segunda-feira, 27 de julho de 2009

nº 58 De quando fui caçador...

Nunca fui um grande caçador. Se para uma criança um colega quem de caçar um pássaro com um garamilho é um ser extraordinário, eu seria, com a perspectiva que me dá a distância temporal, uma espécie de anti-herói.

Os meus camaradas guardavam como um grande tesoiro o achado dum ninho que normalmente se ocultava no alto dalgum pinheiro. O ponto exacto era um segredo inconfessável fora do círculo íntimo da turma, pelo que ir-se da língua significava para o fala-barato um grande problema. Lembro vários episódios da rapina dos ovos que, por certo, não foram nada agradáveis. Para esse ofício não estava em absoluto dotado.

Primeiro ficávamos ao pé do pinheiro, prédio dos pobres passarinhos. A algum de nós tocava-lhe gavear a árvore até a pola que suportava o ninho. Como eu sempre teve uma vertigem patológica, jamais apreendi a gavear decentemente, assim que ficava abaixo. De haver pitinhos, normalmente o ladrão descia da árvore e até outra, ainda que não sempre os neonatos ficavam incólumes. Se havia ovos recolhiam-se à espera de fazer-lhes um teste científico: o da flutuabilidade na água: se se afundavam eram óptimos para o consumo, se aboiavam, horror! estavam chocos.

O melhor que me podia passar é que estivessem chocos, já que doutro modo alguém colhia uma agulha, fazia um furado num estremo e sorvia o contido com acenos de deleite sumo. Quando me tocava a mim punha qualquer escusa para passar o turno, normalmente bem aceite pelo grupo pois assim alguém papava a minha ração.

Mas no que éramos espertos era no fabrico de armamento e munições. Construíamos arcos e setas com vimes ou varinhas de guarda-chuvas ou fundas com um gaio, duas tiras feitas da câmara dum pneumático e um quadrado de coiro. Havia armas muito complexas como aquela elaborada com uma tábua e um pregador da roupa, com um mecanismo quem de propulsar como uma bala um grau de milho e outras simples por primitivas, como o tutelo, uma cana, melhor indiana, para cuspir hedras como perdigotos.

Aquele dia fiquei na casa dum amigo para fazermos um arco e ir de caçaria. Tínhamos um guarda-chuvas dos chamados de sete paróquias, estragado pelo último temporal. Arrancamos as varinhas cuidadosamente e procedemos a atar um grosso fio de pescar a modo de corda propulsora. As setas eram também as varas metálicas apontadas contra um muro de pedra. Rematado o processo de construção entramos na casa e desde a janela da cozinha começamos a disparar contra uma figueira próxima, tentando acertar-lhe a umas iniciais gravadas pelo meu colega no interior dum coração. Meu anfitrião cravou as setas repetidamente, alguma mesmo dentro do alvo, mas as minhas, faltas de força ou de perícia, iam perdendo altura até depositar-se inofensivas ao pé da árvore.

Já estava convencido do meu novo fracasso como depredador quando, sobre o travessão duma parra, um gato destemido foi-se achegado caladamente. Sabia certo que era impossível que um inútil como eu roçara sequer àquela presa inocente, mas, quiçá por ficar de bravo ante o meu parceiro de caçaria, apontei com um olho fecho, estiquei a corda e soltei a seta num instantinho que apenas durou o tempo que tardei em colher o ar do impulso inicial. Quando abri o olho que fechara vi ante mim um quadro surrealista. O gato ficara preso duma garra ao travessão, miava com um queixume inenarrável e o meu amigo esmendrelhava-se de tanto rir tirado no chão, com uma mão na cabeça e outra na barriga.

Ao tomar consciência do feito, desfiz-me da arma e botei a correr costa acima até a minha casa, onde fui aos bocadinhos recobrando a cor.

Mas o meu grande sucesso como caçador teve como protagonista a um grilo, o meu primeiro e último bichinho por vontade própria.

A caça do grilo não é nada doada. Um tem que encontrar o buraco apropriado na terra. De errar em este ponto pode dar com a casinha dum outro bicho menos hospitaleiro. Logo há que colher uma palhinha ou uma erva e mete-la e saca-la as vezes que for necessário até que pique o grilo, coma num rito iniciático à masturbação. Se a fricção tem sucesso, o insecto sai ao exterior e já é teu.

Eu fiz esta operação milhares de vezes sem resposta alguma, até que de tanto experimentar duma volta acertei. Saiu um cabecinha negra, minúscula e brilhante, tão atenta a mim como eu a ela. Houve um amor à primeira vista.

O seu primeiro dia na minha casa passou-o numa caixinha de plástico transparente, com uns buracos feitos na sua tampa com uma agulha de tricô incandescente .

Acomodei-o numa cama de ervas e palha e o meu grilo semelhava adorar a sua nova condição de hóspede e amigo meu.

Passaram alguns dias e comecei a notar no insecto como uma melancolia desconhecida até então, quiçá a saudade do seu anterior fogar ou o limitado da sua vivenda atual. O certo é que comecei a ter mágoa dele, passando pela minha cabeça a ideia de o liberar. Mas esse impulso durou pouco e de imediato procurei um plano B: haveria que lhe trazer um parceiro.

Dado que para conseguir o meu primeiro exemplar teve que fazer inúmeros intentos, desbotei rapidamente a possibilidade de ir novamente de caçaria. Tentando atalhar, fui junta do melhor pega-grilos que conhecia, um rapazote que já ia ao mar e tinha um bigode roxo que ainda não levara a primeira ceifa. Pedi-lhe uma parelha para o meu bichinho e incrivelmente diz que sim. Andou para o mato e ao pouco tempo estava no lugar acordado com um novo grilo para a minha colecção. Este bicho, alem de ser mais grande que o meu, tinha pedigree, era dos chamados cabeções.

Fez-lhe uma covinha entre as mãos e levei-o até o meu quarto onde guardava a caixinha que ia compartir com o seu congénere.

O meu velho amigo, até esse momento a cada bocado mais taciturno, saiu do seu letargio e começou a mexer-se, correndo excitado pelo minúsculo habitáculo agora compartido. A minha ideia fora todo um sucesso.

Já era tarde assim que fui cear e me deitei certo de ter salvado a um amigo da sua doença de solidão.

De amanhã acordei com a ânsia de ir procurar mais erva para os meus convidados, sabedor de que duas bocas precisam mais que uma só. Sentei na cama e colhi o cofrezinho transparente e o que vi deixou-me horrorizado. O grilo recém chegado devorara ao meu amigo deixando o seu corpo desmembrado como se fora obra dum Jack estripador dos insectos.

Soltei a caixinha e com ela já no chão pisei-a até que teve consciência de que nada do que havia no seu interior ficara com vida.

Depois cai na cama e chorei como uma criança.

Sem comentários: