sexta-feira, 24 de abril de 2009

nº 36 O maracanaço

Hoje era sábado, e os sábados das quatro da tarde em adiante só existia uma actividade possível: jogar a futebol. Em realidade, eu não passava um dia sem bater na bola, mas na fim-de-semana, como no futebol profissional, encenavam-se os grandes enfrentamentos.

Na Ilha não haviam muitas instalações desportivas. Tínhamos o campo onde jogava a equipa federada, as pistas de asfalto do grupo escolar e pouco mais. Bom, em realidade, não tão pouco mais.


Existia, desconheço se ainda existem, toda uma rede de ervaçais acondicionados para a pratica desportiva, quer dizer, com a erva apanhada ou simplesmente, aplanada pelas nossas chuteiras. Resulta extraordinário observar como as crianças desenvolvidas em liberdade, são quem de autogestionar o seu lazer, com um grau de organização que poderia fazer ruborizar a qualquer adulto. Estes rectângulos abertos num mato fundamentalmente de silveiras e fenos, constituíam uma rede estável, com sedes no Pombal, As Penas, Lagartinho, Gradim, etc.


Duma volta, os da Torre, o meu bairro, decidimos ir jogar ao Monte, o qual era para mim quase como ser seleccionado para um partido internacional. A preparação foi exaustiva. Treinamos durante a semana, nos recreios do cole, e mesmo tivemos conversas tácticas nas que falávamos de como neutralizar aos melhores jogadores contrários. Mas, além de toda a preparação física e intelectual, tínhamos uma arma secreta: uma caixa de remédios.

Cada um de nós foi trazendo da sua casa pensos, mercromina, esparadrapo... Até juntamos algum dinheiro para comprar réflex, um produto que consideramos absolutamente imprescindível, (confesso ter exagerado algum choque só por que me botaram um bocadinho de aquele remédio cheirão).


A noite anterior ao partido não peguei olho. Deitado na cama, com os olhos fechados, visualizava cada uma das paradas que ia fazer, os golos que meteríamos, o grande trunfo que nos aguardava. Porém, o que mais me quitava o sono era um jogador rival. Era grande, mais bem gigante, algo assim como um trol de David o Gnomo. Como futebolista era péssimo, mas se acertava a dar com a bola podia furar-te e como mal menor, introduzir-te na baliza junto com o esférico. Era tal a sua pouca perícia e suma brutalidade, que os companheiros o situavam como defensor estorvo e quando chegava a ele a bola, a gente berrava o seu nome dizendo a continuação: fura! fura!

Na tarde do partido caminhamos face ao Campo das Penas. As casas foram desaparecendo e pouco a pouco adentramo-nos no mato. No terreno de jogo estavam já os rivais, entre eles, o meu terror noturno Enormus. Colocamo-nos em cadansua metade, e dispomo-nos a jogar o partido. Os capitães deram-se a mão, no entanto os do Monte olhavam para nós numa atitude que a mim pareceu-me como se estivessem a executar a dança maori dos All Blacks.

Jogamos e jogamos bem. Ganhamos o partido a domicílio, com um domínio esmagador. O que controlava o tempo no seu relógio assobiou e os da Torre abraçamo-nos orgulhosos de ter protagonizado o nosso pequeno maracanaço. Logo das primeiras emoções, dispusemo-nos em ir embora de volta a casa, cantando aquilo de campeões, campeões! Então alguém diz com voz dramática:

- E a caixa dos remédios?

A caixa desaparecera e pela cara desafiante dos adversários soubemos que não a perdêramos.
Alguém quis protestar, mais foi suficiente que Enormus se erguera da rocha na que estava sentado como um dinossauro do pleistoceno, para que todos compreendêramos que aquele partido sim que não o podíamos ganhar. Naquele momento soube que de volta, o de campeões ficaria afogado no mais profundo das nossas gargantas.

Ao dia seguinte, na escola, os meus companheiros semelhavam ter esquecido tudo. Parecia que não jogáramos, que não perdêramos e que não nos roubaram. No recreio, todos foram jogar ao futebol, misturados uns com os outros, menos eu, que fiquei dolorido e segregado do resto, chateado com o mundo inteiro, mas também humilhado de não ter tido a coragem de defender o que era meu.

Tocou o timbre, fomos às fileiras e quando estávamos preparados para entrar, a minha olhada cruzou-se com a do gigante do Monte. Então, Enormus sorriu. Não era um riso de burla, não havia maldade nem superioridade, senão a tenrura duma criança que com aquele gesto queria pedir perdão. Naqueles poucos segundos de cruzamento de olhos dois meninos comunicaram-se sem palavras e não fez falta mais.

Um tempo depois fizeram o recheio do Regueiro com um novo espaço para o futebol, e começou a haver torneios organizados desde a Associação Cultural ou a equipa federada. Eu joguei em dois de aqueles campeonatos, sempre como porteiro, e como prova, as fotografias que adjunto.

No primeiro, com a camiseta do C.A.P. (Caixa de Aforros de Ponte Vedra), ficamos os derradeiros da clasificação. Devia ser o jogador mais baixo de todas as equipas, já que lembro, não sem certo rubor, que era incapaz de chegar-lhe ao travessão da baliza. (Campo do Regueiro)

Com o segundo, patrocinado pela panadaria Casico, logramos o campeonato. Alem disso fiquei como porteiro menos goleado, pelo que recebi uma copa que ainda conservo coma um tesoiro e que me foi entregada no campo Salvador Otero, no descanso dum partido oficial. (Campo das Bouças)

Numa e noutra fotografia reconheço as caras de algum dos meus melhores amigos na altura, com muitos dos quais apenas tenho hoje qualquer relação, mas aos que desde estas páginas do meu blogue envio um sorriso como o de Enormus: um poema sem palavras.


Ano: 1981?


Ano: 1983

2 comentários:

Anónimo disse...

O xigante do monte non seria Amoedo, non?. Encantoume ler a historia, trouxome moitos recordos daqueles tempos, por certo faltouche o campo de Riasón, sempre lle cortabamola herba co fousiño, e dispois viñan os do Salvador Otero a jodernos os terrons, aqueles si que eran tempos.

José Luís do Pico Orjais disse...

Melhor deixa-lo em Enormus, um tipo grande e bom. Obrigado pelo comentário.