quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

nº 179 Tetos

Tetos
Micro-novela erótica

C. I

Começou sendo apenas um ruidinho semelhante a uma pingueira a bater no parapeito da janela, fácil de ignorar ou de acomodar aos pensamentos. Mas na meia-noite os sons vão-se singularizando, fazendo-se grandes até atrair toda a tua atenção, ensimesmando-te. Agora percebia um ritmo de cadência lenta, monótona, ligeiramente sincopado. Percebia um tempo accelerando que me levou a pensar que no andar superior alguém praticava sexo sobre uma cama indiscreta. Incomodou-me. Por um instante senti que se estava a invadir a minha solidão, como se na distância alguém acertasse a meter-me o dedo na chaga. Mas a minha paranoia esvaeceu-se quando escutei a sua voz. Foi nascendo, ao igual que aquele ruidinho primigénio, um chio cadencioso ao pouco convertido em grito apenas dissimulado. Reconheci a voz duma mulher em pleno gozo, sentindo-me, hei de confessa-lo, moderadamente excitado. Mas, trás a aparição da Prima Donna, o ato correu com brevidade, ficando eu dormido quase que no instante em que caia o telão.

C.II

Ao outro dia deitei-me cedo. Não eram mais das dez quando pousava o livro sobre a mesinha e apagava a lâmpada, na esperança de que as horas ganhadas à noite haviam-me ajudar a sobreviver. Vã ilusão! Às doze da noite em ponto, novamente o ruidinho começou a invadir o meu quarto. Tão diminuto como era e tinha o poder de me acordar dum sono aparentemente profundo. Não pude evitar olhar o relógio de números luminosos. Não pude evitar escutar com atenção. Não pude evitar uma alegria súbita quando a voz feminina proclamou, urbe et orbi, o seu júbilo.  

C.III

Passaram quatro ou cinco dias nos que ao dar as doze começavam os ruídos, os gritos, sempre o mesmo protocolo; um mesmo início e um mesmo final. Para então, eu já não podia dormir sem presenciar o espetáculo que se desenvolvia no andar de acima. As minhas fortes enxaquecas  acostumaram-me a deitar  cedo, a levantar cedo, a levar uma rotineira vida de frade bento. A meia-noite era para mim um tempo proibido. Até a hora de começo da função lia passando, despreocupado, as folhas, sabendo que os de acima seriam pontuais. Alguma vez, cônscio desta pontualidade inexplicável, pôs o despertador na esperança de dormir umas horinhas, mas de nada serviu. Só com o grito final da rapariga o meu corpo se entregava, ficando dormido até a manhã seguinte.

C.IV

Um dia escutei uns tacões a bater no chão. Normalmente, antes de começar o ato, uma porta se abria; sentia-se algum deambular pelo andar; às vezes alguma urgência para estar na hora no lugar adequado. Mas só foi ao escutar os tacões que cai na conta de que durante todo este tempo os únicos ruídos humanos identificados por mim eram de mulher. Essa noite esteve mais atento ainda. Agora é que tinha a certeza: toda a atividade do andar superior era provocada por uma única dama a qual eu escutava enquanto ela se masturbava. As minhas sensações então foram contraditórias. Por uma parte senti por vez primeira que estava a violar a intimidade de alguém. Isto só o senti uns segundos.  O sentimento mais potente foi o de solidariedade ou mais bem admiração por uma mulher autossuficiente, liberada dos caprichos do sexo contrário.

C.V

Os dias a seguir não fizeram mais que confirmar as minhas suspeitas sobre a pontualidade onanista da vizinha de acima, além de fazer medrar a minha admiração por um ser tão motivado em dar-se prazer. A mim sempre me deu tanta preguiça!

C.VI

O prédio onde ambos morávamos era um lugar desolador em inverno. Das numerosas vivendas, apenas estavam ocupadas três ou quatro, sendo imperceptível o trânsito pelos espaços comuns: os patamares, os elevadores ou a garagem. Premi o botão e as portas metálicas abriram-se para mostrar o meu rosto avelhentado no espelho do fundo. Penetrei no habitáculo justo no momento em que batia a porta da rua. Coloquei a mão na célula fotoelétrica para evitar que se fecharam as portas. Quando aquela rapariga véu que ia partilhar o elevador surpreendeu-se tanto coma mim, colorando-lhe as suas façulas um assomo de rubor. Vestia um uniforme que reconheci ao momento e foi então que lembrei a sua presença junto ao posto de frutas do supermercado da esquina. Eu sou alérgico a numerosas frutas, nomeadamente aquelas que têm pelo, às tropicais e alguma mais que nem sei, assim que procuro não me acercar demasiado. Só compro maçãs que ela, em várias ocasiões, me pesou amavelmente. Tenho observado que quando a bicha e muito comprida, reclamam a fruteira pelo alto-falante, incorporando-se à linha de caixas e deixando o seu posto vago até que só ficam umas poucas pessoas a espera.

C.VII

Como poderia explicar-vos o momento em que o seu dedo pecador premeu o número de andar acima do meu. O ruborizado então fui eu. Sai do elevador e abri a porta, mas no canto de entrar, fiquei na espera de verificar que a fruteira abria, por sua vez, a porta correta. Todo correu como estava previsto. Passaram as horas. Aguardei a que o duplo zero substituíra ao 59. Novamente o ruidinho. Começava o espetáculo. Então senti vergonha. Lembrei a cara da rapariga das maçãs. Pensei que podia ser seu pai. Pensei na sua vontade de estar soa, de gozar ensimesmada. Pensei em Foucault e nos problemas de comunidade de  Schopenhauer: o velho professor atirou a sua vizinha Caroline Marquet  pelas escadas. Tudo aconteceu subitamente. Levantei-me e fui para o quarto do lado contrário. Durante os poucos meses que continuei a morar naquele andar, jamais volvi à minha antiga cama.

C. FINAL

Segui comprando-lhe maçãs. Paulatinamente melhorei muito das minhas dores de cabeça.

© José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres. Rianjo. 
Fevereiro de 2014.

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