem o Dr. Filgueira tratou a publicação das fichas elaboradas junto a Eduardo Martínez Torner nas suas viagens por Galiza. Aquela obra concebida pelo Centro de Estudos Históricos vinha a ser editada pela franquista Fundação Barrié de Maza. O retornado Bal y Gay colaborando com o franquista Filgueira Valverde. Tal vez isto aconteceu assim por Torner ter falecido anos antes num hospital da caridade inglês, depois de ter feito coisas no desterro tão importantes para a nossa cultura como os programas sobre folclore galego emitidos pela BBC. Lembrar, por se alguém não souber, que o Martínez Torner era asturiano, razão esta, em minha opinião, pela que se subestima tanto o seu importante papel na historiografia musical galega.

**

Rematada a carreira de magistério, a minha atividade profissional no mundo da música foi-se virando mais cara ao plano teórico que ao prático. O Dr. Filgueira veio na minha ajuda numerosas vezes para trazer-me dicas, respostas, fios dos que tirar. Os seus Adral, que colecionei e li com verdadeiro interesse, foram o princípio de muitas aventuras nas que me embarquei, deitando luz sobre problemas que eu tentava resolver. Seriam intermináveis as referências utilizadas por mim cuja origem está nos escritos do velho professor.

Ultimamente, venho de publicar um Opúsculos das Artes sobre o Festival de la Canción Gallega. Este festival existiu graças ao contubérnio de dois intelectuais franquistas, o crítico do ABC Antonio Fernández Cid e o presidente da câmara de Ponte Vedra, Dr. José Filgueira Valverde. Durante as nove convocatórias celebradas entre 1960 e 1968 estrearam-se cerca de cem canções compostas por músicos espanhóis renomados, sobre poemas de escritores galegos de todos os tempos. Isto só na secção oficial, pois o número de peças para canto e piano ou para coro apresentados aos concursos paralelos ao festival são dificilmente quantificáveis. Junto com os concertos houve conferências dadas por Fernández Cid e Filgueira Valverde, mas também por outros vultos da cultura galega nada afins ao regime. Entre os palestrantes alguns velhos companheiros do Seminário de Estudos Galegos, caso de Antonio Fraguas Fraguas, novíssimos poetas, como Uxio Novoneyra, que a última hora não pode acudir ou Xosé María Álvarez Blázquez. Este último recebeu um convite pessoal do Dr. Filgueira. Há que lembrar que o poeta e editor ao que lhe dedicamos o dia das Letras Galegas no 2008 foi vítima da repressão franquista, sendo filho dum fuzilado, Dario Álvarez Limeses, e um dos muitos mestres purgados após o começo da contenda.  
O acontecido com a família Álvarez Limeses durante os anos da Guerra Civil é um exemplo claro do embrulhado, dramático e controvertido que pode chegar a ser tentar encontrar explicações ao inexplicável: o uso da violência escusando-se na defnesa duns ideais superiores.
Vejamos:

-Em 19 de abril de 1935, Xerardo Álvarez Limeses anunciava ao seu genro a sua vontade de sair do Partido Galeguista por não concordar com a política oficial de achegamento aos partidos de esquerda: «Eiqui estamos resoltos a irnos do partido Filgueira, meu hirman Xose, meu fillo Xose M.ª, os dous Caramés, Sesto e outros xovenes que non podemos ver con vos ollos a entrega do galeguismo os enemigos da Relixón.» Fonte: O galeguismo na encrucillada republicana Xavier Castro. [Deputación Provincial de Ourense; Ourense] 1985

-Em 17 de agosto de 1936 é fuzilado na Caeira, Alexandre Bóveda.

-Em 29 de setembro de 1936 morre de causas naturais José Álvarez Limeses.

-Em 11 de outubro de 1936, Xerardo Álvarez Limeses, na sua qualidade de Inspetor Chefe de primeiro ensino, pronuncia um emotivo discurso nos atos de reposição dos crucifixos nas escolas públicas de Ponte Vedra. Na comitiva que trasladou o crucifixo até a Escola Normal também formava parte o padre Fr. Luis Fernández Espinosa, músico muito relacionado com o grupo da Sociedad Polifónica de Pontevedra e confessor de Alexandre Bóveda o dia da sua execução.

-Em 30 de outubro de 1936 é fuzilado em Tui Darío Álvarez Limeses.

-Em 8 de abril de 1937, morre Casto Sampedro y Folgar, diretor do Museo de Pontevedra. Xerardo Álvarez Limeses, na altura vice-diretor, converte-se em diretor acidental na instituição arqueológica, cargo que ocupará até a sua morte em 9 de março de 1940.

-Em 23 de março de 1940 é nomeado diretor do Museo de Pontevedra o Dr. José Filgueira Valverde, que na equipa anterior ocupara o cargo de Secretário.

Vinte anos depois do fim da guerra, Xosé María Álvarez Blázquez participa no Festival de la Canción Gallega, como já disse, por convite pessoal do já na altura Presidente da Câmara Municipal. Além da sua extraordinária erudição, Xosé María mostrou, mais uma vez, o seu enorme compromisso com o nosso país, pronunciando uma das suas palestras em galego. Tratava esta sobre as Paxolinhas de Natal. No mesmo ato pronunciou uma outra palestra Filgueira Valverde, esta vez sobre a festa dos maios. O Presidente da Câmara utilizou o castelhano, suponho que para não incomodar ao seu parceiro Fernández Cid ou ao co-financiador do evento, o Ministério de Información y Turismo de Manuel Fraga Iribarne. A intervenção de Xosé María Álvarez Blázquez nesta edição do Festival de la Canción Gallega de Pontevedra —acontecida em 22 de julho de 1964 no Salão de Atos da Deputação de Ponte Vedra— devera ser considerada uma das grandes efemérides da resistência linguística galega durante os anos escuros do franquismo.

Mas neste festival aconteceu algo que merece quando menos um comentário. Como já disse, a mecânica do festival consistia em que um compositor espanhol compunha uma canção utilizando como letra um poema dum escritor galego. Foram mais de sessenta os músicos participantes, repito, todos eles de nacionalidade espanhola, a exceção de dois argentinos oriundos. Nesta ilustre nominata de compositores colaram-se sete inesperados compositores portugueses: Joly Braga Santos, Frederico de Freitas, Claudio Carneiro, Rosado Peixinho, João de Freitas Branco, Macedo Pinto e Ruy Coelho. A dia de hoje tudo faz pensar que o culpável desta participação lusa foi Filgueira Valverde. O Presidente da Câmara era um velho conhecido, tal vez amigo, de Frederico de Freitas. Este conhecimento/amizade deixou rasto nos respectivos arquivos pessoais em forma de dedicatórias, recortes de jornais, programas de mão, etc. Considero ao Dr. Filgueira indutor da presença do Freitas e, porque não, de todos os outros compositores portugueses. Mesmo na convocatória de 10 de julho de 1967, sessão inaugural do VIII Festival de la Canción Gallega, a palestra correspondeu ao diretor do Museu de Porto, Sr. Fernando Castro Pires de Lima, com o título Elógio da cantiga popular minhota. Nem falar da importância que esta maridagem entre poetas galegos e músicos portugueses tem para uma história cultural da Galiza e para tod@s os que defendemos o reconhecimento do papel que a nossa terra deve ocupar no mundo lusófono.

 Como curiosidade, dizer que no Festival de la Canción Gallega participou como poeta Ernesto Guerra da Cal. Três poemas seus foram musicados pelos compositores valencianos Matilde Salvador, Vicente Asencio e José Evangelista. Este último contou-nos —a Isabel Rei Samartim, a Joam Trillo e a mim mesmo— que os poemas do escritor republicano e exilado Guerra da Cal chegaram-lhes da mão de Eugenio Montes. Eis outra rede de contatos curiosa. Eugenio Montes escreveu em 1930 um dos livros, a meu ver, mais formosos da literatura em galego: Versos a tres cás o neto [Ed. Nós; La Coruña, 1930]. Em 1933 é um dos fundadores da Falange e se considera um dos intelectuais mais próximos a Primo de Rivera. Este homem, que após o seu ingresso na Falange jamais volverá a escrever em galego é o portador dos versos do exilado republicano Guerra da Cal, os quais, convertidos em canções, serão finalmente estreados em 1964 no Salão Nobre da Deputação de Ponte Vedra, na que assenhoreava o tal Filgueira Valverde.

Estou a lembrar uma frase de Blaise Pascal que li num livro de Vila-Matas: «E se escrevi esta carta tão longa, foi porque não teve tempo de fazê-la mais curta.» Nestas últimas semanas andei com muito pouco tempo para ler e menos ainda para ler o que se publica na rede. Apenas li o cabeçalho de algum dos numerosos artigos publicados sobre o caso Filgueira Valverde, assim que é possível que muito do que eu contei já fosse contado nos últimos dias. Não faz mal, total a mim não me lê ninguém. Como sei, portanto, que o que escrevo apenas terá leitores, arrisco-me em último termo a dar a minha opinião —a modo de conclusão—, uma opinião que ninguém me pediu, assim que vai de graça.

***

1. Sempre fui um péssimo estudante. Nunca me adaptei ao sistema, nunca compreendi o sistema, nunca encontrei um lugar para mim no sistema. Estudei magistério e aprovei as oposições à primeira, só porque me examinei por música e me permitiram tocar. Porém escrevi quatro livros, dúzias de artigos, palestras... Ou sou uma fraude ou é que para mim existiu outra universidade, mais eficaz, menos acadêmica. É por isso que confesso que se algo do que escrevi tem algum mérito dever-lho-ei em grande medida ao Dr. José Filgueira Valverde e ao arquivo e biblioteca do Museo de Pontevedra.

2. Em minha opinião, a nomeação de Filgueira Valverde como escritor homenageado no dia das letras galegas para o 2015 é um intento de demolir a instituição desde o seu interior. Que o velho professor seja o homenageado é um problema tanto para a esquerda como para a direita. Também não lhe fazem nenhum favor ao próprio Filgueira Valverde. O melhor que podiam fazer os seus filhos e agradecer à RAG o reconhecimento, mas renunciar a ele —suponho que isso se poderá fazer—.

3. Em minha opinião, novamente, o Dr. José Filgueira Valverde não merece nenhum reconhecimento, nem tão sequer um tão desacreditado como o Dia das Letras Galegas. E não o merece não por ser um autor medíocre ou sem obra, pois para mim esta tem méritos sobrados. Está inabilitado por fazer parte do poder franquista. Os que dizem que há que dissociar a personagem política do escritor que apreendam de mim, eu o estou a fazer.

4. Em minha opinião, mais uma vez, o Dr. José Filgueira Valverde apenas teve influência na morte por assassinato de Alexandre Bóveda. Isso não quer dizer que não seja culpável da sua morte. Para mim todos os que participaram do poder franquista são cúmplices da carnificina cometida durante a guerra e, posteriormente, na ditadura.

5. Em minha opinião, por último, fica sem resolver totalmente o papel político que as sociedades pontevedresas jogaram durante os anos prévios, durante e depois da Guerra Civil. Cada vez estou mais convencido de que o culpável do assassinato de Bóveda foi o fanatismo religioso duns católicos que se agrupavam em círculos e juntas aparentemente culturais. Na Polifónica de Pontevedra, formada em boa parte por funcionários, ao igual que Bóveda, de fazenda, cantou na corda dos tenores o médico Victor Liz Quibén, chefe da Guarda Cívica e personagem sinistro ao que se lhe atribuem mais de vinte assassinatos. Também, não deixa de ter graça que o irmandinho Antonio Losada Diéguez coincidira na corda de barítonos com o caciquinho Vicente Riestra Calderón, competidores pela jurisdição de A Estrada nas eleições a Cortes. O redor da Polifónica, na que cantara Castelao, Bóveda e a sua mulher Amalia, andaram pessoas muito relacionadas com a Direita Galeguista liderada por Filgueira como o seu inseparável Iglesias Vilarelle, Lino Sánchez ou o próprio Gerardo Álvarez Limeses e o seu filho Xosé Mª Álvarez Gallego.
O tema do Museo de Pontevedra devera também revisar-se. Como é sabido, uma parte dos fundos com os que conta são fruto dos embargos decretados pelo Tribunal Regional de Responsabilidades Políticas. A Castelao, por exemplo, se lhe impus em 1940 uma multa de 75.000 pts. Como tal quantidade não foi paga, procedeu-se a confiscação dos bens que Castelao guardava nas suas vivendas de Ponte Vedra e Rianxo. Depois de negociações e acordos com a viúva e as irmãs do artista rianxeiro, com os Baltar de mediadores, chegou-se ao estado atual, sendo o Museo de Pontevedra o lugar onde podemos contemplar a maior parte da sua obra. Filgueira Valverde teve, como diretor do museu, um papel preponderante junto a Sánchez Cantón no espólio dos bens de Castelao. Resulta irónico que o património do artista rianxeiro ficasse a salvo numa instituição pública graças ao andrógeno Sánchez Cantón e ao manteigoso Filgueira —assim eram qualificados pelo próprio Castelao—.

Final

Só me resta dizer uma coisa: se a R.A.G. tiver vocação de volver a ser uma instituição séria, o Día das Letras Galegas do 2016 deveria ser dedicado ao escritor galego mais universal: Luis Vaz de Camões.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

nº 179 Tetos

Tetos
Micro-novela erótica

C. I

Começou sendo apenas um ruidinho semelhante a uma pingueira a bater no parapeito da janela, fácil de ignorar ou de acomodar aos pensamentos. Mas na meia-noite os sons vão-se singularizando, fazendo-se grandes até atrair toda a tua atenção, ensimesmando-te. Agora percebia um ritmo de cadência lenta, monótona, ligeiramente sincopado. Percebia um tempo accelerando que me levou a pensar que no andar superior alguém praticava sexo sobre uma cama indiscreta. Incomodou-me. Por um instante senti que se estava a invadir a minha solidão, como se na distância alguém acertasse a meter-me o dedo na chaga. Mas a minha paranoia esvaeceu-se quando escutei a sua voz. Foi nascendo, ao igual que aquele ruidinho primigénio, um chio cadencioso ao pouco convertido em grito apenas dissimulado. Reconheci a voz duma mulher em pleno gozo, sentindo-me, hei de confessa-lo, moderadamente excitado. Mas, trás a aparição da Prima Donna, o ato correu com brevidade, ficando eu dormido quase que no instante em que caia o telão.

C.II

Ao outro dia deitei-me cedo. Não eram mais das dez quando pousava o livro sobre a mesinha e apagava a lâmpada, na esperança de que as horas ganhadas à noite haviam-me ajudar a sobreviver. Vã ilusão! Às doze da noite em ponto, novamente o ruidinho começou a invadir o meu quarto. Tão diminuto como era e tinha o poder de me acordar dum sono aparentemente profundo. Não pude evitar olhar o relógio de números luminosos. Não pude evitar escutar com atenção. Não pude evitar uma alegria súbita quando a voz feminina proclamou, urbe et orbi, o seu júbilo.  

C.III

Passaram quatro ou cinco dias nos que ao dar as doze começavam os ruídos, os gritos, sempre o mesmo protocolo; um mesmo início e um mesmo final. Para então, eu já não podia dormir sem presenciar o espetáculo que se desenvolvia no andar de acima. As minhas fortes enxaquecas  acostumaram-me a deitar  cedo, a levantar cedo, a levar uma rotineira vida de frade bento. A meia-noite era para mim um tempo proibido. Até a hora de começo da função lia passando, despreocupado, as folhas, sabendo que os de acima seriam pontuais. Alguma vez, cônscio desta pontualidade inexplicável, pôs o despertador na esperança de dormir umas horinhas, mas de nada serviu. Só com o grito final da rapariga o meu corpo se entregava, ficando dormido até a manhã seguinte.

C.IV

Um dia escutei uns tacões a bater no chão. Normalmente, antes de começar o ato, uma porta se abria; sentia-se algum deambular pelo andar; às vezes alguma urgência para estar na hora no lugar adequado. Mas só foi ao escutar os tacões que cai na conta de que durante todo este tempo os únicos ruídos humanos identificados por mim eram de mulher. Essa noite esteve mais atento ainda. Agora é que tinha a certeza: toda a atividade do andar superior era provocada por uma única dama a qual eu escutava enquanto ela se masturbava. As minhas sensações então foram contraditórias. Por uma parte senti por vez primeira que estava a violar a intimidade de alguém. Isto só o senti uns segundos.  O sentimento mais potente foi o de solidariedade ou mais bem admiração por uma mulher autossuficiente, liberada dos caprichos do sexo contrário.

C.V

Os dias a seguir não fizeram mais que confirmar as minhas suspeitas sobre a pontualidade onanista da vizinha de acima, além de fazer medrar a minha admiração por um ser tão motivado em dar-se prazer. A mim sempre me deu tanta preguiça!

C.VI

O prédio onde ambos morávamos era um lugar desolador em inverno. Das numerosas vivendas, apenas estavam ocupadas três ou quatro, sendo imperceptível o trânsito pelos espaços comuns: os patamares, os elevadores ou a garagem. Premi o botão e as portas metálicas abriram-se para mostrar o meu rosto avelhentado no espelho do fundo. Penetrei no habitáculo justo no momento em que batia a porta da rua. Coloquei a mão na célula fotoelétrica para evitar que se fecharam as portas. Quando aquela rapariga véu que ia partilhar o elevador surpreendeu-se tanto coma mim, colorando-lhe as suas façulas um assomo de rubor. Vestia um uniforme que reconheci ao momento e foi então que lembrei a sua presença junto ao posto de frutas do supermercado da esquina. Eu sou alérgico a numerosas frutas, nomeadamente aquelas que têm pelo, às tropicais e alguma mais que nem sei, assim que procuro não me acercar demasiado. Só compro maçãs que ela, em várias ocasiões, me pesou amavelmente. Tenho observado que quando a bicha e muito comprida, reclamam a fruteira pelo alto-falante, incorporando-se à linha de caixas e deixando o seu posto vago até que só ficam umas poucas pessoas a espera.

C.VII

Como poderia explicar-vos o momento em que o seu dedo pecador premeu o número de andar acima do meu. O ruborizado então fui eu. Sai do elevador e abri a porta, mas no canto de entrar, fiquei na espera de verificar que a fruteira abria, por sua vez, a porta correta. Todo correu como estava previsto. Passaram as horas. Aguardei a que o duplo zero substituíra ao 59. Novamente o ruidinho. Começava o espetáculo. Então senti vergonha. Lembrei a cara da rapariga das maçãs. Pensei que podia ser seu pai. Pensei na sua vontade de estar soa, de gozar ensimesmada. Pensei em Foucault e nos problemas de comunidade de  Schopenhauer: o velho professor atirou a sua vizinha Caroline Marquet  pelas escadas. Tudo aconteceu subitamente. Levantei-me e fui para o quarto do lado contrário. Durante os poucos meses que continuei a morar naquele andar, jamais volvi à minha antiga cama.

C. FINAL

Segui comprando-lhe maçãs. Paulatinamente melhorei muito das minhas dores de cabeça.

© José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres. Rianjo. 
Fevereiro de 2014.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

nº 171 Armas de destruição massiva.

Já contei neste blogue os meus terrores associados ao uso de armas. Numa família de militares eram frequente as pistolas na casa, como a astra 9 mm corto do meu pai que vi armar e desarmar muitas vezes sobre a pequena mesa da nossa sala de estar. Que nome mais horrível o de sala de estar! Supõe-se que todas as salas são para estar, ainda que bem mirado, a biblioteca e o comedor são mais bem para ser.
Pois bem, nunca fui violento e quando houve de sê-lo preferi os punhos aos artefatos, o mais sofisticado dos quais, a escopeta de ar comprimido. A minha estava quase que sempre atorada já que na troca de balins, havia-os de perdigão e de copa, eu disparava com bolinhas de papel molhadas em cuspe.
Mas igual que o cérebro humano, nomeadamente o infantil, constrói bonecos ou instrumentos musicais pobres, também faz armamento pobre com o que lutar nas, v. gr., encarniçadas batalhas interbairros. Se a escopeta era o aparelho mais elaborado, o menos era sem dúvida o tutelo, esta vez sim, que nome mais formoso!
Os melhores eram os de cana de bambu. Havia quem os queria longos, quase como cerbatanas indígenas. Eu preferia-os curtos (algo a ver com o pene e com Freud?), os quais precisavam de menos folgos para o disparo certeiro. A munição era a base de sementes de hedras, havendo, por sua vez, uma grande variedade de tamanhos e cores. Os do meu bairro íamos a um lugar que ficou com esse nome, Rua das Hedras, e, mais uma vez a madalena de Proust, o sabor de aquelas sementes na boca ficou intimamente ligado aos tempos da minha infância.
Antes de que os contrabandistas se tornaram narcos, a única pistola que havia no meu povo era a do meu pai. Com tudo, as crianças tínhamos os nossos revólveres feitos de pregadores carregados com milhos os quais saiam projectados a uma velocidade considerável. Sempre pensei que aquele artefacto tão engenhoso, a pistola de pregadores, era um invento carcamão. Pois não. Está estendido por todos os lugares onde se usam os aparelhos para assegurar a  roupa com mole de arame, um invento do mexicano Rafael Guillermo Salazar Peña, cuja vida daria para um romance de Bolaño. Este homem natural de Monterrey nasceu em 1918 e o seu invento só se popularizou após a segunda guerra mundial, assim que o nosso brinquedo tem de ser uma coisa relativamente recente.
Lembro que também existia fuzilaria, esta vez com pregadores, uma tábua, uns cravos e uma goma. Com estas espingardas atirava-se mormente às cachas, sendo o belisco uma brincadeira de mau gosto. Sei-no bem, já que eu era mais vítima que franco-atirador.
Na seção de cordas o rei era o arco feito com varetas de guarda-chuva e linha de pescar. As setas eram afiadas contra as pedras dos muros, ficando espetadas nos troncos das árvores com suma facilidade. Um bom arqueiro com varetas dum sete-paróquias podia chegar a matar, isso sim, apenas pequenos animalinhos como ratos ou pardais.
Com tudo, o nosso armamento raiava as vezes com o absurdo. Influenciados pelas películas de Bruce Lee que massivamente projectavam no Capitol começamos a utilizar nunchacos ou lunchacos, para nós unchacos, de fabricação caseira. O uso desta arma das artes marciais chinesa pode explicar muitos dos erros cometidos na vida pelos meus coetâneos. As nossas matracas eram feitas primeiramente com cabos de legonha, ganchos e umas cordas ou inclusive delgadas cadeias de ferro. A incosistência dos ganchos convertia muitas vezes ao nunchaco numa arma de arremesso, sendo frequente o voo pelos ares e sem controlo dum dos seus extremos. Imitando ao tal Bruce Lee fazíamos katas denominadas ventoinhas, moinhos... dando berros agressivos que apenas dissimulavam a dor produzida pelas frequentes autolesões. Mesmo, num alarde de estética ninja, passávamos a matraca por baixo das pernas, recolhendo a cegas um dos cabos pelas costas. Quiçá os meus problemas reprodutivos tenham origem nesta prática circense. 
Dizia ao princípio que a arma mais simples era o tutelo, mas fazendo memória tenho que dizer que estou errado. No campo de batalha, estou a lembrar as atividades extraescolares no Pombal, nada melhor que uma pinha. Se só pretendes brincar, sem causar muitas baixas, o melhor é um pinha aberta, seca, ligeira. Para amolar bem amolado, as úmidas, pinhas ensimesmadas, com pinhões introvertidos e taciturnos.
Eis a panóplia carcamão que ainda lembro. Da minha geração, tem de haver muitas cicatrizes em crânios e quiçá também nas almas, pois as derrotas sempre são dolorosas. Lamento se a descrição dos artefactos não foi de tudo precisa, mas nisso das lutas a vida ou morte, eu sempre preferi o corpo a corpo.

Já não sei cantar canções de crianças...
Manuel Antonio


As ruas todas têm fome de meninos.
Noutros tempo
o eco eram pisadas diminutas
esvaziando as poças a pontapés.
Havia amores diminutos
com custosos presentes aos namorados:
uns brincos de fúchsias
ou um colar de camomila.
Havia diminutos fatos
que nunca passavam desapercebidos,
diminutos lanches
de tijolo e chuchamel,
e um sorriso diminuto
a abrir hospitalário o seu portelo.
Mas hoje as ruas estão fomentas de meninos
quem sabe se fugidos
para um outro território sem infantários-infantívoros.

Poema já publicado neste blogue: postagem nº 09

quarta-feira, 10 de abril de 2013

nº 160 micropoema


Pedi conselho a Walser
para fazer um poema que de tão diminuto
- após introduzido nas veias -
o sangue o transportara 
a cada canto do teu corpo.

Mas os poemas crescem
fazem-se tão grandes como folhas de papel, 
como paredes,
como muralhas chinesas.

Por isso és tu agora
a que deambula
- tão livremente -
pelo interior dos meus poemas.

texto e desenho: ©rjais 2013

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

nº 150 O neno e o velho

É sabida a minha admiração por Manuel António, quase diria que devoção por aquele que foi mestre de poetas, navegante profissional e músico amador. Gostava da sua poesia e agora estou louco pela sua prosa a qual chegou a nós graças ao volume editado para a R.A.G. por Xosé Luís Axeitos.
O trabalho do académico rianjeiro é fantástico, presentando-nos os textos tal como os escreveu no seu dia Manuel António e com breves notas eruditas, e não mais das necessárias.
Suponho que hei tornar a esta publicação para dar a minha opinião sobre os textos manuelantonianos, mas hoje, próximos ao dia de defuntos, quero publicar um conto gráfico, abusando dum texto extraído deste volume de prosas, concretamente da página 63, por se alguém quer consultar o texto completo e na grafia original.


Para quem quiser o pdf: aqui

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

nº 148 Noturno sambado

Noturno sambado.
-Para cantores antigos-

Sou poeta da libertação
sou cantor dum pais futuro
sou a voz que vai gritar
sou a luz longe do escuro
sou a mão que vai pegar
na viola que não cala
sou a ponte pra cruzar
este rio que separa

mas não sou quem de você
quando a noite faz
escurecer a praia.

Sou o ombro pra chorar
quando vem a desventura
sou a ponta do iceberg
sou a cabeça mais dura
sou aquele que escreveu
no caderno da esperança:
«quando nasçam nossos filhos
vamos melhorar a raça»

mas não sou quem de você
quando a noite faz
escurecer a praia.

Sou a prova irrefutável
de que a Pátria é necessária
eu sem a Terra seria
como prantinha arrancada 
levo prendido do peito
um cravo verde e vermelho
e nas mãos, SEMPRE NA LUTA,
uma fouce e um martelo.

mas não sou quem de você
quando a noite faz
escurecer a praia.

Letra duma canção que compus na adolescência
da que já não lembro a música.


sexta-feira, 20 de julho de 2012

nº 138 Oximoro


Oximoro

Sou a parte do teu corpo que passa frio
quando te deitas ao meu lado.
©rjais

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

nº 130 Apresentando os Cantos Lusófonos.

Toca apresentar os Cantos Lusófonos, e parece que vamos ir a quanto canto lusófono há.
Eis as datas:


- Sábado, 11 de Fevereiro: Compostela: Gentalha do Pichel: 20:30
- Quinta feira, 16 de Fevereiro: Vila Garcia: Escola Oficial de Idiomas: 19:00
- Quarta feira, 29 de Fevereiro: Vigo: 20:00


Não sei o local de Vigo. Quando saiba, direi.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

nº 60 Um novo artigo em O Patifúndio.

Venho de publicar no portal brasileiro O Patifúndio um artigo sobre a recente criação da Academia Galega da Língua Portuguesa. Podem ler aqui.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

nº 58 De quando fui caçador...

Nunca fui um grande caçador. Se para uma criança um colega quem de caçar um pássaro com um garamilho é um ser extraordinário, eu seria, com a perspectiva que me dá a distância temporal, uma espécie de anti-herói.

Os meus camaradas guardavam como um grande tesoiro o achado dum ninho que normalmente se ocultava no alto dalgum pinheiro. O ponto exacto era um segredo inconfessável fora do círculo íntimo da turma, pelo que ir-se da língua significava para o fala-barato um grande problema. Lembro vários episódios da rapina dos ovos que, por certo, não foram nada agradáveis. Para esse ofício não estava em absoluto dotado.

Primeiro ficávamos ao pé do pinheiro, prédio dos pobres passarinhos. A algum de nós tocava-lhe gavear a árvore até a pola que suportava o ninho. Como eu sempre teve uma vertigem patológica, jamais apreendi a gavear decentemente, assim que ficava abaixo. De haver pitinhos, normalmente o ladrão descia da árvore e até outra, ainda que não sempre os neonatos ficavam incólumes. Se havia ovos recolhiam-se à espera de fazer-lhes um teste científico: o da flutuabilidade na água: se se afundavam eram óptimos para o consumo, se aboiavam, horror! estavam chocos.

O melhor que me podia passar é que estivessem chocos, já que doutro modo alguém colhia uma agulha, fazia um furado num estremo e sorvia o contido com acenos de deleite sumo. Quando me tocava a mim punha qualquer escusa para passar o turno, normalmente bem aceite pelo grupo pois assim alguém papava a minha ração.

Mas no que éramos espertos era no fabrico de armamento e munições. Construíamos arcos e setas com vimes ou varinhas de guarda-chuvas ou fundas com um gaio, duas tiras feitas da câmara dum pneumático e um quadrado de coiro. Havia armas muito complexas como aquela elaborada com uma tábua e um pregador da roupa, com um mecanismo quem de propulsar como uma bala um grau de milho e outras simples por primitivas, como o tutelo, uma cana, melhor indiana, para cuspir hedras como perdigotos.

Aquele dia fiquei na casa dum amigo para fazermos um arco e ir de caçaria. Tínhamos um guarda-chuvas dos chamados de sete paróquias, estragado pelo último temporal. Arrancamos as varinhas cuidadosamente e procedemos a atar um grosso fio de pescar a modo de corda propulsora. As setas eram também as varas metálicas apontadas contra um muro de pedra. Rematado o processo de construção entramos na casa e desde a janela da cozinha começamos a disparar contra uma figueira próxima, tentando acertar-lhe a umas iniciais gravadas pelo meu colega no interior dum coração. Meu anfitrião cravou as setas repetidamente, alguma mesmo dentro do alvo, mas as minhas, faltas de força ou de perícia, iam perdendo altura até depositar-se inofensivas ao pé da árvore.

Já estava convencido do meu novo fracasso como depredador quando, sobre o travessão duma parra, um gato destemido foi-se achegado caladamente. Sabia certo que era impossível que um inútil como eu roçara sequer àquela presa inocente, mas, quiçá por ficar de bravo ante o meu parceiro de caçaria, apontei com um olho fecho, estiquei a corda e soltei a seta num instantinho que apenas durou o tempo que tardei em colher o ar do impulso inicial. Quando abri o olho que fechara vi ante mim um quadro surrealista. O gato ficara preso duma garra ao travessão, miava com um queixume inenarrável e o meu amigo esmendrelhava-se de tanto rir tirado no chão, com uma mão na cabeça e outra na barriga.

Ao tomar consciência do feito, desfiz-me da arma e botei a correr costa acima até a minha casa, onde fui aos bocadinhos recobrando a cor.

Mas o meu grande sucesso como caçador teve como protagonista a um grilo, o meu primeiro e último bichinho por vontade própria.

A caça do grilo não é nada doada. Um tem que encontrar o buraco apropriado na terra. De errar em este ponto pode dar com a casinha dum outro bicho menos hospitaleiro. Logo há que colher uma palhinha ou uma erva e mete-la e saca-la as vezes que for necessário até que pique o grilo, coma num rito iniciático à masturbação. Se a fricção tem sucesso, o insecto sai ao exterior e já é teu.

Eu fiz esta operação milhares de vezes sem resposta alguma, até que de tanto experimentar duma volta acertei. Saiu um cabecinha negra, minúscula e brilhante, tão atenta a mim como eu a ela. Houve um amor à primeira vista.

O seu primeiro dia na minha casa passou-o numa caixinha de plástico transparente, com uns buracos feitos na sua tampa com uma agulha de tricô incandescente .

Acomodei-o numa cama de ervas e palha e o meu grilo semelhava adorar a sua nova condição de hóspede e amigo meu.

Passaram alguns dias e comecei a notar no insecto como uma melancolia desconhecida até então, quiçá a saudade do seu anterior fogar ou o limitado da sua vivenda atual. O certo é que comecei a ter mágoa dele, passando pela minha cabeça a ideia de o liberar. Mas esse impulso durou pouco e de imediato procurei um plano B: haveria que lhe trazer um parceiro.

Dado que para conseguir o meu primeiro exemplar teve que fazer inúmeros intentos, desbotei rapidamente a possibilidade de ir novamente de caçaria. Tentando atalhar, fui junta do melhor pega-grilos que conhecia, um rapazote que já ia ao mar e tinha um bigode roxo que ainda não levara a primeira ceifa. Pedi-lhe uma parelha para o meu bichinho e incrivelmente diz que sim. Andou para o mato e ao pouco tempo estava no lugar acordado com um novo grilo para a minha colecção. Este bicho, alem de ser mais grande que o meu, tinha pedigree, era dos chamados cabeções.

Fez-lhe uma covinha entre as mãos e levei-o até o meu quarto onde guardava a caixinha que ia compartir com o seu congénere.

O meu velho amigo, até esse momento a cada bocado mais taciturno, saiu do seu letargio e começou a mexer-se, correndo excitado pelo minúsculo habitáculo agora compartido. A minha ideia fora todo um sucesso.

Já era tarde assim que fui cear e me deitei certo de ter salvado a um amigo da sua doença de solidão.

De amanhã acordei com a ânsia de ir procurar mais erva para os meus convidados, sabedor de que duas bocas precisam mais que uma só. Sentei na cama e colhi o cofrezinho transparente e o que vi deixou-me horrorizado. O grilo recém chegado devorara ao meu amigo deixando o seu corpo desmembrado como se fora obra dum Jack estripador dos insectos.

Soltei a caixinha e com ela já no chão pisei-a até que teve consciência de que nada do que havia no seu interior ficara com vida.

Depois cai na cama e chorei como uma criança.

sábado, 6 de junho de 2009

nº 50 A morir o a vivir.

Na minha meninice esteve em diferentes ocasiões ao borde da morte. Bom, em realidade, o que acabo de dizer pode resultar algo exagerado a olhos dum adulto, mas, no intre de me acontecer o sucedido, eu cri estar na hora do meu passamento.

Fazendo memória, quase que todas as situações têm a ver com o médio marinho, como não podia ser doutro modo morando na Arousa. Da primeira não tenho uma lembrança certa. Por tradição familiar sei que aconteceu em Ogrove, num estanque que havia ou há no Corgo. Com a minha lerdeza proverbial, cai dentro e fui resgatado por um soldado de recrutamento que me agarrou pelos cabelos e logrou que a cabeça viera à tona.

Mas foi na Arousa onde aconteceram os episódios mais dramáticos.

O campo de futebol que havia no Aguiuncho constituía um dos meus lugares favoritos. Era especial porque na primavera cobria-se dum manto de florecinhas semelhantes ao açafrão-do-prado. Na altura, um velho marinheiro contara-me que aquela flor era comestível e que mesmo tinha qualquer propriedade sanadora, não sei se febrífuga.

O caso é que era um lugar esplêndido para a prática do desporto, nomeadamente o futebol. O único problema residia na sua proximidade ao mar, no que às vezes podiam acabar as bolas logo dum chute incontrolado. Quando isto acontecia havia que se descalçar rapidamente e penetrar na beira-mar, normalmente, apenas uns passos.

O dia de autos, o culpável do chute descontrolado fui eu, assim que me tocou descalçar. Já o fizera mais vezes e sempre fora uma empresa doada, a pesares de não saber nadar.

A razão da minha pouca perícia natatória estava motivada por ter sido diagnosticado de reumas infantis, uma doença que se traduzia numas fortes injeções e na proibição total dos banhos de mar.

A bola estava próxima e fui decidido cara a ela, mas quanto mais estendia o braço para colhe-la mais ela se afastava de mim. Comecei a escutar os risos dos companheiros, tão sonoros quanto feridores do meu orgulho.

Não queria recuar. Caminhava notando a cada passo a friagem da agua nos joelhos, na cintura, nas mamilas, até que pude saborear o salitre dum mar que já ficava a ronça ronça das minhas fossas nasais. Podia tocar o esférico com as polpas dos dedos mais não lograva sujeita-la. Nesse intre de máxima tensão já não escutava risos nem voz nenhuma, só o meu coração que semelhava latejar nos meus tímpanos.

Então notei que o mar ondulava levemente. Olhei mais lá da bola e soube de imediato que algo ia acontecer e que esse algo não seria bom para mim. A motora de Narciso passava por entre as bateias caminho do Chufre gerando, como num trágico efeito borboleta, ondas que rapidamente se aproximaram ameaçadoras deica mim. O próximo que vi foi o fundo marinho. Estava teso baixo a agua, com os olhos abertos, impulsado por uma força que eu não controlava e, milagrosamente, com a bola entre as mãos, mostrando-a ao pessoal de terra por cima da tona.

A bola e mais eu ficamos sentados na areia, escutando esta vez os aplausos admirados dos colegas.

Outro dia que quase morro, também estava a jogar a futebol, desporto, como se vê, de máximo risco. Esta vez era no campo da Bouça, numa tarde calorosa de São João. Na Torre, ficara tudo preparado para a fogueira que arderia à noite e que este ano prometia ser das mais grandes e duradoiras. Como era habitual, eu jogava de guarda-redes, tendo certa habilidade para parar penaltis e apesares da minha baixa estatura, afastar a bola de punhos. Numa destas saídas o meu nariz topou com o crânio dum atacante com tal virulência que quando abri os olhos a minha cabeça estava meio submergida na água da beira-mar. No intervalo entre a lesão e o contato com a água aconteceu o que se segue: o golpe provocou-me uma comoção tal que perdi o sentido, ficando tirado sobre a relva com a cara ensanguentada. Os colegas, assustados, tentaram reanimar-me sem consegui-lo, assim que consideraram imprescindível deitar-me água na cara, suponho que influenciados pelas cenas de pancadas que víamos no cinema. Como não encontraram modo melhor de molhar-me, colheram-me entre quatro por pernas e braços e desceram comigo ate a praia. Então abri os olhos.

Uns meses atrás, fui até a Bouça e fiz o caminho que necessariamente tiveram que fazer os meus colegas comigo ao lombo. Teve de estar um bom tempo sem sentido, como mínimo dez ou quinze minutos. Não sei muito de cuidados médicos, mas acho que de ser hoje, ninguém me livrava duns quantos dias de hospital. Como consequência do golpe torci o tabique e durante grande parte da minha vida não pude respirar pelo nariz, razão pela qual vinte e tantos anos depois daquele São João, teve de fazer uma rinoplástia.

O último episódio que lembro, seguro que houve mais, tem a ver com outro desporto certamente arriscado, o de saltar de com a com. Os ilhéus deveríamos ser considerados os inventores do parkour, essa atividade gimnástica que consiste em «se mover de um ponto para outro da maneira mais rápida e eficiente possível, usando principalmente as habilidades do corpo humano». Quando saltávamos entre as rochas lançávamos, que bom!, um grito sinistro: a morir o a vivir. A mim sempre me causou perplexidade que os meus companheiros de jogos berraram isto em castelhano, sendo todos eles galegófones, mais deixo qualquer comentário sobre isto pra sociolinguístas e antropólogos culturais.

Pois bem, num salto impossível para a minha curta pernada, cai ao fundo duma fossa, ficando literalmente emparedado entre dois cons. Depois do susto da descida, senti as riscaduras que os lamparões e a cria de mexilhões fizeram por todo o meu corpo. Estava maçado, sentia as gotas de sangue a descer pela pantorrilha, mas o que verdadeiramente me produzia terror é que estava tão encaixado que não me podia mover. Só havia uma escapatória lateral cara onde as paredes dos cons se iam separando, mas era incapaz de deslocar-me, sentindo uma dor aguda em algum lugar do meu corpo a cada intento de por-me em movimento.

Acho que não devi tardar muito tempo em reagir, mas no intervalo que passei paralisado pensei em que aconteceria se não conseguia safar-me antes da subida da maré. Senti claustrofobia, angústia e uma sensação inenarrável de asfixia. Tomei consciência do ridículo da situação, toquei com as palmas das minhas mãos as paredes das rochas e arrastei o meu corpo face à saída daquela armadilha pétrea, ignorando a dor e as riscaduras. Quando esteve fora, a certa distância vi ao amigo que me acompanhara no percurso pelos rochedos do Faro. Ergueu o braço e a gritos perguntou que onde estivera, que não me dava encontrado. Também a gritos diz-se-lhe que aqui sentado, olhando ao mar. O mais difícil foi explicar onde fizera as minhas mais que evidentes feridas.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

nº 36 O maracanaço

Hoje era sábado, e os sábados das quatro da tarde em adiante só existia uma actividade possível: jogar a futebol. Em realidade, eu não passava um dia sem bater na bola, mas na fim-de-semana, como no futebol profissional, encenavam-se os grandes enfrentamentos.

Na Ilha não haviam muitas instalações desportivas. Tínhamos o campo onde jogava a equipa federada, as pistas de asfalto do grupo escolar e pouco mais. Bom, em realidade, não tão pouco mais.


Existia, desconheço se ainda existem, toda uma rede de ervaçais acondicionados para a pratica desportiva, quer dizer, com a erva apanhada ou simplesmente, aplanada pelas nossas chuteiras. Resulta extraordinário observar como as crianças desenvolvidas em liberdade, são quem de autogestionar o seu lazer, com um grau de organização que poderia fazer ruborizar a qualquer adulto. Estes rectângulos abertos num mato fundamentalmente de silveiras e fenos, constituíam uma rede estável, com sedes no Pombal, As Penas, Lagartinho, Gradim, etc.


Duma volta, os da Torre, o meu bairro, decidimos ir jogar ao Monte, o qual era para mim quase como ser seleccionado para um partido internacional. A preparação foi exaustiva. Treinamos durante a semana, nos recreios do cole, e mesmo tivemos conversas tácticas nas que falávamos de como neutralizar aos melhores jogadores contrários. Mas, além de toda a preparação física e intelectual, tínhamos uma arma secreta: uma caixa de remédios.

Cada um de nós foi trazendo da sua casa pensos, mercromina, esparadrapo... Até juntamos algum dinheiro para comprar réflex, um produto que consideramos absolutamente imprescindível, (confesso ter exagerado algum choque só por que me botaram um bocadinho de aquele remédio cheirão).


A noite anterior ao partido não peguei olho. Deitado na cama, com os olhos fechados, visualizava cada uma das paradas que ia fazer, os golos que meteríamos, o grande trunfo que nos aguardava. Porém, o que mais me quitava o sono era um jogador rival. Era grande, mais bem gigante, algo assim como um trol de David o Gnomo. Como futebolista era péssimo, mas se acertava a dar com a bola podia furar-te e como mal menor, introduzir-te na baliza junto com o esférico. Era tal a sua pouca perícia e suma brutalidade, que os companheiros o situavam como defensor estorvo e quando chegava a ele a bola, a gente berrava o seu nome dizendo a continuação: fura! fura!

Na tarde do partido caminhamos face ao Campo das Penas. As casas foram desaparecendo e pouco a pouco adentramo-nos no mato. No terreno de jogo estavam já os rivais, entre eles, o meu terror noturno Enormus. Colocamo-nos em cadansua metade, e dispomo-nos a jogar o partido. Os capitães deram-se a mão, no entanto os do Monte olhavam para nós numa atitude que a mim pareceu-me como se estivessem a executar a dança maori dos All Blacks.

Jogamos e jogamos bem. Ganhamos o partido a domicílio, com um domínio esmagador. O que controlava o tempo no seu relógio assobiou e os da Torre abraçamo-nos orgulhosos de ter protagonizado o nosso pequeno maracanaço. Logo das primeiras emoções, dispusemo-nos em ir embora de volta a casa, cantando aquilo de campeões, campeões! Então alguém diz com voz dramática:

- E a caixa dos remédios?

A caixa desaparecera e pela cara desafiante dos adversários soubemos que não a perdêramos.
Alguém quis protestar, mais foi suficiente que Enormus se erguera da rocha na que estava sentado como um dinossauro do pleistoceno, para que todos compreendêramos que aquele partido sim que não o podíamos ganhar. Naquele momento soube que de volta, o de campeões ficaria afogado no mais profundo das nossas gargantas.

Ao dia seguinte, na escola, os meus companheiros semelhavam ter esquecido tudo. Parecia que não jogáramos, que não perdêramos e que não nos roubaram. No recreio, todos foram jogar ao futebol, misturados uns com os outros, menos eu, que fiquei dolorido e segregado do resto, chateado com o mundo inteiro, mas também humilhado de não ter tido a coragem de defender o que era meu.

Tocou o timbre, fomos às fileiras e quando estávamos preparados para entrar, a minha olhada cruzou-se com a do gigante do Monte. Então, Enormus sorriu. Não era um riso de burla, não havia maldade nem superioridade, senão a tenrura duma criança que com aquele gesto queria pedir perdão. Naqueles poucos segundos de cruzamento de olhos dois meninos comunicaram-se sem palavras e não fez falta mais.

Um tempo depois fizeram o recheio do Regueiro com um novo espaço para o futebol, e começou a haver torneios organizados desde a Associação Cultural ou a equipa federada. Eu joguei em dois de aqueles campeonatos, sempre como porteiro, e como prova, as fotografias que adjunto.

No primeiro, com a camiseta do C.A.P. (Caixa de Aforros de Ponte Vedra), ficamos os derradeiros da clasificação. Devia ser o jogador mais baixo de todas as equipas, já que lembro, não sem certo rubor, que era incapaz de chegar-lhe ao travessão da baliza. (Campo do Regueiro)

Com o segundo, patrocinado pela panadaria Casico, logramos o campeonato. Alem disso fiquei como porteiro menos goleado, pelo que recebi uma copa que ainda conservo coma um tesoiro e que me foi entregada no campo Salvador Otero, no descanso dum partido oficial. (Campo das Bouças)

Numa e noutra fotografia reconheço as caras de algum dos meus melhores amigos na altura, com muitos dos quais apenas tenho hoje qualquer relação, mas aos que desde estas páginas do meu blogue envio um sorriso como o de Enormus: um poema sem palavras.


Ano: 1981?


Ano: 1983

domingo, 15 de fevereiro de 2009

nº 16 O estranho caso da borracha-tijolo

Nas turmas de aqueles anos, alguma de mais de trinta ou quarenta putos, meia dúzia de sobrenomes se misturavam entre eles para identificar a indígenas fruto de séculos de endogamia e insularidade. Além da linhagem, muitos dos seus nomes semelhavam ancorados no passado. Havia Albinos, Eugénios, Genaros, Amadores, Eládios, Silvérios, etc.
Quando uma criança possuía um apelido exótico como o meu, de imediato éramos considerados forasteiros e com esta expressão faroestiniana havia que apreender a viver, até que o tempo te ia acomodando á paisagem.
Já eu tinha alguns anos de escolaridade obrigatória quando um dia ao estar o professor a fazer chamada, (ao contrário do que lhe acontecera a Pedrito Fernández, o da mochila azul), descobri que na minha turma havia uma nova forasteira. A primeira reacção foi de alívio, pois era mais que provável que por um tempo deixasse de ser o branco perfeito, e a segunda, a de pensar como fazer para me unir à comissão de bem-vindas.
Aos que falávamos espanhol os colegas qualificavam-nos simplesmente de parvos. Eu fora parvo toda a vida, mas estava a progredir para deixar de se-lo. A menina nova ainda era mais parva do que mim, pois ela falava um espanhol perfeito. Devia ser filha dum trabalhador dalguma caixa económica e a pobre parecia um passarinho caído do ninho, morto de fome e frio.
Quando saímos ao intervalo, sem pensa-lo duas vezes, fui cara ela e espetei-lhe na cara:
-Tu és parva.
Naquele mesmo instante aprendi o significado disso que chamam discriminação por razão de género. Os meus pares ficaram a olhar para mim como dizendo:
–Não te passes com a rapariga.
Fiquei muito chato. Pelo visto havia dois tipos diferentes de forasteiros, os que levavam carapitos e os que não.
Desde aquele mesmo dia a moça ficou como um prego cravado no meu coração.
A menina sentava-se justo as minhas costas, o qual agradecia, pois quando menos não tinha que fazer esforços por não vê-la. O mau e que sim podia ouvi-la, com o seu perfeito parviniano, e até cheira-la. Foi precisamente um adoçado cheirinho a nata o que chamou a minha atenção. Quando virei a cabeça, sobre a mesa estava a primeira borracha-tijolo que olhei na minha vida.
Era algo fantástico, enorme e com um recendo a bolacha verdadeiramente indescritível. Foi suficiente uma olhadela para decidir que aquela delicatessem ia ser minha.
Teve de ser muito persuasivo para lograr que o meu parceiro de mesa e melhor amigo durante todo o primário, consentira em associar-se comigo para cometer o maior roubo que jamais tivéramos feito, (no meu caso confesso que era o primeiro).
Ao ter jornada partida, o material escolar ficava sobre a mesa até a tarde, assim que a estratégia era sair os últimos e perpetrar o latrocínio dissimuladamente, já que o professor aguardava na porta para fechar a sala de aulas. Fui eficaz como um experimentado Arsèn Lupin.
Fora do recinto, e em previsão de que ante a sua desaparição pela tarde houvesse revista, decidimos ocultar a borracha-tijolo entre umas silvas, num pinheiral que ficava de caminho ao nosso bairro.
O jantar foi angustioso, com a adrenalina ainda sem descer de tudo e cônscios do mais que provável rebuliço que se ia produzir de tarde. Eu já estava a ver ao chefe de turma ou quiçá, meu Deus!, até o director, a dizer:
- Aqui não sai ninguém enquanto não apareça o ladrão ou ladrões.
Mas a tarde produziu-se uma milagre. A menina, discreta, nem perguntou se alguém vira a sua borracha, por outro lado difícil de se ocultar entre os livros ou cadernos. Não sei que passaria pela sua cabeça. Quiçá era a primeira rapariga que eu conhecia farta-de- tudo, dessas que não lhe dão mérito a nada, que tem tanto que logo aborrecem qualquer coisa, ou tal vez, sendo nova entre os ilhéus, simplesmente não se atreveu a provocar um conflito na turma. Fosse como for, a tarde transcorreu, chegou a noite e na solidão do quarto, entre os lençóis, o medo a ser descoberto deu passo a uma sensação muito pior, o sentimento de culpabilidade. Por primeira vez escutei o meu coração a latejar no peito, batendo na noite como um martelo a fazer cacos o meu cérebro infantil. Já na arraiada decidi que tinha de restituir o roubado, pois ficava claro que não poderia viver com aquele peso o resto da minha vida.
Ao dia seguinte o meu amigo confirmou-me que na noite passada houvera quando menos dois putos ilheus que não pegaram olho.
A estratégia agora ficava clara. Antes de ir para a escola, passaríamos pelo pinheiral e recuperaríamos a borracha. Na saída para o intervalo, ou em qualquer outra, ficaríamos novamente os últimos e silandeiramente pousaríamos o roubado sobre a mesa da colega.
No meio do pinheiral havia um grande pinho manso com uma arrandeeira pendurada. Próximo a ele, uma silva com as amoras todavia de cor vermelha. Metemos a mão entre as espinhas e sacamos a borracha-tijolo, ou melhor dito, o que ficava dela. Fora mordida, picada, esfarelada... Da sua aparência original só ficava parte do letreiro no que com letras maiúsculas podíamos ler: NATA.
Eu não disse palavra e acho que o meu parceiro também não diz nada. Soltei aquele queijinho gruyère como se queimasse, fiquei uns segundos olhando para ele, o qual jazia esquartejado sobre o arume, ergui-me e tomei uma nova decisão: passar página definitivamente.
O que restava de caminho à escola foi para nós os dois um passeio que por silencioso resultou atípico, mas jamais voltamos a falar da borracha-tijolo, nem do que aconteceu aqueles dias.
A rapariga não durou muito entre nós. Quiçá por não denunciar o roubo cheguei a ter-lhe certo aprecio, mesmo que nunca cruzáramos palavra; há que lembrar que era parva. Ela fiz muitos intentos de que nos levássemos, escreveu-me cartinhas, picava-me com o lápis acabadinho de afiar, mandava recados por amig@s comuns, mas eu não correspondia. Deixou de tentar qualquer coisa comigo o dia que quase lhe parto a tíbia duma patada, mas essa é outra história.

sábado, 1 de novembro de 2008

nº 06 Orjias 3

O primeiro filme que lembro ter visto num cinema foi Encontros Imediatos do Terceiro Grau. Este grande sucesso na carreira de Spielberg, causou-me uma grande impressão, até o ponto de não poder dormir em noites por medo aos extraterrestres. Tendo em conta o atraso com o que chegavam as fitas à Ilha, acho que devim vê-la um ano após da sua estreia no 1977.
O que ficou na minha memória de aquele dia foi a gigantesca imagem da nave-mãe iluminada, tão real que parecia que estava a atracar no cais do Xufre. Também lembro que me impactou a trilha, muito antes de saber quem era o John Willians, não tanto por questões puramente musicais, (tinha oito ou nove anos), por quanto a sugestão que produzia combinada com o projectado na tela.
Nessa sala gocei de muitos outros títulos desde um lugar privilegiado, a cabine de projeção. Meus pais eram amigos do cameraman, assim que alem de não pagar tiquete via o filme através dum pequeno quadrado feito na parede. Quando a película não interessava muito, vigiava os eletrodos que se consumiam aos bocadinhos, deitando ao ar um ténue fio de fumo.
Às vezes, o celulóide se queimava e então umas borbulhas apareciam na tela, começando na plateia uma grande vaia que devia elevar subitamente as pulsações do coração do cameraman. Então, havia que cortar a fita deteriorada com uma lâmina e depois colar os extremos o mais rapidamente possível. Essas fitas voltavam às latas e às sacas onde vieram para ir parar em outro cinema de aldeia assim de diminuídas.
Na metade do filme havia um intervalo que se anunciava com um fotograma no qual líamos: Visite el ambigú. Tardei décadas em saber que era aquilo do ambigú. Suponho que com anterioridade ao que eu posso lembrar houve tempos melhores nos que o bufê era real. Nos meus, o ambigú, era uma banca improvisada no exterior do edifício, onde se vendiam sementes e tofes de café.
Quando os filmes eram de índios e vaqueiros, a tensão ia in crescendo até que com a chegada do Sétimo de Cavalaria o público rompia num prolongado sapateado, uma forma de dizer Viva, ganharam os bons!
Lá vi cento e um títulos de Bruce Lee, de Cantinflas, westerns, históricos, etc, e ainda lembro, entre tantos sons fossilizados nos meus ouvidos, o do mecanismos do projector a funcionar.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

nº 05 Orjias 2


Quando criança, os Sábados de tarde eram de futebol. O jogo era prioritário, e tinha de haver um grande temporal de chuva e vento para ficar na casa a ver T.V. Sesión de Tarde botava quase sempre filmes de aventuras, com Johnny Weissmüller na selva ou Errol Flynn a fazer de Robin dos Bosques. A má notícia era quando punham uma da pioneira do nado sincronizado Esther Williams e a sua escola de sereias, ou cinema espanhol com estrelas infantis a fazer esforços por não medrar.

Uma tarde que chovia a potes, sentei no cadeirão a ver um filme com o meu pai. Era de detectives privados, da hampa de Chicago e de muito tiro. Um daqueles homens de chapéu preto e metralhadora de tambor, subiu a um elevador, premeu no botão e dirigiu-se directamente ao terraço. Na Ilha, as casinhas eram pequenas e os únicos edifícios de vários andares foram construídas pelas Caixas Económicas, más apenas com escada de serviço. Na minha ignorância de puto com pouco mundo, dirigi-me ao meu pai com voz maravilhada:

- Quem dera que uma coisa assim existira na verdade!

Meu pai ficou a olhar para mim como a pensar, meu Deus, o que foi que eu fiz de errado?, mas de seguida explicou pelo miúdo que aquilo era um engenho inventado fez muito, muito tempo.

Anos mais tarde, depois de rematar a educação primária, teve de ir a Vila a estudar o secundário, na altura em que já começava a ter penugem no bigode. Fiz amizade com um natural que como bom colega, guiou-me pela sua cidade. Desde a conversa com meu pai, acho que poucas vezes subira num elevador, pelo que aquele mecanismo seguia a aliciar-me com a sua magia. Na conversa, saiu o tema da minha extravagante atracção, questão que provocou no meu colega uma sonora gargalhada. Curvei a cabeça e caminhei um bocado silencioso, percebendo o amigo, acertadamente, que me chateara. Para compensar-me, parou no primeiro portal e premeu ao chou um botão do porteiro automático. Não sei o que respondeu à voz que falou do outro lado, mas de imediato a porta abriu e passamos para o interior do prédio.

Aquela manhã teve overdose de elevador. Uma e outra vez subimos e baixamos, contando os números que se iluminavam ao nosso passo, cumprimentando com os transeuntes que nos olhavam com indiferença. A partires de então, perdi parte da minha paixão pelos elevadores, que só recuperei um dia que subindo ao andar do meu primo, o qual não deixava de botar uma bola de basquete, vimos como esta foi engolida pela pequena fenda entre a caixa e a porta. Mas essa é outra história...

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

nº 01 Orjias 1

Meus caros:
"Eu sou Orjais, um raparigo de aldeia, como quem diz um ninguém."
Assim, com este empréstimo de Neira Vilas, poderia começar o relato da minha vida. Nasci um dia de Santo António, padroeiro de Lisboa, no 1969. De ser certo o que diz minha mãe, fiz os primeiros choros por volta das sete da tarde, coincidindo que nesse momento, uma banda de música passava a tocar por baixo da nossa janela. Portanto, semelha que estava no destino que fosse reintegracionista e músico, ainda que a dizer verdade, também no andar inferior da nossa moradia havia uma taberna e mais sou abstémio. A minha família era de nómadas, pelo que aos quatro anos resolvemos ir viver a Ilha de Orjais, um território onde moravam os Argonautas do Mar da Arouça, pessoas com rostro salgado e coração destemido. Esse território já não existe. Um dia, alguém considerou que os lugares singulares devem desaparecer e se produz o cataclismo. Por isso a Ilha de Orjais só pode ser visitada no mar dos meus pensamentos, onde abóiam lembranças inconexas, cosidas umas a outras por delgadinhos fios de saudade.