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sábado, 27 de setembro de 2014

nº189 Roberto Bolaño e a Galiza II


Em Los detectives salvajes, Roberto Bolaño definiu aos moradores da Galiza como «gallegos asustados ante lo irremediable». Eu considero mais bem que somos pessoal assustado ante o remediável, de ai o nosso ADN conservador. Quando Xosé Lendoiro viaja na sua roulotte à Galiza, na realidade, está a vir ao encontro dos antepassados do Roberto, esse chileno-mexicano que escreve como um bom galego quarterão. Ele sabe que depois de mil viagens, de ir botando raízes em quanta terra fértil nos vamos encontrando, a semente volta a pátria para contemplar a mesma paisagem «umbrosa e elemental» de sempre. A roulotte, como a morada da Virgem que viajou de Nazaret a Loreto, instalou-se num camping de Castro Verde, presenciando Lendoiro ainsólita cena do poço e o menino. Mas, por que aqui? Noutra postagem já referi a minha hipótese de que a razão tem a ver com que neste concelho se encontra a única paróquia cujo nome coincide com o apelido do escritor chileno: Santa Baia de Bolanho. 
Segundo a wiki, neste lugar moravam em 2004 cento trinta e dois habitantes (69 mulheres e 63 homens). Numa viajem recente por terras de Lugo decidi achegar-me com a família até esta pequena paróquia castroverdiana, no que constituiu um périplo rianjeiro-bolañês, que de sermos ianques, já estaria nos roteiros freaqui.
Sabemos que a presença da Galiza na obra de Bolaño não é apenas um território literário. Além das suas fílias, Valle Inclán, Dieste... há razões de tipo familiar, pois —como ele mesmo comentou em várias entrevistas— era neto de galego. Este dado, tal vez por sabido, parece não interessar muito aos estudiosos da obra de Bolaño, sendo para mim um elemento fulcral para explicar cenas como a acontecida no camping de Castro Verde. Mas quem era este avô galego? Como se chamava?
Desconheço se já se tem publicado nalgum lugar, mas eu não dei encontrado nenhuma publicação que faça menção a identidade deste homem que um dia abandonou a sua terra para dirigir-se a república chilena. Na procura das raízes galegas do autor de 2666 contactei com o Dr. Leon Enrique Bolaño, deputado do PAN em México, o qual, muito amavelmente, verificou-me o nome do seu avô e o lugar do seu nascimento.
As raízes do Roberto não estão em Castro Verde, senão em Becerreá. O nome do seu avô era Ricardo Bolaño Morán, morto em 1940, na mitologia bolanhesa —ainda por confirmar— a consequência da queda dum cavalo. Este casa com a catalana Eugenia Carné com a que terá nove filhos. Um deles, León Boláño Morán casará com Victória Ávalos Flores, professora, pais do escritor Roberto Bolaño Ávalos. Posteriormente, León vai casar em segundas núpcias com María Irene Mendoza, pais do Dr. León Enrique Bolaño Mendoza, o político mexicano.
Agora, toca ir a Becerreá na procura dalgum dos descendentes dos Bolaño Morán. Já irei contando.

 © Tero Rodríguez

 © Tero Rodríguez

Mais sobre Roberto Bolaño neste blogue:

terça-feira, 9 de julho de 2013

nº 170 Roberto Bolaño e a Galiza I

LOS DETECTIVES SALVAJES

A leitura de Los detectives salvajes LDS Anagrama 1998 permitir-nos-à continuar a reflexionar sobre a relação de Roberto Bolaño com a Galiza e até fazer-nos uma ideia do que o nosso país significava para ele. Sabemos pouco da ascendência galega de Bolaño, só que o avô paterno emigrou a Chile onde casou com uma catalana que lhe deu nove filhos. Um deles foi León Bolaño Carné, morto no 2010 e pai do Roberto.
Postos no caminho de construir um discurso em tom galego sobre o autor chileno, podemos sublinhar as três referências que sobre a Galiza encontramos em LDS.

1. p. 216-220 Fala Amadeo Salvatierra. 

Um livro de Roberto Bolaño e sempre uma espécie de reader de leituras curiosas, um exercício de transtextualidade que funciona a modo de engado para que termines por morder a isca, ou seja, indo a procura do texto citado. Num dos capítulos de LDS que tem como protagonista a Amadeo Salvatierra, cita-se o manifesto do movimento estridentista mexicano, Actual nº 1. Esta brochura foi redigida por Manuel Maples Arce (1898-1981) e resulta um texto delicioso e sem qualquer desperdício. Lendo esta proclama ultra-vanguardista ocorreu-se-me a frase: «eu já era pós-moderno antes de tu nasceres», sobre a que deveriam reflexionar aqueles que, tal como disse Victor Erice referindo-se ao cinema espanhol, chegaram à pós-modernidade sem ter passado pela modernidade (im Relatos Reales de Javier Cercas).
No Actual nº 1 faz-se um uso da linguagem demolidora que mais que ultra, às vezes parece mesmo barroca:

«Al fin, los tranvías, han sido redimidos del dicterio de prosaicos, en que prestigiosamente los habia valorizado la burguesía ventruda con hijas casaderas por tantos anos de retardarismo sucesivo e intransigencia melancólica, de archivos cronológicos». No apartado V afirma-se: «¡Chopín a la silla eléctrica! (M.M.A. [Manuel Maples Arce] trade mark)».

Bolaño deveu gostar muito do discurso iconoclasta estridentista tão em sintonia com os boicotes dos  moços infrarrealistas ou com textos seus como Consejos sobre el arte de escribir cuentos onde diz:

«[...]
4) Hay que leer a Borges. Hay que leer a Rulfo y a Monterroso. Un cuentista que tenga un poco de aprecio por su obra no leerá jamás a Cela ni a Umbral. Sí que leerá a Cortázar y a Bioy Casares, pero en modo alguno a Cela y Umbral.

5)Lo repito una vez más por si no ha quedado claro: a Cela y a Umbral, ni en pintura». Cuentos Anagrama; Barcelona 2010 p. 7

O manifesto estridentísta encerra-se com um Diretorio de Vanguardia que inclui a todos os escritores das vanguardas europeias e americanas que supostamente «no han sido maleados por el oro prebendario de los sinecurismos gobernistas, a los que aún no se han corrompido con los mezquinos elogios de la critica oficial y con los aplausos de un público soez y concupiscente [...]» Actual nº 1. Pois bem, nesse diretório há quatro galegos: Ramón María del Valle Inclán (1866-1936), Vicente Risco (1884-1863), Evaristo Correa-Calderón (1899-1986) e Eugenio Montes (1900-1982). As pergunta fão-se inevitáveis:

1. que levou a Maples Arce a incluir a estes quatro autores galegos de três gerações diferentes?
2. e, nomeadamente, que fazem nesta lista dois moços que andam por volta dos vinte anos de idade e sem apenas obra impressa?

A resposta achega-no-la o professor Carlos Garcia no artículo titulado "Manuel Maples Arce: correspondencia con Guillermo de Torre", 1921-1922 Revista Literatura Mexicana, Vol 15, No 1 (2004) Graças a este trabalho sabemos que Maples Arce conhecia a revista literária Cosmópolis, da que era colaborador de Torre: «A través de las páginas de Cosmópolis, he seguido su interesante labor de propaganda y divulgación de las nuevas tendencias literarias.»  Carta de MMA a GT, México, 8-XII-21
Se fazemos uma busca dos artigos assinados por Guillermo de Torre em Cosmópolis encontrar-nos-emos com um datado em novembro do 1920 titulado "El movimiento ultraísta español" p.91-113. Este longo trabalho é a base do diretório redigido por Maples Arce e a razão única de que elementos tão afastados como Valle Inclán e Montes apareçam juntos.
Resulta fácil de demostrar o que acaba de dizer por quanto a nômina de artistas de Actual nº 1 e "El movimiento ultraísta español" colocaram-se, inclusive, na mesma ordem:

«Mauricio Bacarisse. Rogelio Buendía. Vicente Risco. Pedro Raida. Antonio Espina. Adolfo Salazar. Miguel Romero Martínez. Ciriquiain Caitarro. Antonio M. Cubero. Joaquín Edwards. Pedro Iglesias. Joaquín de Aroca. León Felipe. Eliodoro Puche. Prieto Romero. Correa Calderón. Francisco Vighi. Hugo Mayo. Bartolomé Galíndez. Juan Ramón Jiménez. Ramón del Valle-Inclán. José Ortega y Gasset. Alfonso Reyes. [...] » "Directório de Vanguardia", Actual nº 1

«Mauricio Bacarisse, Rogelio Buendía, Vicente Risco, Pedro Raida, Antonio Espina, Salvat Papasseit; los críticos Adolfo Salazar, Miguel Romero Martínez; los prosistas Ciriquiain-Gaiztarro, Antonio M. Cubero, Juan Héctor Picabia, Joaquín Edwards, Pedro Iglesias, Joaquín de Aroca, y posteriormente, acogiéndose a nuestras pablicaciqnes, León Felipe, Eliodoro Puche, Prieto Romero, Correa-Calderón, Ciria Escalante y Francisco Vighi, y los sud-americanos Hugo Mayo, José-Juan Tablada y Bartolomé Galindez. Cardinalmente los altos espíritus consagrados de Ramón Gómez de la Serna, Valle-Inclán, Juan Ramón Jiménez, José Ortega y Gasset y Gabriel Alomar [...]» "El movimiento ultraísta español"

Eugenio Montes aparece no Directorio... nos primeiros lugares junto a Rafael Cansinos-Asséns, Ramón Gómez de la Serna, Rafael Lasso de la Vega, Guillermo de Torre, Jorge Luis Borges, Cleotilde Luisi, Vicente Ruiz Huidobro, Gerardo Diego ou Pedro Garfias. Isto é importantes pois a mesma lista estabelece uma hierarquia cuja presidéncia há corresponder a Cansinos-Asséns e onde a colocação privilegiada de Montes remete-nos à uma posição fidalga dentro das vanguardas hispano-americanas. Por todo isto resulta um bocado surpreendente a afirmação da professora Eva Valcárcel quando diz: «porque ni Manuel Antonio ni Eugenio Montes, el poeta de Bande, tenían idea de lo que estaba pasando en la vanguardia de París». La Voz de Galicia, 23/05/2009 O poeta de Bande, efectivamente, como se diz neste artigo de La Voz, devia muito a Vicente Risco, mas em 1921, momento no que se publica Actual nº 1, Eugenio Montes tinha uma sólida carreira como colaborador das mais prestigiosas revistas literárias tais como Grecia ou Cervantes e uma grande rede de amigos, conhecidos, colaboradores, até extremos que apenas posso intuir. Quanto mais eu me aprofundo na sua biografia mais convencido estou de que Montes além de poeta, periodista ou diplomata, na realidade era uma aranha a tecer uma grande aranheira da que muitos poucos intelectuais da sua época ficaram a salvo.
Só como exemplo das suas caras amizades dizer que na revista Grecia vão-se publicar nos diferentes números poemas dedicados pelos seus autores a Eugenio Montes, entre os quais, Guillermo de Torre, Gerardo Diego, Ernesto López Parra, Vicente Risco, José de Ciria y Escalante ou Luciano de San-Saor [pseudónimo de Lucia Sánchez Saornil].

Sobre a revista Grecia (50 números entre 1918 e 1920) paga a pena sinalar a participação na mesma de Vicente Risco. O escritor de Ourense era já, na altura, um autor consagrado e com alguma intervenção na atividade cultural da capital do reino. Em 1914 pronunciou uma histórica conferência no Ateneo cujo tema foi a obra de Rabindranath Tagore, que um ano antes fora galardoado com o Nobel de literatura.
Eis uma breve notícia da presença de Risco na revista Grecia:

- Em 20 de maio de 1919, nº XVI, poema de E.M. dedicado a V.R.

- Em 10 de dezembro de 1919, nº XXXV, poema de V.R.

- Em 1 de junho de 1920, nº XLVIII, poema de V.R. dedicado a E.M.

Há que lembrar que é em janeiro do 1920 quando Risco publica na revista Nós o seu poema futurista, em galego, U...ju ju... 

2. p. 427-448 Fala Xosé Lendoiro.

Xosé Lendoiro é um advogado de origem galega que edita uma revista de poesia graças ao dinheiro ganhado defendendo «financieros deshonestos, los banqueros desfalcadores, los narcotraficantes, los asesinos de mujeres y de niños, los que lavan dinero, los políticos corruptos» p.440 Muitas das páginas de LDS estão repletas de referências autobiográficas; poderia haver algo de real na trama de Lendoiro?
Com certeza, não resulta difícil encontrar editores galegos em Catalunha, principalmente estabelecidos em Barcelona. A mim, e assim de memória, ocorrem-se-me os nomes de Gonzálo Canedo [Libros del Silencio], Olegario Sotelo Blanco [Sotelo Blanco ed.], Manuel Moleiro [M. Moleiro] ou Heitor Rodal [Edições da Galiza]. Mas acho que o Lendoiro é uma escusa para expôr o que a Galiza é no imaginário  bolañês.
Xosé Lendoiro viaja numa roullotte por terras galegas, é dizer, «por la umbrosa y elemental Galicia». p. 428 Se a estes dois adjetivos, umbrosa e elemental, acrescentamos primitiva, considero perfeitamente definida a imagem que do nosso país tem Bolaño. Um território anacrônico, como as latinices de Lendoiro.
Neste percurso pela Galiza, o advogado barcelonês instala o seu veículo num camping de Castro Verde, Lugo. Resulta evidente que esta localização de LDS teve muito a ver com que uma das paróquias do concelho luguês de Castro Verde se chame Santa Baia de Bolaño.
Roberto Bolaño põe na boca de Xosé Lendoiro uma definição demolidora da nossa terra: «[...]en una Galicia que toda ella era como el hocico de una fiera salvaje, una boca verde, gigantesca, que se abría hasta una desmesura dolorosa bajo un cielo en llamas, de mundo quemado, calcinado por la Tercera Guerra Mundial que nunca ocurrio [...]» p. 444 Um país onde moram «gallegos asustados ante lo irremediable». p. 445
Como peche do capítulo, Bolaño regala-nos uma última e perfeita definição do Sermos Galegos a modo de piada-filosófica:

«Hasta aquí llega la poesía, esa mala pécora que me ha acompañado a traición durante tantos años. Olet lucernam. Ahora sería conveniente contar dos o tres chistes, pero sólo se me ocurre uno, así, de pronto, sólo uno, y para mayor inri de gallegos. No sé si ustedes lo saben. Va una persona y se pone a caminar por un bosque. Yo mismo, por ejemplo, estoy caminando por un bosque, como el Parco di Traiano o como las Terme di Traiano, pero a lo bestia y sin tanta deforestación. Y va esa persona, voy yo caminando por el bosque y me encuentro a quinientos mil gallegos que van caminando y llorando. Y entonces yo me detengo (gigante gentil, gigante curioso por última vez) y les pregunto por qué lloran. Y uno de los gallegos se detiene y me dice: porque estamos solos y nos hemos perdido». p. 448

3. p. 480 Fala Jaume Planells.

«[...] esa playa en donde en primavera la gente se desnudaba del todo, calas pequeñas y roqueríos, a la vista sólo de los pasajeros del tren de la costa a quienes el espectáculo traía sin cuidado, lo que es la democracia y la civilidad, en Galicia esos mismos pasajeros hubieran detenido el tren y se hubieran bajado a capar nudistas, en fin, yo pensaba en esas coasas cuando decía hola, soy Jaume Planells, el otro padrino». p. 480

Finalmente:

Na postagem nº 142, falava da importância de Rafael Dieste em 2666, não apenas no aspecto mais óbvio, o papel desempenhado pelo Testamento Geométrico, senão na  influência que Dos arquivos do trasno ou Historias e invenciones de Felix Muriel teve na redação do romance de Bolaño. Na minha opinião, o escritor chileno só escreveu uma obra na sua vida, um maravilhoso romance rio que nos foi entregando em pequenas doses, alguma não tão pequena, sendo neste caso metodologicamente recomendável partir do geral para o particular, ler com atenção o canon bolañês e ir, posteriormente, atando fios. Ponhamos um exemplo.

- Em Amuleto Anagrama 1999 3ª ed. de Compactos p. 77, fala-se-nos por primeira vez dum cementério no ano 2666, um título que considero influenciado por "11926" de Os Arquivos do Trasno
- Em Amberes Anagrama 2002 4ª ed., aparece a personagem de Lola Muriel, uma moça que nos oitenta tinha dezoito anos. O apelido Muriel remete-nos a Historias e invenciones de Felix Muriel, mas também ao segundo apelido do pai de Rafael Dieste, Eladio Dieste Muriel e a Felix Muriel, pseudónimo utilizado pelo autor rianjeiro.
-  Por último 2666 Anagrama 2004, é em si mesma uma homenagem a Dieste e o seu Testamento Geométrico.

A hora de procurar uma componente galega na obra de Roberto Bolaño eu distinguiria entre a ascendência biológica, o facto de ser neto de galego, e a ascendência literária, na que Dieste tem um papel preponderante. Mas em LDS tal vez haja um bocado de tudo. O avô galego de Bolaño, o qual morreu como consequência das feridas sofridas ao cair dum cavalo, procede dum país imaginário chamado Galiza, algo assim como a Sonora ibérica. Alguém pode pensar que a descrição que o Roberto faz do nosso país é tópica e cheia de preconceitos; eu, só direi que é pura literatura.




Mais sobre Bolaño e Diente em nº 142

sábado, 18 de agosto de 2012

nº 142 2666. Roberto Bolaño e Rafael Dieste.

HISTÓRIAS E INVENÇÕES SOBRE 2666, ROBERTO BOLAÑO E RAFAEL DIESTE

Ao  meu amigo Ramão Pinheiro "Chito",
guru da dinâmica de redes,
que provocou o encontro na Ilha de Orjais
entre a pena de Bolaño e o violino de Granell.
JUSTIFICAÇÃO

Faz algo mais de um ano viu jantar à nossa casa o meu amigo Ramão Pinheiro “Chito”. Com ele trouxe a um colega do seu trabalho, admirador do escritor chileno Roberto Bolaño. Foi ele o primeiro em falar-me da presença de Rafael Dieste no romance 2666, publicado por vez primeira em 2004. Desde então tomei como objetivo próximo a sua leitura, que se veio demorando no tempo por muitas outras leituras urgentes, nem sempre desejadas. Foi este verão que cometi o erro de comprar o romance de Bolaño, pois me cativou de tal modo que os meus projectos intelectuais estivais ficaram de jeito irremediável em segundo plano.
O único livro que eu lera de Roberto Bolaño com anterioridade a 2666 fora Putas asesinas, uma coleção de contos que, além de mais, foi o meu primeiro contacto com um leitor de livros digitais. Depois comprei em papel os contos completos, Cuentos, da editorial Anagrama, do que falarei mais adiante.
A finalidade desta postagem é a de sugerir uma leitura da obra de Roberto Bolaño em código Dieste, partindo de elementos evidentes, dados indiscutiveis para irmos achegando-nos a outros indemonstraveis,  expostos a modo de hipótese lógica. Fique claro que só é a opinião dum leitor apaixonado por 2666, uma obra que faz parte já da minha biblioteca ideal. Gosto das matemáticas, como da filosofia, como de tantas outras disciplinas das que careço da formação básica, mas às que constantemente me aproximo desde a curiosidade intelectual e o amor pela cultura. Entenda-se este trabalhinho, pois, como o exercício literário dum leitor diestino da obra do chileno Roberto Bolaño.

AMALFITANO E O TESTAMENTO GEOMÉTRICO.

Em 2666 aparece a palavra Dieste em 30 ocasiões, concretamente nas páginas: 176, 239, 240, 241, 242, 243, 244, 245, 246, 250, 251, 252, 254, 264, 265, 266, 270, 285, 286, 287. 
Obviamente, este dado que acabo de transcrever não serve tão só para pôr em evidencia o meu freakismo documentalista, senão que também nos permite visualizar a concentração da palavra Dieste num espaço limitado do livro, quase exclusivamente no segundo capítulo titulado La parte de Amalfitano, pp. 209-291. Fora destas páginas há alguma referencia mais ao Testamento Geométrico, e mesmo a alguma outra obra de Dieste, como veremos mais adiante, isso sim, menos clara ou mais subtil. 

«Esa noche, al volver a casa, salió al patio y vio a su padre hablando con el libro que desde hacía tempo colgaba del cordel de la ropa en el patio trasero». p. 419

Por tanto, Dieste e o seu tratado tem um grande protagonismo na parte de Amalfitano, e aguardo poder demonstrar que também no resto do livro.
A presença do Testamento Geométrico na trama do segundo capítulo começa quando o professor chileno Amalfinato, o qual vivera na Catalunha, encontra o ensaio de Dieste junto com outros livros no interior duma caixa. Sem conseguir lembrar como aquele livro chegara a lhe pertencer, decide pendura-lo com umas pinças na corda da roupa, a imitação do único ready-made que Duchamps fizera na sua estadia em Buenos Aires.
Como é sabido, um ready-made é um objeto sacado do seu contexto original, ao que se lhe dá outra função da que lhe é própria e convertido em arte. Duchamps chamou a esta obra Le ready-made mallheureux e foi concebido como um presente de boda para a sua irmã Suzanne.

 «Calvin Tomkins escribe al respecto: Con motivo de la boda de su hermana Suzanne con su íntimo amigo Jean Crotti, que se casaron en París el 14 de abril de 1919, Duchamp mandó por correo un regalo a la pareja. Se trataba de unas instrucciones para colgar un tratado de geometría de la ventana de su apartamento y fijarlo con cordel, para que el viento pudiera “hojear el libro, escoger los problemas, pasar las páginas y arrancarlas. […]
En los últimos años, Duchamp confesó a un entrevistador que había disfrutado desacreditando “la seriedad de un libro cargado de principios” como aquél y hasta insinuó a otro periodista que, al exponerlo a las inclemencias del tiempo, “el tratado había captado por fin cuatro cosas de la vida». p. 246

Pode parecer que a introdução do Testamento Geométrico de Dieste na trama do romance é apenas ilustrar mais uma excentricidade do Amalfitano, um professor universitário com brotes esquizoides. Mas não é assim. Desde um primeiro momento, Bolaño quer dotar de protagonismo ao livro, deixando claro que não é um título escolhido ao chou entre tantos outros que se poderiam acomodar ao modelo de Duchamp. Bolaño está na pose dum exemplar do Testamento Geométrico que descreve minuciosamente, quiçá com o fim último de que não fique a menor dúvida da sua pertinência.
Isto acontece, por exemplo, na página 239, na que Bolaño descreve as páginas 4 e 5 do livro de Dieste. 


Irónico, como só o escritor chileno sabia sê-lo, diz: «A Amalfitano le pareció, por lo menos, una costumbre extraña el poner los apellidos de los amigos en mayúscula, mientras el apellido del homenajeado estaba en minúscula». p. 239-240

Na página 241, Bolaño chega mesmo a transcrever o contido da etiqueta da loja na que foi comprado o Testamento geométrico, a livraria Follas Novas. Todos os dados da etiqueta que aparecem no livro são certos. Como curiosidade, mais uma vez o freaky que levo dentro, o livro deveu ser comprado no intervalo de tempo que transcorreu entre que as etiquetas de Folhas Novas incluíram os prefixos e quando posteriormente acrescentaram o correio electrónico.


Mas até onde chega a importância de Dieste em 2666? Há que a circunscrever só a este capítulo ou podemos sugerir outros pontos de contacto?

2666. SOBRE O TÍTULO E OUTRAS CASUALIDADES.

O título do livro de Bolaño, além de uma complicação para bibliotecários catalogadores, é uma cifra enigmática, que com esse 666 demoníaco tão explícito, imediatamente nos anuncia que algo mau vai passar. Devemos ter em conta que a marca da besta não é uma data, senão o nome cabalístico duma pessoa. Quiçá esse 2000 + 666 represente o instante da nossa era em que o assassino, o femenicida reina ao seu antolho.
Ignacio Echevarria assinala como a cifra 2666 já aparecia no relato Amuleto (1999): 

«[...] pero no a un cementerio de 1974, ni a un cementerio de 1968, ni a un cementerio de 1975, sino a un cementerio de 2666, un cementerio olvidado debajo de un párpado muerto o nonato, las acuosidades desapasionadas de un ojo que por querer olvidar algo ha terminado por olvidarlo todo (pp. 76-77)». p. 1124

Já tenho dito muitas vezes, esta frase vai me acompanhar de por vida, que as casualidades são os milagres dos ateus. É casualidade que Dieste tenha um relato cujo título é uma data do futuro? Certamente em Dos arquivos do trasno, inclui um relato titulado Once mil novecentos vinteseis, [11926]. Trata sobre um catatónico que permanece neste estado onze mil anos para acordar num tempo futuro onde presença como um homem velho e outro em idade infantil comem o corpo esquartejado dum ser da sua mesma espécie.

«Dunha banda o home degradado e da outra o mar de sempre». p. 73

Não espantaria que Bolaño conhecesse e mesmo admirara Dos arquivos do trasno. Dieste é um escritor conhecido em hispanoamérica, sobre tudo após a publicação em Buenos Aires de Historia e invenciones de Félix Muriel, Editorial Nova, 1943, que vai resultar, junto com Ficciones, de Borges, o despegue na literatura hispana do chamado realismo mágico.
Entre as páginas 884 e 921 de 2666 entrelaçam-se as biografias de dois escritores de ficção: Boris Abramovich Ansky e Efraim Ivanov. Desde a minha fixação diestina encontro várias “casualidades” que passo a comentar:

«Un día le pidieron un relato cuyo tema debía versar sobre la vida en Rusia en el año 1940. En tres horas Ivanov escribió su primer cuento de ciencia ficción». p. 889

Que grande a fina ironia de Bolaño! Este relato, El tren de los Urales, tem com protagonista a um velho, um menino e um comboio, as mesmas personagens de O velho que queria ver o tren de Dos arquivos do trasno. Mais adiante, Ansky, fundador do Teatro de las Vozes Imaginarias, publica um livro de aforismos; curioso que Dieste publique um titulado ¿Que es un axioma?. O livro de Ansky leva o título de Consideraciones sobre la muerte de Eugenia Bosch. Também curioso que em Dos arquivos do trasno haja um relato titulado, por sua vez, Sobre da morte de Bieito.

Por último uma outra casualidade exo-2666. Uma das características mais salientáveis de Dos arquivos do trasno é que desde a sua primeira edição sempre contou com um limiar, titulado assim, onde Dieste define o conto a través de seis pontos a modo de axiomas.

«A singularidade de Dos arquivos do trasno vese reforzada pola poética do relato coa que a xeito de “limiar” o autor preludiou desde 1926 todas as edicións da obra. Os seus seis aforismos posúen o valor de auténticos axiomas no que teñen de definición e postulación, no seu trazado de regras fundamentais do xogo». CASAS, Arturo Rafael Dieste e a sua obra literaria en galego. p. 127

Em 1997 aparece Cuentos, que reúne os livros de contos de Bolaño, Llamadas telefónicas, Putas asesinas e El gaúcho insufrible. Este volume está precedido dum breve, e genial, prólogo titulado “Prólogo: Consejos sobre el arte de escribir cuentos”.

2666 E O TESTAMENTO GEOMÉTRICO.

Chegados a este ponto tenho que dizer, mais uma vez, que eu não creio que a presença do Testamento Geométrico seja só uma justificação para introduzir a Duchamp ou dotar dum novo rasgo ao complexo perfil psicológico de Amalfitano. O Testamento Geométrico é algo assim como um manual de uso para a leitura de 2666 ou uns planos para compreender a arquitectura da novela rio de Bolaño.
Os cinco capítulos de 2666 são como cinco retas paralelas cruzadas por outras retas que põe em contacto realidades que acontecem em espaços e tempos diferentes. Bolaño anunciava isto quando faz que o professor Amalfitano desenhe, quase que com escritura automática, triângulos, retângulos, hexágonos, paralelas, secantes, etc. junto com nomes ilustres aparentemente inconexos.

«El dibujo 4 resultaba curioso. Trendelenburg, hacía muchos años que no pensaba en él. Adolf Trendelenburg. ¿Por qué justo ahora y por qué en compañía de Bergson y Heidegger y Nietzsche y Spengler?». p. 249

Estes desenhos lembram às demonstrações do Testamento Geométrico, mas também nos invitam a reflexionar sobre a estrutura de 2666. Ignacio Echevarria comenta o carácter “têxtil” do romance de Bolaño: 

«Tras la lectura del texto, sin embargo, parece preferible retomar la novela en su conjunto. Aunque toleran una lectura independiente, las cinco parte que integran 2666, aparte los muchos elementos que comparten (un tejido sutil de motivos recurrentes), participan inequívocamente de un designio común». p. 1122

Desenhos de 2666:


Desenhos de Testamento geométrico:



Resulta doado trazer conexões a modo de diagrama no qual várias retas paralelas A, B, C, D, E, capítulos de 2666, são cortadas por outra reta, F, que pode ser uma personagem, um objeto... Os lugares nos que as linhas se tocam, x, y, etc. seriam os instantes dos capítulos onde essa personagem, essa situação, esse objeto comum está presente.

Mas as cinco retas, os cinco capítulos que conformam o romance de Bolaño, não só têm histórias e personagens que se inter-relacionam, senão que compartem um ponto de fuga comum: 2666. Ao mundo tridimensional dos objetos, incorporamos uma nova dimensão, a direção no espaço, o movimento. Todo isto está em Riemann/Dieste; todo isto é incorporado por Bolaño.

«La cuarta dimensión, decía, contiene a las tres dimensiones y les adjudica, de paso, su valor real, es decir anula la dictadura de las tres dimensiones, y anula, por lo tanto, el mundo tridimensional que conocemos y en el que vivimos. La cuarta dimensión, decía, es la riqueza absoluta de los sentidos y del Espíritu (con mayúscula), es el ojo (con mayúscula), es decir el Ojo, que se abre y anula los ojos, que comparados con el Ojo son apenas unos pobres orificios de fango, fijos en la contemplación o en la ecuación nacimiento-aprendizaje-trabajo-muerte, mientras el Ojo se remonta por el río de la filosofía, por el río de la existencia, por el río (rápido) del destino.
La cuarta dimensión, decía, sólo era expresable mediante la música. Bach, Mozart, Beethoven». p. 830

Na física, a quarta dimensão é o tempo, e quem melhor para falar sobre isto que o domador do tempo, um regente de orquestra.
Curioso, mais uma vez, que o escritor e matemático rianjeiro fora também músico, pianista, para ser mais exato. O grande pintor Granell, também músico, violinista, comentava que durante a estadia de Rafael Dieste em Barcelona, em plena guerra civil espanhola «frecuentaba a casa de Eduardo [irmão de Rafael], sua muller, Mirca, e sua filla Mireya. Xantaba con eles e pola tarde, con Mireya, excelente pianista, tocabamos sonatas de Beethoven e Mozart, e sobretodo composicións de Xoán Sebastián Bach, que era o compositor máis admirado por dita família». p. 55

2666 é, pois, uma longa viagem no espaço-tempo, que só pode produzir um movimento cara a frente, cara a essa data final ou esse lugar ao que estamos predestinados a ir. Mas nesse movimento há lugar para as ilusões óticas, dado que na vida, na realidade, as coisas não sempre são o que parecem. A parte em que Amalfitano conversa com Charly Cruz sobre o funcionamento do traumatropo, pp. 421-422, é, em si mesma, uma pequena obra de arte. 

Não podia ser outro o nom de plume de Hans Reuter porque nada mais parecido a um quadro de Giuseppe Arcimboldo (1527-1593) que 2666. Cada capítulo é um objeto singular, independente, mas unidos, o resultado é um todo completamente diferente. Se eu fosse editor da novela de Bolaño, ilustraria a capa com o óleo do pintor milanês O bibliotecário.



Gostaria de transcrever agora as Noções Comuns dos Elementos euclidianos tal como são apresentados no Testamento geométrico:

«1) Cosas iguales a una misma cosa son iguales entre sí.
2) Y si a cosas iguales se agregan cosas iguales, los todos (sumas) son iguales.
3) Y si de cosas iguales se quitan cosas iguales, los restos son iguales.
4) Y las cosas coincidentes son iguales entre sí. (O, según otra versión: Cosas que pueden hacerse coincidir – superponerse una a la otra – son iguales entre sí).
5) Y el todo es mayor que la parte.» p. 89

Faria falha o espaço duma tese de doutoramento para explicar porque o penso, mas desde a minha mais a-científica intuição estou certo que Bolaño teve presente as Noções Comuns de Euclides na construção de 2666. Quiçá estes cinco axiomas sejam a justificação da inclusão de Dieste, mesmo para areja-los, para que apreendam como é a vida real, a vida em movimento. A coisas iguais agregar coisas iguais, fazê-las coincidir, sobrepor, o todo é maior que a parte...
O soldado Hans Reiter, o jardineiro de Veneza, o escritor Benno Von Archimboldi e o velhote desorientado sentado na cama dum hotel de Santa Teresa, são,  realmente, a mesma pessoa? O Testamento geométrico é o mesmo objeto quando o pendura duma corda Amalfitano p. 245, quando o observa Rosa p. 246, quando Fate o toca com as polpas p. 431 ou quando Espinoza pergunta a Amalfitano por ele p. 176? Por certo, nenhuma metáfora melhor sobre o livre movimento que a viagem do Testamento geométrico no interior duma caixa, sem que o professor chileno saiba quando o comprou, quem o introduziu no interior da caixa, como chegou um livro assim a pertencer-lhe. Mais uma vez, um Bolaño brilhantíssimo.

Agora, uma prova de agudeza intelectual. O texto a seguir procede de 2666 ou do Testamento geométrico?

«Por lo demás el discurso humano no ha proceddo por hiladas, como en la erección de un muro, primero esto y sobre esto lo otro; y ello, lejos de constituir un desorden, desorden «primitivo», es más bien un signo de natural cordura, la más fundante y originaria, pues hay nociones que, inexcuxablemente, se hallan presente y funcionan con esencial pureza en lo uno y lo otro. » p. 94

CONCLUSÃO

Todos somos conhecedores da enorme erudição de Roberto Bolaño. Se sobre literatura sabia quanto é possível saber, sobre o conto, certamente, sabia ainda mais. Nessa vasta sabedoria tinha de haver um lugar para Dos arquivos do trasno, Historias e invenciones de Félix Muriel e quem sabe quantos títulos mais de Dieste. Gostaria de poder fuçar na biblioteca de Bolaño à procura dos livros do escritor rianjeiro. Estou certo de que os encontraria.
Tal vez, a dia de hoje, haja já investigações encaminhadas, ou mesmo rematadas, sobre a relação Dieste-Bolaño feitas por pessoas com mais vagar, talento e formação do que eu. 2666 é uma obra tão importante que vai gerar debates, polémicas, o concurso dos exegetas mais reputados e das mentes mais preclaras. Pode que nesta orgia intelectual aconteça com Rafael Dieste algo semelhante à interpretação que o velho alugador de máquinas de escrever fiz sobre o acontecido no Calvário:

«-Jesús es la obra maestra. Los ladrones son las obras menores. ¿Por qué están allí? No para realzar la crucifixión, como algunas almas cándidas creen, sino para ocultarla». p. 989

CODA

Considero que a presença de Dieste em 2666 é um acontecimento extraordinário para as letras galegas em geral e para a vila de Rianjo em particular. É por isso que proponho uma celebração titulada Ready-made desgraçado, 2ª parte. 

Instruções: A representar pela companhia Teatro das Vozes Imaginárias.

1. Frente à casa natal de Rafael Dieste instalara-se uma corda onde os participantes poderão pendurar o livro que considerem deve arejar-se a ver se apreende três ou quatro coisas da vida. Eu já escolhi o meu: a bíblia.
2. Um violinista e uma pianista, caracterizados de Granell e Mireya, interpretaram uma partitura de Bach.
3. Algum vulto da cultura local lerá 11029 e O neno suicida, relatos de ciência-ficção de Rafael Dieste.
4. Remataremos o ato pensando no triângulo equilátero cujos vértices são Duchamp, Bolaño e Dieste. 

AMEM

As edições por mim utilizadas de 2666 e Textamento geométrico são:

BOLAÑO, Roberto 2666 Anagrama, colección compactos. 8ª ed 2012

DIESTE, Rafael Testamento geométrico Ed. del Castro. 1ª ed 1975