domingo, 15 de fevereiro de 2009

nº 16 O estranho caso da borracha-tijolo

Nas turmas de aqueles anos, alguma de mais de trinta ou quarenta putos, meia dúzia de sobrenomes se misturavam entre eles para identificar a indígenas fruto de séculos de endogamia e insularidade. Além da linhagem, muitos dos seus nomes semelhavam ancorados no passado. Havia Albinos, Eugénios, Genaros, Amadores, Eládios, Silvérios, etc.
Quando uma criança possuía um apelido exótico como o meu, de imediato éramos considerados forasteiros e com esta expressão faroestiniana havia que apreender a viver, até que o tempo te ia acomodando á paisagem.
Já eu tinha alguns anos de escolaridade obrigatória quando um dia ao estar o professor a fazer chamada, (ao contrário do que lhe acontecera a Pedrito Fernández, o da mochila azul), descobri que na minha turma havia uma nova forasteira. A primeira reacção foi de alívio, pois era mais que provável que por um tempo deixasse de ser o branco perfeito, e a segunda, a de pensar como fazer para me unir à comissão de bem-vindas.
Aos que falávamos espanhol os colegas qualificavam-nos simplesmente de parvos. Eu fora parvo toda a vida, mas estava a progredir para deixar de se-lo. A menina nova ainda era mais parva do que mim, pois ela falava um espanhol perfeito. Devia ser filha dum trabalhador dalguma caixa económica e a pobre parecia um passarinho caído do ninho, morto de fome e frio.
Quando saímos ao intervalo, sem pensa-lo duas vezes, fui cara ela e espetei-lhe na cara:
-Tu és parva.
Naquele mesmo instante aprendi o significado disso que chamam discriminação por razão de género. Os meus pares ficaram a olhar para mim como dizendo:
–Não te passes com a rapariga.
Fiquei muito chato. Pelo visto havia dois tipos diferentes de forasteiros, os que levavam carapitos e os que não.
Desde aquele mesmo dia a moça ficou como um prego cravado no meu coração.
A menina sentava-se justo as minhas costas, o qual agradecia, pois quando menos não tinha que fazer esforços por não vê-la. O mau e que sim podia ouvi-la, com o seu perfeito parviniano, e até cheira-la. Foi precisamente um adoçado cheirinho a nata o que chamou a minha atenção. Quando virei a cabeça, sobre a mesa estava a primeira borracha-tijolo que olhei na minha vida.
Era algo fantástico, enorme e com um recendo a bolacha verdadeiramente indescritível. Foi suficiente uma olhadela para decidir que aquela delicatessem ia ser minha.
Teve de ser muito persuasivo para lograr que o meu parceiro de mesa e melhor amigo durante todo o primário, consentira em associar-se comigo para cometer o maior roubo que jamais tivéramos feito, (no meu caso confesso que era o primeiro).
Ao ter jornada partida, o material escolar ficava sobre a mesa até a tarde, assim que a estratégia era sair os últimos e perpetrar o latrocínio dissimuladamente, já que o professor aguardava na porta para fechar a sala de aulas. Fui eficaz como um experimentado Arsèn Lupin.
Fora do recinto, e em previsão de que ante a sua desaparição pela tarde houvesse revista, decidimos ocultar a borracha-tijolo entre umas silvas, num pinheiral que ficava de caminho ao nosso bairro.
O jantar foi angustioso, com a adrenalina ainda sem descer de tudo e cônscios do mais que provável rebuliço que se ia produzir de tarde. Eu já estava a ver ao chefe de turma ou quiçá, meu Deus!, até o director, a dizer:
- Aqui não sai ninguém enquanto não apareça o ladrão ou ladrões.
Mas a tarde produziu-se uma milagre. A menina, discreta, nem perguntou se alguém vira a sua borracha, por outro lado difícil de se ocultar entre os livros ou cadernos. Não sei que passaria pela sua cabeça. Quiçá era a primeira rapariga que eu conhecia farta-de- tudo, dessas que não lhe dão mérito a nada, que tem tanto que logo aborrecem qualquer coisa, ou tal vez, sendo nova entre os ilhéus, simplesmente não se atreveu a provocar um conflito na turma. Fosse como for, a tarde transcorreu, chegou a noite e na solidão do quarto, entre os lençóis, o medo a ser descoberto deu passo a uma sensação muito pior, o sentimento de culpabilidade. Por primeira vez escutei o meu coração a latejar no peito, batendo na noite como um martelo a fazer cacos o meu cérebro infantil. Já na arraiada decidi que tinha de restituir o roubado, pois ficava claro que não poderia viver com aquele peso o resto da minha vida.
Ao dia seguinte o meu amigo confirmou-me que na noite passada houvera quando menos dois putos ilheus que não pegaram olho.
A estratégia agora ficava clara. Antes de ir para a escola, passaríamos pelo pinheiral e recuperaríamos a borracha. Na saída para o intervalo, ou em qualquer outra, ficaríamos novamente os últimos e silandeiramente pousaríamos o roubado sobre a mesa da colega.
No meio do pinheiral havia um grande pinho manso com uma arrandeeira pendurada. Próximo a ele, uma silva com as amoras todavia de cor vermelha. Metemos a mão entre as espinhas e sacamos a borracha-tijolo, ou melhor dito, o que ficava dela. Fora mordida, picada, esfarelada... Da sua aparência original só ficava parte do letreiro no que com letras maiúsculas podíamos ler: NATA.
Eu não disse palavra e acho que o meu parceiro também não diz nada. Soltei aquele queijinho gruyère como se queimasse, fiquei uns segundos olhando para ele, o qual jazia esquartejado sobre o arume, ergui-me e tomei uma nova decisão: passar página definitivamente.
O que restava de caminho à escola foi para nós os dois um passeio que por silencioso resultou atípico, mas jamais voltamos a falar da borracha-tijolo, nem do que aconteceu aqueles dias.
A rapariga não durou muito entre nós. Quiçá por não denunciar o roubo cheguei a ter-lhe certo aprecio, mesmo que nunca cruzáramos palavra; há que lembrar que era parva. Ela fiz muitos intentos de que nos levássemos, escreveu-me cartinhas, picava-me com o lápis acabadinho de afiar, mandava recados por amig@s comuns, mas eu não correspondia. Deixou de tentar qualquer coisa comigo o dia que quase lhe parto a tíbia duma patada, mas essa é outra história.

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