sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

nº 23 Séneca, Foucault e Schopenhauer.

Séneca, Foucault e Schopenhauer.

Dos Hypomnématas à era dos blogues.

Michael Foucault (Poitiers, 15 10 1926 – Paris, 25 06 1984) publicou em 1983 um interessante artigo chamado L’écriture de soi. Este, segundo ele mesmo conta, fazia parte «duma série de estudos sobre as artes de si mesmo, é dizer, sobre a estética da existência e o governo de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois primeiros séculos do império.» As suas reflexões sobre os hypomnématas e a correspondência, transcendem a uma filosofia geral sobre a arte de ler e escrever em relação com a construção de um próprio como homem e como intelectual.
Nesta linha de pensamento, quando lia a Foucault, não podia deixar de ter em mente um livro do que já falei neste blogue: Pensamiento, palabras y música, de Arthur Schopenhauer (Danzig, 22 de Fevereiro 1788 — Frankfurt, 21 de Setembro 1860). Os dois discursos vão-se ensarilhando como se fossem cabos duma trança, com um parceiro que nos encaminha face à cultura clássica, ao filósofo estóico Lucio Anneo Séneca (Corduba, Hispânia, 4 a. C. - Roma, 65 d. C.)
Começa Foucault propondo-nos uma série de analogias entre a escritura do si e a vida ascética:
  1. Solidão. «A escritura de si aparece claramente aqui na sua relação de complementaridade com a anacoreses: mitiga os perigos da solidão e oferece a uma olhada possível o que se tem feito ou pensado.»
  2. Confissão. «A coação que a presença do outro exerce na ordem da conduta, o exercerá a escritura na ordem dos movimentos interiores da alma; neste sentido, desempenha um papel muito próximo ao da confissão ao director espiritual da que Casiano dirá, na linha da espiritualidade evagriana, que deve revelar, sem excepção, todos os movimentos da alma (omnes cogiationes).»
  3. Profilasse. «Por último, a escritura dos movimentos interiores aparece também, segundo o texto de Atanásio, como um arma no combate espiritual: [...] a escritura constitui uma prova e é uma espécie de pedra de toque: sacando à luz os movimentos do pensamento, dissipa à sombra interior na que se tecem as tramas do inimigo»

Existe um contínuo leitura-pensamento-escritura (não necessariamente nesta ordem) nos textos de Foucault e Schopenhauer, que vêm a explicar a importância de pensar por um próprio, da leitura como médio de aperfeiçoar esses pensamentos e da escritura como remate a um treinamento vital onde o facto de escrever ajuda a pensar e produz ideias novas.

  • Os excessos da leitura:

Glosando a Séneca, fundamentalmente as Epístolas morales a Lucilio, Foucault faz uma série de conjecturas a redor dos efeitos da leitura sobre a formação do indivíduo. Ler é preciso para apreender, pois ninguém pode chegar por si próprio à solução de todos os problemas.
«Se um passa sem cessar de livro em livro, sem se deter jamais, sem retornar de quando em quando à colmeia com sua provisão de néctar, e, por tanto, sem tomar notas nem constituir-se por escrito um tesoiro de leitura, expõe-se a não reter nada, a dispersar-se a través de pensamentos diferentes e a esquecer-se de si próprio.» Em palavras de Séneca: «Dissipa a multitude de livros».
Schopenhauer é muito mais radical nos seus postulados:
«Quando lemos, outro pensa por nós; repetimos simplesmente o seu processo mental. Algo assim como o aluno que está apreendendo a escrever e com a pena copia os caracteres que o mestre tem desenhado antes com o lápis. A leitura libera-nos, em boa parte, do trabalho de pensar.» Conclui o filósofo alemão com que «tal é o caso de muitas pessoas muito cultas. Terminam por ser incultas de tanto ler.»
A leitura tem de ser pois um médio para construir ideias próprias, não um fim para abalançar-se sobre a dos demais.
Dado a imensidade da obra escrita, há que rentabilizar a leitura de tal modo que não percamos o tempo com banalidades. Diz Séneca: «Assim pois, lê sempre autores reconhecidos e, se nalguma ocasião gostaras de recorrer a outros, volta depois aos primeiros.» Schopenhauer sempre rotundo assegura: «Nunca se lê demasiado a boa literatura e nunca demasiado pouco a má. Os maus livros são veneno intelectual: destruem o espírito. Para ler o bom existe uma condição; não ler o mau; pois a vida é curta e o tempo e as forças limitados.»
Segundo Schopenhauer, muitos fazedores de livros, são na realidade relojoeiros que vão construindo o seu discurso com peças tiradas de autores diversos procurando um perfeito funcionamento da obra final. Mas os verdadeiros escritores são aqueles que procuram à matéria na sua cabeça, os que são empurrados a pensar pelas coisas mesmas. Na sua ironia quase retranqueira o filósofo alemão espeta-nos. «Qual não seria a ciência de muitos homens se eles souberam todo o que está nos seus próprios livros.»
Séneca, não menos irónico, fala da necessidade de acudir de quando em vez à literatura dos antagónicos, se bem aclara que ele acostuma «a passar ao acampamento inimigo não como trânsfuga, senão como explorador.»
Na essência do dito até aqui estaria pois a necessidade dum critério à hora de escolher os livros que devemos ler, mas também a necessidade de reservar um tempo para reflectir sobre o lido para assim assimila-lo e sacar as nossas próprias conclusões.
Esta tarefa não é singela: «Pode um sempre sentar e ler, mas não... a pensar.»
Na minha opinião como bibliófilo, a leitura é uma arte, comparável a da escritura. O Bom Leitor, uma figura esta escassamente estudada pelas ciências cognitivas, possui um condão reservado só a uns poucos elegidos. Ele tem uma grande facilidade para duma passada de olhos pelo volume escolhido, tirar conclusões sobre a temática, o estilo e a pertinência da sua leitura. Como é lógico, possui uma fabulosa compreensão leitora, o qual faz com que quanto leia seja imediatamente assimilado pelo seu intelecto. Como ademais acumula uma grande bagagem, pode por em relação numerosos itens que se complementem e expliquem. Consoante a este poder metabólico e de rede bibliográfica do leitor, Séneca dizia: «Procuremos outro tanto com os alimentos que nutrem o espírito, não permitamos que fiquem intactos quanto tenhamos ingerido, para que não nos resultem estranhos. Assimilemo-los; doutro modo, irão ao acervo da memória, não ao da inteligência. Prestemos-lhes fiel sentimento e apropriemo-nos deles para que resulte uma certa unidade de muitos elementos, igual que de números soltos formamos um só, quando uma soa conta abarca sumas menores e diferentes entre si.»
Resulta evidente a influência de Séneca em Schopenhauer se pomos uma trás doutra as seguintes citas cujo tema versa sobre aquilo último do que vimos de falar:

  1. Schopenhauer: «Precisamente isto é o que faz também, em maior escala, o pensador científico. Ainda que precisa de muitos conhecimentos e deve, por conseguinte, ler muito, no entanto, o seu espírito é suficientemente forte para dominar todo isto, para assimila-lo e incorpora-lo no sistema dos seus pensamentos e subordina-lo assim ao conjunto orgânico das suas intuições grandiosas, sempre abertas a novos desenvolvimentos. E, no processo, o seu próprio pensar, como o baixo de órgão, domina constantemente tudo e não é nunca sufocado por outros tons, como sucede com as mentes puramente enciclopédicas nas que fragmentos musicais em todas as claves misturam-se confusamente e já não se ouve nenhuma nota fundamental.»
  2. Séneca: «Num coro há vozes altas, baixas e médias, timbres de homens e de mulheres: “Aí nenhuma voz individual pode distinguir-se; unicamente o conjunto se impõe ao ouvido[...] Outro tanto quero que aconteça na nossa alma, que disponha duma boa provisão de conhecimentos, de preceitos, de exemplos tomados de várias épocas, mas que converjam numa unidade.”»
  • De hypomnématas, correspondências e blogues.

Foucault define hypomnémata dizendo que «em sentido técnico, podiam ser livros de contas, registos públicos, cadernos individuais que serviam de ajuda-memória.»
«O seu uso como livro de vida, como guia de conduta semelha ter chegado a ser algo habitual em todo um público cultivado. Neles se consignavam citas, fragmentos de obras, exemplos e acções do que tinha sido testemunha ou cujo relato se tinha lido, reflexões ou razoamentos que se tenham ouvido o que provenham do próprio espírito. Constituíam uma memoria material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas, e ofereciam tais coisas como um tesoiro acumulado, à releitura e à meditação ulteriores. Formavam também uma matéria prima para a redacção de tratados mais sistemáticos, nos que se ofereciam os argumentos e médios para lutar contra um defeito concreto (como a cólera, a inveja, a charlatanice, a adulação) ou para sobrepor-se a determinada circunstância difícil (um doo, um exílio, a ruína, a desgraça).»
Eram, pois, quadernos de trabalho de campo no mundo das ideias, não apenas dos outros, para, em definitiva, dar auxílio no complicado exercício de pensar.
Dizia um velho axioma romano: qui escribit, bis leguit. O mantimento dum inventário de citas consiste fundamentalmente em copiar e organizar. A cópia deve ser literal, referenciada bibliograficamente e indexada segundo temáticas, investigações abertas ou qualquer outro item por determinar. Antigamente, o pensador acumulava milhares de fichas nas que ter a mão o fruto de anos de leituras. Hoje, a tecnologia permite-nos criar bases de dados com inúmeras ferramentas que cruzam e filtram qualquer tipo de dados. Mesmo existem na actualidade programas informáticos criados para a gestão de citações.
Mas o hypomnémata é mais que um simples álbum de cromos. O que se pretende é ter um lugar onde ir depositando os fragmentos mais significativos de aquilo que nos estimula intelectualmente. Um exemplo do processo de criação dum destes hypomnématas poderia ser o que segue:

  1. Encontramos um fragmento dum texto que estimula especialmente o nosso interesse.
  2. Copiamos esse texto num volumem especialmente destinado a esse fim.
  3. Incorporamos referências bibliográficas que tratem sobre o mesmo tema do texto escolhido.
  4. Reflexionamos sobre os diversos pontos de vista que achegam os diferentes autores até lograr uma visão nítida do conjunto.
  5. Achegamos as nossas próprias opiniões ou ideias.

Obviamente, não se trata de fazer um tratado ou ensaio sobre o tema proposto pelo texto citado, senão de ter um artefacto que nos proporcione, com uma escrita ágil e eficaz, um ponto de partida para futuros trabalhos.
Investigadores, artistas, filósofos, etc., fazem dos seus cadernos de campo autênticos hypomnématas contemporâneos. Na algibeira de todos eles é habitual encontrar um caderno com anotações só compreensíveis para quem as realiza, alem de qualquer outro aparelho que lhes permita captar a realidade, como uma câmara de fotos digital ou uma gravadora de sons.
Desde um ponto de vista pós-moderno, resulta muito subgerente comparar os hypomnématas com o uso actual dos blogues.
O blogue nasceu como diário no que cada artigo é uma janela onde deitar e publicar as tuas opiniões sem depender de intermediários (editores, directores de jornais, etc.) As postagens estão cheias de citações directas ou indirectas a livros, filmes ou canções, muitas vezes glosadas pelas opiniões de blogueiros e visitantes.
Uma das características fundamentais dum blogue é a sua imediatice. O autor escreve quando se sente motivado, estimulado por algo que lhe aconteceu ou simplesmente quando pode. Postagem a postagem vai emborcando no seu diário digital o produto da sua experiência como ser humano, até chegar a um lugar comum com os hypomnématas para mim do maior interesse: tanto os diários da antiguidade clássica como os da era digital, são, apenas, a imagem intelectual do seu autor, independentemente de que esta chegue a nós em forma de vitela, papel ou ecrã. Dum modo cínico poderíamos dizer aquilo de que pelos teus blogues te conheceram.
Mas o blogue tem uma característica que não possui necessariamente o hypomnémata: o seu carácter público. A maior parte dos diários digitais foram feitos para ser publicados na rede e por este médio oferecidos ao maior número de pessoas possível. De entre todos os que formam a Grande Blogosfera, só uma minoria têm um interesse que pudéramos dizer universal. Há que pensar que muitos dos grandes artistas ou intelectuais do mundo possuem os seus diários pessoais, onde compartem todo tipo de ideias, em muitos casos com uma certa dose de frescura doméstica.
Existe, alem disso, um poder blogueiro, diários de referência que marcam tendências intelectuais e artísticas, linhas de pensamento, foros de debate, etc.
Mas o blogue é ante tudo um exercício de escrita, pelo que cabe aplicar o dito por Schopenhauer: «a primeira regra, pois, para um bom estilo – e que quase basta por si própria- é que um tenha algo que dizer.»

  • Volvendo ao princípio.

Principiávamos este artigo com as analogias que Foucault faz entre a escritura do si e a anacorese. Podemos fazer o exercício prático de filtrar os blogues em função da tríada que propõe o filósofo francês: solidão, confissão e profilase.
Resulta óbvio que a escrita é sempre um fato individual. Pensamos e escrevemos, nalguns casos quase simultaneamente. Mas internet, e nomeadamente os blogues, são realidades onde a solidão adquire novas dimensões. Porque deitamos a nossa intimidade na rede a olhos de qualquer curioso? Posso afirmar que em muitos casos por combater a solidão. Lemos, pensamos, passamos toda a nossa vida investigando, atesourando lembranças, informação e por fim, com quem compartimos o que sabemos? Os foros, o chat, permite-nos procurar pares com o nosso mesmo perfil em qualquer lugar do mundo, gente que tenta espantar a sua solidão de igual modo que ti. O blogue, alem disso, permite-te elaborar melhor os contidos, aprimora-los, etiqueta-los e complementa-los com imagens, áudios, sem mais limites que a tua capacidade criativa ou competencial.
Existe a crença de que Internet isola e impessoaliza as relações, mas isto nem sempre é assim. Muitos indivíduos com problemas de relacionamento encontram em Internet um médio de comunicação extraordinário, uma razão fabulosa para sair do seu ensimesmamento. Alem disso, já falamos como um blogue, por exemplo, é em muitos casos o reflexo da personalidade do seu criador, uma descrição em imagens, textos e sons da sua experiência vital ou da pessoa que em realidade quisera ser.
Também o blogue pode exercer o papel de confessor ao permitir-nos deitar em cada postagem, protegidos pela gelosia do ecrã, os nossos anseio, frustrações, medos, debilidades, etc. Mas a confissão vai ser ouvida por inúmeros usuários que estarão dispostos a modificar a tua conduta a través dos seus comentários. A blogosfera está povoada de olhos expertos e algum, sem dúvida, vai-te estar observando.
Por último, Foucault falava de profilasse, sendo a escritura de si como um arma no combate espiritual. Escrever e expor as tuas criações a um público potencial gigantesco, o qual nos ajuda a curar os pequenos ou grandes pecados do espírito. Um deles, por exemplo, o da vanidade. Quanto mais sólida crês que é a arquitectura do teu discurso, mais opiniões contrárias chegaram à tua caixa de correios. Mas quiçá o principal antídoto que nos proporciona o blogue seja contra a frustração de ver os teus trabalhos ocupando espaço em qualquer gaveta, pendentes de despertar o interesse dalgum editor.

  • Conclusões.

A motivação primária de esta postagem foi escrever sobre dois filósofos muito importantes na minha formação intelectual, mas, numa releitura prévia as conclusões, dou-me conta que o tema principal do meu discurso foi apenas a importância que na minha vida tem a escritura. Desde criança, com os primeiros poemas infantis, escrever foi uma condição imprescindível para sobreviver. Resulta difícil dizer a um amigo ou amiga o muito que o queres, encontrar parceiros com os que compartilhar os teus descobrimentos, manter uma conversa com alguém com suficiente tempo para que o importante não fique fora.
As redes sociais digitais são garrafas deitadas a um mar insondável, onde se calhar alguém se interesse da tua mensagem. A aprendizagem online, como ensino não formal ou informal, permite-nos focar o nosso interesse no que consideramos pertinente e não ter que desenvolver uma carreira de obstáculos, como no ensino formal, até chegar a meta que nos propusemos.
Por tanto, a conclusão não é minha, eu não posso rematar esta postagem com uma cadência final, porque não existe uma só resposta. A gente deverá reflexionar por que precisa de escrever, por que precisa de ser lida, por que, na época dos pós-modernismos, quis converter-se num bloguer.

Notas: Todas as citações foram tiradas das seguintes edições:

FOUCAULT, Michel, Estética, ética y hermenéutica, Paidós, Barcelona, 1999

SCHOPENHAUER, Arthur, Pensamiento, palabras y música, Madrid, EDAF, 1998

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