sábado, 6 de junho de 2009

nº 50 A morir o a vivir.

Na minha meninice esteve em diferentes ocasiões ao borde da morte. Bom, em realidade, o que acabo de dizer pode resultar algo exagerado a olhos dum adulto, mas, no intre de me acontecer o sucedido, eu cri estar na hora do meu passamento.

Fazendo memória, quase que todas as situações têm a ver com o médio marinho, como não podia ser doutro modo morando na Arousa. Da primeira não tenho uma lembrança certa. Por tradição familiar sei que aconteceu em Ogrove, num estanque que havia ou há no Corgo. Com a minha lerdeza proverbial, cai dentro e fui resgatado por um soldado de recrutamento que me agarrou pelos cabelos e logrou que a cabeça viera à tona.

Mas foi na Arousa onde aconteceram os episódios mais dramáticos.

O campo de futebol que havia no Aguiuncho constituía um dos meus lugares favoritos. Era especial porque na primavera cobria-se dum manto de florecinhas semelhantes ao açafrão-do-prado. Na altura, um velho marinheiro contara-me que aquela flor era comestível e que mesmo tinha qualquer propriedade sanadora, não sei se febrífuga.

O caso é que era um lugar esplêndido para a prática do desporto, nomeadamente o futebol. O único problema residia na sua proximidade ao mar, no que às vezes podiam acabar as bolas logo dum chute incontrolado. Quando isto acontecia havia que se descalçar rapidamente e penetrar na beira-mar, normalmente, apenas uns passos.

O dia de autos, o culpável do chute descontrolado fui eu, assim que me tocou descalçar. Já o fizera mais vezes e sempre fora uma empresa doada, a pesares de não saber nadar.

A razão da minha pouca perícia natatória estava motivada por ter sido diagnosticado de reumas infantis, uma doença que se traduzia numas fortes injeções e na proibição total dos banhos de mar.

A bola estava próxima e fui decidido cara a ela, mas quanto mais estendia o braço para colhe-la mais ela se afastava de mim. Comecei a escutar os risos dos companheiros, tão sonoros quanto feridores do meu orgulho.

Não queria recuar. Caminhava notando a cada passo a friagem da agua nos joelhos, na cintura, nas mamilas, até que pude saborear o salitre dum mar que já ficava a ronça ronça das minhas fossas nasais. Podia tocar o esférico com as polpas dos dedos mais não lograva sujeita-la. Nesse intre de máxima tensão já não escutava risos nem voz nenhuma, só o meu coração que semelhava latejar nos meus tímpanos.

Então notei que o mar ondulava levemente. Olhei mais lá da bola e soube de imediato que algo ia acontecer e que esse algo não seria bom para mim. A motora de Narciso passava por entre as bateias caminho do Chufre gerando, como num trágico efeito borboleta, ondas que rapidamente se aproximaram ameaçadoras deica mim. O próximo que vi foi o fundo marinho. Estava teso baixo a agua, com os olhos abertos, impulsado por uma força que eu não controlava e, milagrosamente, com a bola entre as mãos, mostrando-a ao pessoal de terra por cima da tona.

A bola e mais eu ficamos sentados na areia, escutando esta vez os aplausos admirados dos colegas.

Outro dia que quase morro, também estava a jogar a futebol, desporto, como se vê, de máximo risco. Esta vez era no campo da Bouça, numa tarde calorosa de São João. Na Torre, ficara tudo preparado para a fogueira que arderia à noite e que este ano prometia ser das mais grandes e duradoiras. Como era habitual, eu jogava de guarda-redes, tendo certa habilidade para parar penaltis e apesares da minha baixa estatura, afastar a bola de punhos. Numa destas saídas o meu nariz topou com o crânio dum atacante com tal virulência que quando abri os olhos a minha cabeça estava meio submergida na água da beira-mar. No intervalo entre a lesão e o contato com a água aconteceu o que se segue: o golpe provocou-me uma comoção tal que perdi o sentido, ficando tirado sobre a relva com a cara ensanguentada. Os colegas, assustados, tentaram reanimar-me sem consegui-lo, assim que consideraram imprescindível deitar-me água na cara, suponho que influenciados pelas cenas de pancadas que víamos no cinema. Como não encontraram modo melhor de molhar-me, colheram-me entre quatro por pernas e braços e desceram comigo ate a praia. Então abri os olhos.

Uns meses atrás, fui até a Bouça e fiz o caminho que necessariamente tiveram que fazer os meus colegas comigo ao lombo. Teve de estar um bom tempo sem sentido, como mínimo dez ou quinze minutos. Não sei muito de cuidados médicos, mas acho que de ser hoje, ninguém me livrava duns quantos dias de hospital. Como consequência do golpe torci o tabique e durante grande parte da minha vida não pude respirar pelo nariz, razão pela qual vinte e tantos anos depois daquele São João, teve de fazer uma rinoplástia.

O último episódio que lembro, seguro que houve mais, tem a ver com outro desporto certamente arriscado, o de saltar de com a com. Os ilhéus deveríamos ser considerados os inventores do parkour, essa atividade gimnástica que consiste em «se mover de um ponto para outro da maneira mais rápida e eficiente possível, usando principalmente as habilidades do corpo humano». Quando saltávamos entre as rochas lançávamos, que bom!, um grito sinistro: a morir o a vivir. A mim sempre me causou perplexidade que os meus companheiros de jogos berraram isto em castelhano, sendo todos eles galegófones, mais deixo qualquer comentário sobre isto pra sociolinguístas e antropólogos culturais.

Pois bem, num salto impossível para a minha curta pernada, cai ao fundo duma fossa, ficando literalmente emparedado entre dois cons. Depois do susto da descida, senti as riscaduras que os lamparões e a cria de mexilhões fizeram por todo o meu corpo. Estava maçado, sentia as gotas de sangue a descer pela pantorrilha, mas o que verdadeiramente me produzia terror é que estava tão encaixado que não me podia mover. Só havia uma escapatória lateral cara onde as paredes dos cons se iam separando, mas era incapaz de deslocar-me, sentindo uma dor aguda em algum lugar do meu corpo a cada intento de por-me em movimento.

Acho que não devi tardar muito tempo em reagir, mas no intervalo que passei paralisado pensei em que aconteceria se não conseguia safar-me antes da subida da maré. Senti claustrofobia, angústia e uma sensação inenarrável de asfixia. Tomei consciência do ridículo da situação, toquei com as palmas das minhas mãos as paredes das rochas e arrastei o meu corpo face à saída daquela armadilha pétrea, ignorando a dor e as riscaduras. Quando esteve fora, a certa distância vi ao amigo que me acompanhara no percurso pelos rochedos do Faro. Ergueu o braço e a gritos perguntou que onde estivera, que não me dava encontrado. Também a gritos diz-se-lhe que aqui sentado, olhando ao mar. O mais difícil foi explicar onde fizera as minhas mais que evidentes feridas.

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