domingo, 16 de novembro de 2014

nº 191 Pré-catálogo de Higinio Cambeses.

Nos últimos dias, a juíza María Servini solicitava a detenção preventiva de, entre outros, José Utrera Molina e Rodolfo Martín Villa, ministros do ditador Franco. Esta solicitude é possível que não tenha percurso algum, sendo denegada com certeza pela Audiencia Nacional espanhola. Para os que levamos anos estudando as consequências da repressão franquista – no meu caso no eido da música – estas notícias servem para dar ânimos e sacar à tona uma série de nomes sinistros trasvestidos nas últimas décadas de democratas. Estes dias lembrei ao meu admirado Eduardo M. Torner, uma das pessoas mais íntegras sobre a que tenho centrado a minha atenção, considerado pela historiografia musical galega como uma espécie de assistente — ou ainda super-vilão —  do grande herói galego Bal y Gay. Torner, que era irmão do inspetor de educação e professor da normal da Corunha, o republicano Florentino Martínez Torner, foi autor duma importante obra musical sobre melodias tradicionais galegas, coletadas por mim num artigo para a revista Etno-Folk. O compositor e etnomusicólogo asturiano morreu em Londres num hospital de caridade e, como em tantos outros casos, os galegos continuamos a dever-lhe as honras que se merece. 

A juíza argentina Servini quer ver as fossas comuns e restituir a memória dos inocentes assassinados durante a ditadura, como os cento setenta e oito fuzilados em Cartagena entre o 1939 e 1945, entre os que se encontrava o rianxeiro Manuel Piñeiro Fachado, filho do diretor de banda José Benito Piñeiro Jamardo. Mas houve outros dos que quiçá nos acordamos ainda menos. Foram pessoas às que não mataram mas cercearam a sua carreira e/ou obrigaram a abandonar a sua terra para ter de começar novamente noutro lugar ou aos que simplesmente os envolveram num rodopio de terror do que já não puderam ou souberam sair. Este é o caso de Higinio Cambeses Carrera, compositor e diretor de Banda nascido em Antas da Lama em 1900 e morto em Santiago de Compostela em 1949. Recentemente, a editorial Dos Acordes publicou uma das suas obras mais célebres, A noite do Santo Cristo, rapsódia galega para banda sinfónica, com edição crítica de Luis Costa Vázquez. Segundo podemos ler em El Correo de Galicia, órgão da coletividade galega na Argentina, esta obra já estava em circulação em 1929:

«Aquella [a banda Celta Infantil de Antas] con ser una agrupación musical que maraville con su ejecución, es, sin embargo, un buen combinado, tan bueno como el mejor popular; pero no es eso lo esencial; en ella, hay una nota muy particular, y es que dicha banda ejecuta casi exclusivamente las composiciones de su director don Higinio Cambeses Carrera, un mozalbete de pequeña estatura y gordote, de figura sanchezca, con gestos[?] de "Quijote" afable de caracter; en él no se oculta nada, habla lo que siente, el cual nos hizo admirar su ya gran producción y del mérito que evidencian, entre tantas otras, obras como "Viva la legión", "El sitio de Zaragoza", "Una noche por la calle", "Ad'o [sic] eixo carballeira", "Maruxiña a mal fadada", "A noite do Santo Cristo", etc., capaces de consagrarle como meritísimo artista.» nº 1242 10/11/1929

Em 1931, Higinio Cambeses apresenta-se candidato do Partido Radical Socialista nas eleições municipais de abril de 1931, que tiveram como resultado o advento da Segunda República. Uns meses antes, em 12 de março desse mesmo ano, publica em La libertad de Ponte Vedra um formoso artigo titulado ¡La aldea despierta!.


Em 31 de julho de 1932 fazia a sua presentação a Agrupación Musical de Ordes, baixo a batuta de mestre de Antas da Lama. Esta banda esteve ativa poucos anos e já em setembro de 1933 Higinio Cambeses aparecia na prensa como regente da banda de Viveiro. Nesta vila nordestina esteve até o fatídico 18 de julho de 1936. A partir dessa data no entorno do maestro produzir-se-ão numerosas detenções. Aos poucos dias, Higinio Cambeses organizou uma Comissão de Ajuda aos Presos. 

«Sen embargo, a Comisión durou moi pouco tempo ao ser disolta por orden do comandante militar da praza, Manuel Vaamonde, que, ademais apercibiu aos seus componentes. Días despois sería detido, encausado e suspendido de emprego Hixinio Cambeses.» NUEVO CAL, Carlos A represión fascista nas terras de Viveiro in www.memoriahistoricademocratica.org

Algumas fontes dizem que esteve preso dois anos, inclusive citam a Ilha de São Simão. Eu não dei encontrado nenhum registro da sua estadia nos cárceres franquistas, a não ser essa primeira detenção em Viveiro. A dia de hoje considero que os falanxistas submeteram-no a detenções e malheiras mais que a um encarceramento continuado.
O Centro Documental de la Memoria Histórica de Salamanca custódia um suplicatório de indulto para Higinio Cambeses Carrera, Daniel Carballido Diz e Cándido Carreras Domenech. Os três foram condenados pelo tribunal da Corunha, sentença do 23 de dezembro de 1941 a pagar duzentas cinquenta pesetas por «haberse destacado como izquierdista, desempeñando cargos locales y haciendo propaganda. Daniel pagó 125 ptas de la sanción».
O indulto chegou em 1960, quarenta anos depois da morte de Cambeses. 
Entre 1943 e 1948 foi diretor da Banda de Cuntis.

«No 1948 marchou para Padrón como director da Banda Municipal, pero seguiu vindo continuamente a Cuntis, onde tiña moitos amigos. Sufría manía persecutoria. Quedara tocado debido á presión e ao medo a que fora sometido despois do alzamento militar do 36, con continuas detencións, malleiras e sancións laborais e económicas. Estando en Cuntis metíanselle cousas na cabeza, como que lle querían pegar ou matar. O certo era que lle tiña medo aos falanxistas e por iso, xa estando na banda de Padrón, cando viña a Cuntis durmía na fonda de Calveiro, pois era amigo de Baldomero Andrade, que militaba na Falanxe, e na súa casa sentíase máis seguro.» SEIXO PASTOR, Marcos A represión franquista en Cuntis. Memoria de 1936. O proceso contra Aurelio Rei e outros cuntienses. in www.aelg.org

Quando apenas levava um ano como regente da Banda de Padrão, Higinio Cambeses não aguentou mais e pôs fim a sua vida dum modo agónico. Um breve no ABC publicado em 22 de fevereiro de 1949 relatava o acontecido em Cuntis:

«En Cuntis intentó poner fin a su vida el director de la banda de música de Padrón, D. Higinio Cambeses Carrera, que sufría manía persecutoria. Para llevar a cabo su propósito se dio un corte en el cuello y otro en un brazo, y al ver que no era bastante se arrojó por una ventana de su domicilio, resultando en la caída tan sólo con la fractura del pie izquierdo. Trasladado al Hospital Provincial, fueron intervenidas sus lesiones y momentos mas tarde el herido se arrolló una sábana al cuello y se ahorcó. El suicida era un excelente compositor de música, habiendo dirigido varias bandas en Galicia.»

Em 2014 são muitas as bandas que continuam a tocar as composições de Higinio Cambeses. Em várias ocasiões, veteranos músicos de banda disseram-me que Cambeses era o melhor compositor galego de passodobles, questão esta que podendo ser considerada uma exageração, fala claramente do prestígio do maestro entre os músicos galegos. Porém, o seu nome apenas aparece nas enciclopédias e dicionários de música, não existindo um catálogo da sua obra nem edições comerciais das partituras, com exceção da já mencionada A noite no Santo Cristo. [Pode-se comprar aqui] E por isto que decidi fazer eu próprio um catálogo cônscio da dificuldade que isto acarreta e dos muitos e mais que prováveis erros ou omissões. Animaria a qualquer pessoa que tenha algum dado mais ou detetara esses erros e omissões involuntários mo comunique, para ir restituindo ao mestre de Antas da Lama o lugar que lhe pertence na nossa história.



Agradeço a Javier Jurado e Luis Costa a leitura e ampliação deste catálogo.

Catálogo Higínio Cambeses

1.      ¡Adios para siempre! [Música impresa]: célebre marcha fúnebre para banda Musical Exito: Tarragona; Pablo Ricoma Dedicado ao seu pai José. SGAE 370.096
2.      ¡Ard’o eixo carballeira! [Música impresa]: pasodobre ed. Tarragona; Pablo Ricoma Cod. SGAE 367.649
3.      ¡Honradez y garantía! [Música impresa]: pasodobre ed. Tarragona; Pablo Ricoma Cod. SGAE 430.490 
4.      A los toros Cod. SGAE 4.184.316
5.      A noite do Santo Cristo [Música impresa] ed. Dos Acordes SGAE 370.481
6.      Agarimo Banda de Música de Ordes 2004
7.      Amor de mis amores Cod. SGAE 4.199.645
8.      Angelillo Cod. SGAE 370.454
9.      Aragón Cod. SGAE 4.220.527
10.  Aragón y sus cantares SGAE 4.223.343
11.  Aromas campesinos: capricho popular. Grav. Banda de Música de Sober, 1984
12.  Arrenégoti (sic) demo Cod. SGAE 4.917.794 
13.  Arrojo y valentía. Cod. SGAE 370.593 
14.  Aturuxos: pasodobre. Cod. SGAE 370.644
15.  Bandera de mi patria Cod. SGAE 4.245.367
16.  Bienvenida Cod. SGAE 4.263.955
17.  Campanas de Oro: jota Cod. SGAE 392.560
18.  Cantares Cod. SGAE 4.293.286  
19.  Cantigas da ría Cod. SGAE 392.680
20.  Colección bailables Cod. SGAE 4.334.866
21.  Cruz de moda Cod. SGAE 4.365.997
22.  Despertar (sic) chiquillas Cod. SGAE 4.422.314   
23.  Despistado Grav. Banda Unión de Guláns 1977
24.  E si mo deches foy no muiño [E si mo diches foy no miño] [Ei si no diches foy no miño] SGAE 415.951
25.  El pájaro pinto Cod. SGAE 459.175
26.  El rey de los gitanos: pasodobre Cod. SGAE  467.539 
27.  El vals de moda Cod. SGAE 4.885.705
28.  El veterano Cod. SGAE 4.898.652
29.  En el molino Cod. SGAE 4.472.542 
30.  Entra y resala a la virgen Cod. SGAE 4.481.983
31.  Fantasia gallega Cod. SGAE 142.441
32.  Flores de la calle Cod. SGAE  423.036 
33.  Flores y claveles Cod. SGAE 423.042 
34.  Guay guay Cod. SGAE 792.541 
35.  Héroes y mártires Cod. SGAE 4.663.636
36.  Invocación Cod. SGAE 432.697
37.  La sin hueso Cod. SGAE 4.575.570
38.  La vida es un cabaret Cod. SGAE 4.896.410 e 4.897.261
39.  Los héroes de Jaca Cod. SGAE 4.542.867
40.  Los zapateros ambulantes Cod. SGAE 4.926.858
41.  Maruxiña a Madalada [Mafalada] Cod. SGAE  444.960 
42.  Miña roxeira Cod. SGAE 4.642.812
43.  Morra o conto Cod. SGAE 445.144
44.  Música Maestro Cod. SGAE 4.663.636
45.  Natividad Cod. SGAE 4.680.211
46.  Negrita Cod. SGAE 4.667.106
47.  Negrito Cod. SGAE 4.667.396
48.  Niña roxeira Cod. SGAE 4.673.119
49.  Nosa Terra Cod. SGAE 451.770
50.  Pepa Banda Unión de Guláns 1977
51.  Pepita Quintana Cod. SGAE 4.709.679
52.  Plátano verde Cod. SGAE 459.374
53.  Recordo nº 9. Grav. Banda Orquesta Municipal de la Coruña. 1977
54.  San Benitiño Cod. SGAE 4.790.794
55.  Si ma deches rio miño SGAE 4.811.085
56.  Silencioso [silencio]: Vals Cod. SGAE 6.419 Arquivo da Biblioteca digital hispánica: http://bdh.bne.es/bnesearch/detalle/bdh0000039318
57.  Solo o con leche Cod. SGAE 4.823.120 
58.  Te mareas Cod. SGAE 4.842.131
59.  Tierra gitana Cod. SGAE 4.855.478
60.  Una tarde en Zaragoza Cod. SGAE  484.938 
61.  Una vez en la Habana Cod. SGAE 4.880.706
62.  Unha noite no muíño Cod. SGAE  4.885.870
63.  Viva la legión Cod. SGAE 4.900.786
64.  Vivan os mariscos Grav. Os Montes de Lugo.
65.  Yo Ya Cod. SGAE 4.923.403
66.  Yo Yo Manía Cod. SGAE 4.924.137
67.  Zumba Loureiro Grav. La Lira Ribadavia 1995 Cod. SGAE  492.004

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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

nº 190 O incidente de La Bombilla, Filgueira Valverde e o reintegracionismo.


Em 31 de julho de 1931 aparece publicado no jornal La Libertad o seguinte anúncio:

«A LA COLONIA GALLEGA
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Banquete-homenaje popular

El banquete a los diputados galleguistas Villar-Ponte, Castelao y Pedrayo tendrá efecto el próximo domingo, a la una y media, en el restaurante Casa Juan de la Bombilla.
Las tarjetas para asistir a dicho acto podrán adquirirse en el hotel Regina, Ateneo de Madrid, bar La Perla, Infantas, 26 y en la librería Puga, Paz, 5, en todo el día de hoy viernes.
Los entusiastas y simpatizantes de las glorias gallegas deben apresurarse a adquirir las tarjetas en el tiempo indicado.
Habrá brindis en gallego.» La Libertad. Ano XIII, nº 3.545 6ª feira, 31 de julho de 1931.

O ato teve lugar, com efeito, o domingo 2 de agosto do 1931 e o que lá aconteceu provocou uma violenta reação na imprensa madrilena. 

«En la presidencia se sentaron con los festejados el ex fiscal general de la República y magistrado del Tribunal Supremo D. Javier Elola, el presidente del Lar Gallego, Sr. García Martí: el representante de los gallegos residentes en Buenos Aires y diputado a Cortes por la Coruña Sr. Millares y otras personas.» El Sol. Ano XV, nº 4.360 3ª feira, 4 de agosto de 1931.

Tal vez por um erro da agência, os jornais batizaram a Suárez Picallo como Sr. Millares, reproduzindo, isso sim, a parte do seu discurso mais comprometido.

«Todos los presentes somos emigrantes, pues yo no se que está más lejos de Galicia: si Buenos Aires o Madrid.»
«Formaremos parte del conjunto ibérico si vamos a partes iguales: como hermanastros, no."Ibídem.

A seguir, sem maiores incidentes, falaram:

- O secretário de La Casa del Pueblo, Sr. Cortés, utilizando o galego ao princípio para posteriormente finalizar o seu discurso em castelhano.
-  D. Laureano Gómez Paratcha, deputado pelo FRG e ex-presidente da câmara de Vila Garcia (1922-1923). Fez grandes elogios dos homenageados, mais isso sim, em castelhano.
- Castelao que utiliza o galego.
- García Martí, o castelhano.
- Vilar Ponte, obviamente também em galego, lembrando-lhe aos presentes que a nossa língua e entendida por milhões de pessoas em Portugal e as suas colónias e mais no Brasil.

O ambiente de celebração que se vivia até este momento vai mudar repentinamente com a intervenção de Otero Díaz *[Em realidade Alejandro Otero Fernández (1888-1953) Socialista]:

«El señor Otero Díaz* dice que habla en castellano porque la mayoría de los oradores lo hicieron en gallego. Tiene un cálido elogio para las lenguas castellana y gallega, y afirma que Galicia unida a España, triunfó en el mundo. (Una pequeña minoría de los comensales protesta ruidosamente contra las palabras españolistas del orador. Se oyen vivas a Galicia libre, contrarrestados por los de ¡Viva España!, y alguno pide a grandes voces la cabeza de los castellanos). El señor Otero Díaz, a pesar del escándalo, no pierde la serenidad, y continuó su discurso diciendo que el rango universal de la región gallega no existirá sin la unidad española. Pide autonomía administrativa y aconseja luchar contra las opresiones sociales. (Las protestas e insultos menudean y el grupo reducidísimo de separatistas grita desaforadamente, situándose en la presidencia detrás del señor Otero Pedrayo).» El Siglo Futuro Ano LVI nº 17.209 Terça feira, 4 de agosto de 1931.

O número de indignados pelas palavras de Otero Fernández varia segundo a tendência política do jornal — El siglo futuro era um diário católico muito conservador — mas todos destacam que se tratava duma pequena minoria.
O último orador, nada menos que Otero Pedraio, protegido pela sua improvisada Guarda de Corps e no fragor da batalha, afirmará:

«[...] que si las cortes negasen a Galicia su autonomía, ella sabría ganársela, pues no le habría de faltar el apoyo entusiástico de los hermanos de raza como Portugal.
Si se nos concede la libertad, seremos hermanos: pero si la Federación no prospera, sermos enemigos de todos los pueblos hispánicos.[...]
El Sr. Otero Pedrayo fue muy aplaudido, y al finalizar su discurso entona, en unión de cinco o seis comensales, el himno regional.» El Sol Ano XV nº 4.360 Terça feira, 4 de agosto de 1931.

Com estas palavras, o catedrático ourensano fere o orgulho espanholista, fazendo que se mobilizem não só as forças mais conservadoras como as mais progressistas. Na primeira plana de El Sol aparecerá um editorial cujo cabeçalho pedirá Serenidad ante todo ao Sr. Otero.

«[...]si las cortes constituyentes —afirmó el Sr. Otero— no nos otorgan la autonomía, sabremos conquistarla, con la ayuda de nuestros hermanos de raza los Portugueses.
Medite el Sr. Otero Pedrayo la gravedad de estas palabras, que la Prensa ha difundido. No las interpretemos literalmente, ni desprendamos de ellas que el separatismo de Galicia está en pie. La realidad basta para aquietarnos por otra parte. Si el Sr. Otero Pedrayo pronunciara en Lisboa el sermón, alegato o arenga que anteayer pronunció en el banquetede la Bombilla, ¿sería tan bien comprendido como lo fue en Madrid?
Un escritor gallego y un escritor portugués no se entienden dialogando en sus idomas respectivos. Recurren siempre al castellano, y algunas veces a otros idiomas universales como el francés y el inglés. No nos negará el Sr. Otero Pedrayo que las cosas suceden así.» Ibídem.

Pois sim, o Sr. Otero Pedrayo vai negar que as coisas aconteçam desta maneira. Numa primeira página para conservar nos anais do galeguismo, o jornal El Sol publica a resposta do mestre ourensano num artigo emparedado entre os de Joaquín Poza Juncal e Bibiano F. Osorio Tafall — que deixam clara a sua distância a respeito do galeguista — e o de Eugenio Montes.
Muito brevemente, Otero Pedraio cancela qualquer debate sobre as palavras por ele pronunciadas no Café Juan.

«No quiero decir nada de la información del banquete dedicado en la Bombilla a tres diputados galleguistas. Es la misma, con sólo una excepción publicada por la Prensa del día, y el mero hecho de cambiar los nombres de los oradores y describir absurdamente hechos vistos por todos no le concede la suficiente autoridad. Sólo quiero hacer constar — y hablo exclusivamente en mi nombre — que se acabó la Galicia que venía a suplicar, y existe una Galicia que sólo aguarda una absoluta igualdad de trato para sentirse española. No soy un audaz ni busco el escándalo. Por eso al hablar de Portugal tenía que emplear palabras propias de un buen gallego, y en ellas me refería a la ayuda moral, nunca ausente, de la nación que hablando nuestro mismo idioma, es considerada en Galicia como hermana. Es extraño que un gran periódico tan bien entereado como El Sol incurra en el tremendo error de creer que los escritores gallegos y portugueses tienen que apelar al castellano para entenderse entre sí. » Ibídem.

Numa entrevista publicada no Diário de Lisboa só uns dias antes da celebração do banquete, Otero Pedraio expunha a um jornalista português a sua opinião sobre as afinidades galaico-portuguesas:

«Sim. Queremos muito a Portugal e desejamos intensificar as relações já existentes com os seus intelectuais. A literatura lusitana, verdadeiramente monumental, é muito conhecida entre nós. Em Santiago há, presentemente, uma cátedra livre de português regida por Hernani Cidade.Há vinte anos, Eça de Queiroz era mais lido na Galiza do que a própria Condessa de Pardo Bazán, a grande escritora galega. Já vê... Saúde, pois, por nós, Portugal e a sua grande colónia galega.»
Dada a importância que para nós tem a entrevista que o Diario de Lisboa faz a Otero Pedraio deixo-vos aqui o link: Diário de Lisboa

Todo o dito até agora tem a ver com a repercussão que as declarações do catedrático ourensano teve na imprensa espanhola. Mas, e na galega? Qual foi a receção das suas palavras?
Em 6 de agosto, El pueblo gallego amanecia com o seguinte titular:

Fonte: Galiciana

Com tudo, a resposta desde a Galiza, como cabia supor, não foi unânime. Jornais como El Pueblo Gallego publicaram artigos solidários com Otero Pedraio da autoria de vultos do galeguismo como Vilar Ponte ou Victor Casas, ou mais conciliadores como o de Joaquin Poza e Osorio Tafall, do teor do publicado em El Sol, do que já falei anteriormente. Noutros jornais, como El Progreso, o incidente de La Bombilla mesmo é motivo de chacota.
Em 9 de agosto do 1931 é José Filgueira Valverde quem escreve sobre as palavras de Pedraio num breve que nos vai servir para reflexionar sobre o seu reintegracionismo, ou quiçá ainda melhor, pragmatismo lusófono.
O texto de Filgueira não deixa lugar a dúvidas sobre as suas intenções:

«Andaba eu a escribir unha morta prosa hestórica sobre a nosa "boa vila", cando veu desacougarme esa barafunda que argallaron os paifocos de Madrid porque Otero Pedrayo acendeu unhas verbas na mais hispanica lusitanidade. E xa que o esprito non dá tino para enfiar hestorias falaremos un anaco de noso portuguesismo de sempre.»


Artigo completo.

Quando diz "o nosso portuguesismo" está a falar em "plural majestático", refere-se a ele e Otero Pedraio, aos galeguistas no seu conjunto? Pois parece que ao nacionalismo, esse grupo iconicamente representado pela palavra NÓS, e do que Filqueira Valverde cindirá, a partir do 1935, um oportuníssimo NOS-OUTROS.

«E precisamente nós, os nazonalistas, os que na Galicia de hoxe fixemos por amostrar os camiños novos e vellos de ese inmorredeiro "espirit europee" que a África intentou sempre arrincarnos, temos de facer de esa Santa María tan nosa e tan allea, tan vella e tan nova, un símbolo do noso futuro. Si nós lle preguntásemos hoxe o esprito de esta obra cal era a sua nacencia reposteríamos con aquelas verbas estrictas e amantes de Juan de Grajales:
—Soy portugués español.»

Eis o núcleo do seu pragmatismo lusófono: A Galiza como cavalo de Troia para recuperar à [h]espanholíssima nação portuguesa.
Em 1939, ainda não terminada a Guerra Civil, o Instituto de España publicava um manual de história  com um texto para escolares de segundo grado. Nas notas preliminares podemos ler:

«Por eso España es una península rodeada toda de mar, salvo en la parte que se une con Francia. Por donde se une a Francia, se levantan, como altísimo vallado, los Pirineos: por todo el resto de su perfil la limita el mar. Es verdad que dentro de esos límites clarísimos, hoy, además de España, existe otra nación: Portugal. Pero esto no pasa de ser una división puramente artificial y política, cuya razón ya estudiaremos. Portugal estuvo mucho tiempo unido a España; luego se separó; luego volvió a unirse y a separarse al fin. No porque sea, pues, una nación distinta, hemos de considearlo como un extraño. Es un hermano que no por vivir en un cuarto distinto dentro la misma casa, deja de ser hermano y tener nuestra misma sangre.» Manual de la historia de España. Segundo Gado.Instituto de España[Santander;Aldus S. A de Artes Gráficas] 1939. p.7-8

Como se sabe, Portugal era uma das grandes aspirações de Franco que sonhava com ser amo e senhor da península, algo que preocupou — e muito— a Salazar. Os galegos hão servir de ponte cultural, galegos como Filgueira Valverde, como Eugenio Montes, como Fraga ou como o próprio Franco. Os galegos utilizados como uma escusa, mas também uma Covadonga desde a que encenar a reconquista.
Que entre galegos andava a coisa tinha-o claro até o ex-presidente português Mário Soares:

«Fraga me aseguró que Franco, como gallego, no atacaría a Portugal.» La Voz de Galicia. 20/04/2014

Em 1958, a editorial Labor publica Camoens, um novo volume dos seus Clásicos, encomenda feita anos atrás a Filgueira Valverde. Uma vez mais, o diretor do Museu de Ponte Vedra põe toda a sua erudição — imensa — e a sua narrativa — esplêndida — ao serviço da causa ibérica. E para essa causa nada melhor que glosar a Luís Vaz de Camões, um neto de galegos que se auto-qualificava «príncipe dos poetas de hespanha». Um simples "h" que nos afasta da España Imperial e castelhana e nos achega a uma casa comum plurinacional. As palavras apócrifas de Camões, aquelas que dizem Falai de castelhanos e portugueses, porque espanhóis somos todos, resultam perfeitas. Volvendo ao artigo que Filgueira escrevera em desagravo de Otero Pedraio em El Pueblo Gallego, vemos o uso diferenciado que o autor faz dos termos Hespanha e Castela:

«Si Otero Pedrayo gozara a hipermnesia que me aponen, e pra min quixera, tomando o precedente dos galegos que pra figurar se facían pasar por portugueses na vella corte das Hespañas, tamén houbera contestado así ós "clercs" madrileños —non quero dicir casteláns— que teñen posto todo o seu empeño en decir que Portugal está no "extranxeiro".
Porque este é o esprito do nazonalismo galego que xa vai significando a derradeira espranza do "gran feito hispánico".»

Como limpo resumo a todo o pensamento filgueiriano arredor do conceito «Hespanha» e «Camões hespanhol», transcrevo integra a sua introdução ao Camoens de Clásicos Labor.

«Camoens parece ausente de las letras españolas de hoy: apenas se traduce, se lee poco, cada vez se le cita menos. Shakespeare o Goethe son más familiares a nuestros lectores, que lo clasifican, al lado de ellos, como a un extranjero. Y, sin embargo, Camoens no es un escritor ajeno a nuestras letras: es nada menos que un clásico español. Si alguna tesis se sostiene en mi libro, es ésta, que, por igual, es motivo de ufanía para las gentes de los pueblos peninsulares, cuya sangre lleva y en cuyas dos lenguas ejerció su arte. Pero ni la oriundez gallega, ni el bilingüísmo, ni siquiera el que se hubiese definido él mismo como «hespanhol»... bastarían para clasificarlo entre nuestros clásicos. La razón es mucho más honda. Camoens constituye un eslabón en la áurea cadena de la lírica peninsular, cuyo estudio no es posible fragmentar, y, sobre todo, es quien lleva a su culminación la épica. Os Lusiadas, como dijo Ramiro de Maeztu, son nuestra epopeya, y "en ellos se hallala expresión conjunta delgenio hispánico en su momento de esplendor... Donde acaban los Lusiadas comienza el Quijote". Estas frases, que sirven de acorde inicial al más sólido de los libros portugueses contemporáneos sobre su obra, tienen que ser también lema del nuestro. Porque Camoens, que fija la lengua portuguesa y "re-crea" toda una conciencia colectiva en la crisis más grave de la vida nacional de su Patria, que es el cantor de su personalidad y el exaltador de su antagonismo político y de su independencia, podría gritar, con mejores títulos que nadie, a semejanza de cierto personajede Juan de Grajales:

—¡Soy portugués español!

Por su valor de símbolo de una superior unidad espiritual, por su calidad cimera, porque en su obra confluyen las más hondas y vivificantes corrientes de la poesía de Occidente, y porque de él se nutren venas nuevas, por dominar una encrucijada de pueblos, de lenguas, de tiempos y de ideas, Camoens merece ocupar en la historia de nuestras Letras y en la estima de nuestros lectores un lugar inmediato al de Cervantes.
Para rescatarlo del muerto fichero de la Literatura universal, y traerlo al caliente hogar de las Letras propias, se ha escrito este libro, mera guía para nuevos lectores de Camoens. Nadie espere hallar en sus páginas revelaciones ni novedades. No es obra de investigación directa ni tiene, como hoy se dice, un afán exhaustivo. Si logra alcanzar sus fines, aun siendo tan poco significante y de tan corto aliento, habrá hecho algo grande en vuestro favor. El autor espera que le retribuyáis con vuestra indulgencia.
J.F.V.
Museo de Pontevedra, 1953»

Nota: Para o tema Hespanha paga a pena ler a Carlos Calvo Varela.

Em 1982, a Livraria Almedina publica a versão portuguesa do Camões de Filgueira. Na minha opinião, uma muito boa tradução feita por Albina de Azevedo Maia onde só falta uma coisa, as dedicatórias que si apareciam no texto em castelhano.

«Al Dr. Hernani Cidade de la Universidad de Lisboa
Al Dr. Costa Pimpão de la Universidad de Coimbra.
Mis maestros en Camoens. 
J. Filgueira Valverde» 

Os doutores Hernani Cidade (1887-1975) e Costa Pimpão são dois clássicos dos estudos camonianos. O primeiro, além disso, foi professor do Instituto de Estudios Portugueses da Universidade de Santiago de Compostela, fundado pelo reitor Rodríguez Cadarso em 1931.

Remate.

O autor do artigo Serenidad ante todo, publicado no jornal El Sol, atacava a Otero Pedraio dizendo-lhe que os autores portugueses e galegos não se percebiam mutuamente e tinham que recorrer a uma língua franca como o castelhano ou o inglês para poder conversar. Isto doeu-lhe especialmente ao catedrático ourensano, achacando tal opinião ao desconhecimento da nossa realidade. Numa postagem anterior, a nº 188, contava eu como o Filgueira foi dar uma palestra a Lisboa no 1948, falando ao público lá presente em castelhano. Ir a Portugal e falar em galego era em plena ditadura uma provocação na que não ia incorrer o velho professor. Já em novembro de 1934, umas semanas depois da Revolução de Outubro, Filgueira recebia uma carta do seu amigo o antropólogo português Santos Júnior:

«Quanto ao pedido que me faz sobre a língua em que devem ser feitas as conferências, troquei impressões com o Prof. Mendes Corrêa e ainda com um vosso patrício, inteligente e culto, embora nada galeguista, que foram de acordo que sendo a semana da cultura galega ninguem poderia estranhar que fôsse feita em lingua galega. Entretanto, e é essa também a minha opinião, dados os últimos acontecimentos em Espanha para que não fosse ou pudesse ser mal interpretado esse facto, é conveniente que algumas sejam feitas em castelhano.» ALONSO ESTRAVIZ, Isaac Santos Júnior e os intelectuais galegos. [Ourense;Fund. Meendinho]

Mais uma vez o pragmatismo filgueiriano. Longe de apaixonar-se, analisa tudo pormenorizadamente, pergunta, consulta, troca pareceres e ao final, atua como melhor convêm ás suas aspirações pessoais.

Outra das características no comportamento do Filgueira é a estrita hierarquização dos valores que configuram a sua pessoalidade. Era católico, de dereitas e galeguistas. Sei que há pessoas que duvidam do galeguismo do velho professor. Eu, não. A questão é que para ele a defessa da religião católica esteve por cima de qualquer outra coisa. Para ele e para os companheiros cindidos da Direita Galeguista.

«Religião.
10. Consideramos a Religião Católica como fundamental da tradição galega enxebre, coa que é consubstancial e inseparável. Declaramos que uma autêntica cultura galega tem que estar decote inspirada na conceção católica do mundo e da vida humana e no sistema de valores éticos, estéticos e científicos que o catolicismo representa.
11. Em todo caso apoiamos a liberdade da Igreja Católica como pessoalidade jurídica, em regime concordatário com o Estado e com todas as garantias jurídicas que protejam os direitos dos crentes.
Problema obreiro
15. Apoiamos nisto, todos e cada um dos pontos das Encíclicas chamadas sociais dos Romanos Pontífices.» Bases para o programa da Federação de Forças Nacionalistas e Galeguistas de direitas. Abril de 1936

Uns meses depois da difusão deste manifesto estourou a Guerra Civil espanhola. Os oportunos Nós-outros da Direita Galeguista ficaram, mormente, bem colocados. Outros galeguistas, católicos e direitistas pagaram com a sua vida inverter a ordem de prioridades.

Camoens XIX Clásicos Labor [Barcelona; Editorial Labor S. A.] 1958

 Camões 47 Colecção Novalmedina [Coimbra; Livraria Almedina] 1982


sábado, 27 de setembro de 2014

nº189 Roberto Bolaño e a Galiza II


Em Los detectives salvajes, Roberto Bolaño definiu aos moradores da Galiza como «gallegos asustados ante lo irremediable». Eu considero mais bem que somos pessoal assustado ante o remediável, de ai o nosso ADN conservador. Quando Xosé Lendoiro viaja na sua roulotte à Galiza, na realidade, está a vir ao encontro dos antepassados do Roberto, esse chileno-mexicano que escreve como um bom galego quarterão. Ele sabe que depois de mil viagens, de ir botando raízes em quanta terra fértil nos vamos encontrando, a semente volta a pátria para contemplar a mesma paisagem «umbrosa e elemental» de sempre. A roulotte, como a morada da Virgem que viajou de Nazaret a Loreto, instalou-se num camping de Castro Verde, presenciando Lendoiro ainsólita cena do poço e o menino. Mas, por que aqui? Noutra postagem já referi a minha hipótese de que a razão tem a ver com que neste concelho se encontra a única paróquia cujo nome coincide com o apelido do escritor chileno: Santa Baia de Bolanho. 
Segundo a wiki, neste lugar moravam em 2004 cento trinta e dois habitantes (69 mulheres e 63 homens). Numa viajem recente por terras de Lugo decidi achegar-me com a família até esta pequena paróquia castroverdiana, no que constituiu um périplo rianjeiro-bolañês, que de sermos ianques, já estaria nos roteiros freaqui.
Sabemos que a presença da Galiza na obra de Bolaño não é apenas um território literário. Além das suas fílias, Valle Inclán, Dieste... há razões de tipo familiar, pois —como ele mesmo comentou em várias entrevistas— era neto de galego. Este dado, tal vez por sabido, parece não interessar muito aos estudiosos da obra de Bolaño, sendo para mim um elemento fulcral para explicar cenas como a acontecida no camping de Castro Verde. Mas quem era este avô galego? Como se chamava?
Desconheço se já se tem publicado nalgum lugar, mas eu não dei encontrado nenhuma publicação que faça menção a identidade deste homem que um dia abandonou a sua terra para dirigir-se a república chilena. Na procura das raízes galegas do autor de 2666 contactei com o Dr. Leon Enrique Bolaño, deputado do PAN em México, o qual, muito amavelmente, verificou-me o nome do seu avô e o lugar do seu nascimento.
As raízes do Roberto não estão em Castro Verde, senão em Becerreá. O nome do seu avô era Ricardo Bolaño Morán, morto em 1940, na mitologia bolanhesa —ainda por confirmar— a consequência da queda dum cavalo. Este casa com a catalana Eugenia Carné com a que terá nove filhos. Um deles, León Boláño Morán casará com Victória Ávalos Flores, professora, pais do escritor Roberto Bolaño Ávalos. Posteriormente, León vai casar em segundas núpcias com María Irene Mendoza, pais do Dr. León Enrique Bolaño Mendoza, o político mexicano.
Agora, toca ir a Becerreá na procura dalgum dos descendentes dos Bolaño Morán. Já irei contando.

 © Tero Rodríguez

 © Tero Rodríguez

Mais sobre Roberto Bolaño neste blogue:

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

nº 188 Filgueira Valverde em Lisboa.


A professora e grande pianista Helena Mariño enviou-me um artigo sobre Filgueira Valverde que ela mesma encontrou no espólio do compositor português Frederico de Freitas, depositado na Universidade de Aveiro. Trata-se duns recortes de jornal sem cabeçalho e sem data, motivo pelo que preferi não publicar na altura à espera de ter toda a informação sobre o evento do que se informa. Por fortuna, na imprensa galega pude encontrar a notícia que me permite completar todos os dados duma palestra-concerto que pelas suas caraterísticas considero do máximo interesse. Graças a notícia publicada em La Noche [fig.4], sabemos que a intervenção do Dr. Filgueira Valverde em Lisboa foi, com toda certeza, em maio de 1948.   
Um dos detalhes que primeiro me chamou a atenção é o formato que teve o evento. Um conferente, o Filgueira Valverde, ilustrado por um pianista, nada menos que o grande Luis de Freitas Branco (Lisboa, 12 de outubro de 1890; Lisboa, 27 de novembro de 1955);e uma cantora lírica, a soprano Elsa Penchi Levy (Lisboa, 4 de janeiro de 1911; ?). Este formato recorda muito ao utilizado por António Fernández-Cid de Temes, o mesmo modelo que desenvolverá nas conferências-concerto no quadro do Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra. É possível que o Fernández-Cid influíra no Filgueira por quanto dois anos antes do ato em Lisboa, o crítico de ABC ofereceu no Teatro Principal pontevedrês a palestra La música contemporánea en España, acompanhado da soprano Carmen Pérez Durias e o pianista José Cecilia Tordesillas.
A palestra lisboeta teve lugar no salão do jornal Século, razão esta pelo que o conferente foi apresentado pelo redactor em chefe do rotativo, Acúrcio Pereira. Segundo conta o cronista, Filgueira falou dos Elementos populares originarios en la lírica de los cancioneros «em espanhol, com o [seu] doce acento galego». 
Deixo para quem tenha vontade de os ler os artigos [fig. 2,3,4] que motivaram esta postagem.
Por último, gostaria de referir-me a dois aspectos que não estão directamente relacionados com o contido da conferência, mais sim com os galegos em Portugal e o seu papel significado durante a Guerra Civil e na posterior ditadura do General Franco.
O evento celebrado no salão do Século foi retransmitido pela emissora Rádio Clube Português. Esta sociedade radiofónica estava dirigida pelo capitán Jorge Botelho Moniz, um militar que imediatamente depois do alçamento das tropas nacionais pôs as ondas do Rádio Clube a disposição dos sublevados. Sobre este aspecto recomendo o trabalho titulado La guerra del eter de Alberto Pena Rodríguez. O capitão Botelho contratou speakers espanhóis, como a popular Marisabel de la Torre de Colomina. Esta locutora chegou a dizer diante do microfone do Rádio Clube que os rojos queimaram os móveis do seu andar madrileno. «Para una mujer española, son los muebles de su casa algo íntimo y familiar que guarda y quiere con singular complacencia y amor porque ellos son depositarios de preciados recuerdos que constituyen la vida y porque alli como ella dice invdadida de amor maternal "se guardan las ropas de los hijitos por los que se daría la vida» El Compostelano, 06/X/1936 Esta alocução provocou uma imediata colecta promovida pelos japistas (Juventudes de Acción Popular) de Compostela, para comprar-lhe a Marisabel um mobiliário novo. Na Galiza houve outras iniciativas para render homenagem ao Rádio Clube Português, chegando a deslocar-se a Lisboa uma comissão de galegos, como demonstra a fotografia [fig.1] conservada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

fig. 1

A emissora de Botelho, como a Emissora Nacional, não só serão parciais nas suas notícias sobre o frente de batalha, senão que entrarão na tolémia pan-galaica guerracivilista. 
Em Lisboa há uma embaixada legal, com Sánchez Albornoz à frente, e uma outra dos sublevados, conhecida como embaixada negra, criada, com a conivência de Salazar, pelo sinistro Nicolás Franco. Resulta engraçado imaginar aos conspiradores franquistas e salazaristas de mãos dadas por enquanto o galego Franco desejava Portugal e o falangista Rolão Preto pedia a Salazar a anexãção da Galiza. Tal vez isto último que acabo de contar faz parte da lenda galego-portuguesa, mas o certo é que Portugal foi um aliado eficaz dos sublevados e as emissoras, uma arma que resultou letal.
Neste contexto não espanta que em 1939 a Orquestra de Câmara da Emissora Nacional que dirigia Frederico de Freitas estreara a suite Chucurruchú de Iglesias Vilarelle, um dos cindidos da Direita Galeguista chefiada por Filgueira Valverde. O máximo responsável das orquestras da Emissora Nacional era o Pedro de Freitas Branco, irmão do pianista que acompanhou ao conferente pontevedrês. 
Ao final do artigo do Século há uma nominata do pessoal que assistiu ao evento, entre os quais um homem várias vezes citado no texto do jornal, o poeta e político Eugénio Montes. Outro galego a estar onde há que estar, concretamente na Embaixada de Lisboa como agregado cultural —nos filmes de espiões sempre aparece um agregado cultural— e director do Instituto Español de Lisboa (1943-1950). Este unionista, como lhe chama Eduardo Javier Alonso Romo em Lusitanistas Españoles, escreveu Interpretación de Portugal: «España y portugal son naciones paralelas, y las paralelas se encuentran en el infinito». Quiçá um destino en lo universal. Também em Lusitanistas Españoles Alonso Romo faz uma pergunta agora de máxima actualidade: «Y donde situar a un hombre como José Filgueira Valverde, preferentemente dedicado a los estudios gallegos, pero autor de un excelente estudio sobre Camões (Barcelona, Labor,1958)» Pois que sei eu, a mim que não me perguntem. 

fig.2

fig.3

fig.4

domingo, 3 de agosto de 2014

nº 187 As pantufas de Filgueira Valverde.

As pantufas de Filgueira Valverde.

Teve a oportunidade de falar com o Dr. Filgueira Valverde só uma vez, nos tempos em que cursava primeiro de carreira na escola normal de Ponte Vedra. Na altura visitava assiduamente o Museo de Pontevedra cujas instalações, salas e arquivo, foram a minha universidade, o lugar onde me formei e me apaixonei pela história cultural do meu país.
Um dia, ao entrar no edifício Castro Monteagudo, reparei na prateleira onde se mostravam os livros à venda. Entre eles salientava um exemplar do Cancionero Musical de Galicia de Casto Sampedro. Para mim, aquele era um livro quase mitológico que conhecia graças aos créditos dos discos de Milladoiro. Perguntei o preço. Custava, se não estou em erro, três mil pesetas, que ainda parecendo-me uma barateza era um dinheiro que não tinha. Juntei pesinho a pesinho. Alguns companheiros do grupo Leixaprén —no que daquela eu tocava— encomendaram-me vários exemplares.
Com o bolso cheio de bilhetes fui à banca do museu e pedi os cancioneiros a um funcionário que anotou a minha compra num livro, algo que na altura já me resultou um bocadinho démodé. Foi nesse instante que pela porta vi entrar ao Dr. Filgueira. O empregado saudou-o muito respeitosamente, mesmo com certo boato, e ele acercou-se a onde nós estávamos e cravou os seus olhos nos cancioneiros que acabava de comprar. Depois olhou para mim e disse-me algo acerca de que aqueles livros eram uma joia, um tesouro da nossa cultura. Eu assentia e deixava-o falar sem ser cônscio do papel jogado por ele na edição do dito cancioneiro. Finalizado o seu elogio sobre a obra de Casto Sampedro —e em parte também dele— o Dr. Filgueira dirigiu-se ao funcionário perguntando-lhe quantos exemplares ficavam ainda em stock. Deviam ser poucos, pois o velho professor ordenou que fossem retirados da venda de imediato.

 O encontro terminou com uma anedota quase de vaudeville. Outro empregado apareceu de dentro do museu e dirigiu-se ao ex-diretor:

— Don José! Ya están preparados los canapies.

D. José olhou para mim e sorriu, caminhando na direção em que viera o funcionário hipercastelhanista. E foi nesse momento em que reparei como embora ele vestisse traje, gravata e uma gabardina tipo Bogarth, nos pés levava umas pantufas de flanela a quadros, as pantufas dos avós de toda a vida. Com o passo do tempo, a lembrança dum ex-diretor de museu idoso, trajado e com pantufas é a melhor imagem que se me ocorre dos últimos anos do Dr. Filgueira. Um homem que apôs quase cinquenta anos a frente do Museo de Pontevedra andava por aquelas instalações como pela sua própria casa.

*

Graças ao Cancionero Musical de Galicia de Casto Sampedro aprendi entre alalás, moinheiras e gotas a ler música. Mas, por cima de tudo, foi com a extraordinária introdução historiográfica de José Filgueira Valverde que conheci o universo musical do nosso país, com a sua visão holística do folclore onde se misturam as artes, os estilos, os géneros, as épocas... Também descobri graças a ele a existência dum homem em Vilancosta que a mediados dos anos quarenta do século XIX começou a recolher música tradicional, sendo nisto —como em tantas outras coisas— um autêntico pioneiro. Esse homem, Marcial Valladares Núñez, foi o meu objeto de estudo principal durante anos, chegando a editar, em parceria com Isabel Rei Samartim, o seu cancioneiro Ayes de mi pais.
Os folclorista sabem que o Dr. Filgueira Valverde foi o fazedor que possibilitou a edição dos dois grande cancioneiros galegos, o mencionado de Casto Sampedro e o Cancioneiro Galego de Bal y Gay e Torner. Essas duas grandes coletâneas do nosso folclore foram concebidas antes da Guerra Civil mas publicadas durante a ditadura, em 1942 e 1973 respectivamente. O Cancioneiro Galego é a obra de dois republicanos que tomaram o caminho do exílio.  Jesús Bal y Gay retornou a Espanha em 1965 e foi com ele com quem o Dr. Filgueira tratou a publicação das fichas elaboradas junto a Eduardo Martínez Torner nas suas viagens por Galiza. Aquela obra concebida pelo Centro de Estudos Históricos vinha a ser editada pela franquista Fundação Barrié de Maza. O retornado Bal y Gay colaborando com o franquista Filgueira Valverde. Tal vez isto aconteceu assim por Torner ter falecido anos antes num hospital da caridade inglês, depois de ter feito coisas no desterro tão importantes para a nossa cultura como os programas sobre folclore galego emitidos pela BBC. Lembrar, por se alguém não souber, que o Martínez Torner era asturiano, razão esta, em minha opinião, pela que se subestima tanto o seu importante papel na historiografia musical galega.

**

Rematada a carreira de magistério, a minha atividade profissional no mundo da música foi-se virando mais cara ao plano teórico que ao prático. O Dr. Filgueira veio na minha ajuda numerosas vezes para trazer-me dicas, respostas, fios dos que tirar. Os seus Adral, que colecionei e li com verdadeiro interesse, foram o princípio de muitas aventuras nas que me embarquei, deitando luz sobre problemas que eu tentava resolver. Seriam intermináveis as referências utilizadas por mim cuja origem está nos escritos do velho professor.

Ultimamente, venho de publicar um Opúsculos das Artes sobre o Festival de la Canción Gallega. Este festival existiu graças ao contubérnio de dois intelectuais franquistas, o crítico do ABC Antonio Fernández Cid e o presidente da câmara de Ponte Vedra, Dr. José Filgueira Valverde. Durante as nove convocatórias celebradas entre 1960 e 1968 estrearam-se cerca de cem canções compostas por músicos espanhóis renomados, sobre poemas de escritores galegos de todos os tempos. Isto só na secção oficial, pois o número de peças para canto e piano ou para coro apresentados aos concursos paralelos ao festival são dificilmente quantificáveis. Junto com os concertos houve conferências dadas por Fernández Cid e Filgueira Valverde, mas também por outros vultos da cultura galega nada afins ao regime. Entre os palestrantes alguns velhos companheiros do Seminário de Estudos Galegos, caso de Antonio Fraguas Fraguas, novíssimos poetas, como Uxio Novoneyra, que a última hora não pode acudir ou Xosé María Álvarez Blázquez. Este último recebeu um convite pessoal do Dr. Filgueira. Há que lembrar que o poeta e editor ao que lhe dedicamos o dia das Letras Galegas no 2008 foi vítima da repressão franquista, sendo filho dum fuzilado, Dario Álvarez Limeses, e um dos muitos mestres purgados após o começo da contenda.  
O acontecido com a família Álvarez Limeses durante os anos da Guerra Civil é um exemplo claro do embrulhado, dramático e controvertido que pode chegar a ser tentar encontrar explicações ao inexplicável: o uso da violência escusando-se na defnesa duns ideais superiores.
Vejamos:

-Em 19 de abril de 1935, Xerardo Álvarez Limeses anunciava ao seu genro a sua vontade de sair do Partido Galeguista por não concordar com a política oficial de achegamento aos partidos de esquerda: «Eiqui estamos resoltos a irnos do partido Filgueira, meu hirman Xose, meu fillo Xose M.ª, os dous Caramés, Sesto e outros xovenes que non podemos ver con vos ollos a entrega do galeguismo os enemigos da Relixón.» Fonte: O galeguismo na encrucillada republicana Xavier Castro. [Deputación Provincial de Ourense; Ourense] 1985

-Em 17 de agosto de 1936 é fuzilado na Caeira, Alexandre Bóveda.

-Em 29 de setembro de 1936 morre de causas naturais José Álvarez Limeses.

-Em 11 de outubro de 1936, Xerardo Álvarez Limeses, na sua qualidade de Inspetor Chefe de primeiro ensino, pronuncia um emotivo discurso nos atos de reposição dos crucifixos nas escolas públicas de Ponte Vedra. Na comitiva que trasladou o crucifixo até a Escola Normal também formava parte o padre Fr. Luis Fernández Espinosa, músico muito relacionado com o grupo da Sociedad Polifónica de Pontevedra e confessor de Alexandre Bóveda o dia da sua execução.

-Em 30 de outubro de 1936 é fuzilado em Tui Darío Álvarez Limeses.

-Em 8 de abril de 1937, morre Casto Sampedro y Folgar, diretor do Museo de Pontevedra. Xerardo Álvarez Limeses, na altura vice-diretor, converte-se em diretor acidental na instituição arqueológica, cargo que ocupará até a sua morte em 9 de março de 1940.

-Em 23 de março de 1940 é nomeado diretor do Museo de Pontevedra o Dr. José Filgueira Valverde, que na equipa anterior ocupara o cargo de Secretário.

Vinte anos depois do fim da guerra, Xosé María Álvarez Blázquez participa no Festival de la Canción Gallega, como já disse, por convite pessoal do já na altura Presidente da Câmara Municipal. Além da sua extraordinária erudição, Xosé María mostrou, mais uma vez, o seu enorme compromisso com o nosso país, pronunciando uma das suas palestras em galego. Tratava esta sobre as Paxolinhas de Natal. No mesmo ato pronunciou uma outra palestra Filgueira Valverde, esta vez sobre a festa dos maios. O Presidente da Câmara utilizou o castelhano, suponho que para não incomodar ao seu parceiro Fernández Cid ou ao co-financiador do evento, o Ministério de Información y Turismo de Manuel Fraga Iribarne. A intervenção de Xosé María Álvarez Blázquez nesta edição do Festival de la Canción Gallega de Pontevedra —acontecida em 22 de julho de 1964 no Salão de Atos da Deputação de Ponte Vedra— devera ser considerada uma das grandes efemérides da resistência linguística galega durante os anos escuros do franquismo.

Mas neste festival aconteceu algo que merece quando menos um comentário. Como já disse, a mecânica do festival consistia em que um compositor espanhol compunha uma canção utilizando como letra um poema dum escritor galego. Foram mais de sessenta os músicos participantes, repito, todos eles de nacionalidade espanhola, a exceção de dois argentinos oriundos. Nesta ilustre nominata de compositores colaram-se sete inesperados compositores portugueses: Joly Braga Santos, Frederico de Freitas, Claudio Carneiro, Rosado Peixinho, João de Freitas Branco, Macedo Pinto e Ruy Coelho. A dia de hoje tudo faz pensar que o culpável desta participação lusa foi Filgueira Valverde. O Presidente da Câmara era um velho conhecido, tal vez amigo, de Frederico de Freitas. Este conhecimento/amizade deixou rasto nos respectivos arquivos pessoais em forma de dedicatórias, recortes de jornais, programas de mão, etc. Considero ao Dr. Filgueira indutor da presença do Freitas e, porque não, de todos os outros compositores portugueses. Mesmo na convocatória de 10 de julho de 1967, sessão inaugural do VIII Festival de la Canción Gallega, a palestra correspondeu ao diretor do Museu de Porto, Sr. Fernando Castro Pires de Lima, com o título Elógio da cantiga popular minhota. Nem falar da importância que esta maridagem entre poetas galegos e músicos portugueses tem para uma história cultural da Galiza e para tod@s os que defendemos o reconhecimento do papel que a nossa terra deve ocupar no mundo lusófono.

 Como curiosidade, dizer que no Festival de la Canción Gallega participou como poeta Ernesto Guerra da Cal. Três poemas seus foram musicados pelos compositores valencianos Matilde Salvador, Vicente Asencio e José Evangelista. Este último contou-nos —a Isabel Rei Samartim, a Joam Trillo e a mim mesmo— que os poemas do escritor republicano e exilado Guerra da Cal chegaram-lhes da mão de Eugenio Montes. Eis outra rede de contatos curiosa. Eugenio Montes escreveu em 1930 um dos livros, a meu ver, mais formosos da literatura em galego: Versos a tres cás o neto [Ed. Nós; La Coruña, 1930]. Em 1933 é um dos fundadores da Falange e se considera um dos intelectuais mais próximos a Primo de Rivera. Este homem, que após o seu ingresso na Falange jamais volverá a escrever em galego é o portador dos versos do exilado republicano Guerra da Cal, os quais, convertidos em canções, serão finalmente estreados em 1964 no Salão Nobre da Deputação de Ponte Vedra, na que assenhoreava o tal Filgueira Valverde.

Estou a lembrar uma frase de Blaise Pascal que li num livro de Vila-Matas: «E se escrevi esta carta tão longa, foi porque não teve tempo de fazê-la mais curta.» Nestas últimas semanas andei com muito pouco tempo para ler e menos ainda para ler o que se publica na rede. Apenas li o cabeçalho de algum dos numerosos artigos publicados sobre o caso Filgueira Valverde, assim que é possível que muito do que eu contei já fosse contado nos últimos dias. Não faz mal, total a mim não me lê ninguém. Como sei, portanto, que o que escrevo apenas terá leitores, arrisco-me em último termo a dar a minha opinião —a modo de conclusão—, uma opinião que ninguém me pediu, assim que vai de graça.

***

1. Sempre fui um péssimo estudante. Nunca me adaptei ao sistema, nunca compreendi o sistema, nunca encontrei um lugar para mim no sistema. Estudei magistério e aprovei as oposições à primeira, só porque me examinei por música e me permitiram tocar. Porém escrevi quatro livros, dúzias de artigos, palestras... Ou sou uma fraude ou é que para mim existiu outra universidade, mais eficaz, menos acadêmica. É por isso que confesso que se algo do que escrevi tem algum mérito dever-lho-ei em grande medida ao Dr. José Filgueira Valverde e ao arquivo e biblioteca do Museo de Pontevedra.

2. Em minha opinião, a nomeação de Filgueira Valverde como escritor homenageado no dia das letras galegas para o 2015 é um intento de demolir a instituição desde o seu interior. Que o velho professor seja o homenageado é um problema tanto para a esquerda como para a direita. Também não lhe fazem nenhum favor ao próprio Filgueira Valverde. O melhor que podiam fazer os seus filhos e agradecer à RAG o reconhecimento, mas renunciar a ele —suponho que isso se poderá fazer—.

3. Em minha opinião, novamente, o Dr. José Filgueira Valverde não merece nenhum reconhecimento, nem tão sequer um tão desacreditado como o Dia das Letras Galegas. E não o merece não por ser um autor medíocre ou sem obra, pois para mim esta tem méritos sobrados. Está inabilitado por fazer parte do poder franquista. Os que dizem que há que dissociar a personagem política do escritor que apreendam de mim, eu o estou a fazer.

4. Em minha opinião, mais uma vez, o Dr. José Filgueira Valverde apenas teve influência na morte por assassinato de Alexandre Bóveda. Isso não quer dizer que não seja culpável da sua morte. Para mim todos os que participaram do poder franquista são cúmplices da carnificina cometida durante a guerra e, posteriormente, na ditadura.

5. Em minha opinião, por último, fica sem resolver totalmente o papel político que as sociedades pontevedresas jogaram durante os anos prévios, durante e depois da Guerra Civil. Cada vez estou mais convencido de que o culpável do assassinato de Bóveda foi o fanatismo religioso duns católicos que se agrupavam em círculos e juntas aparentemente culturais. Na Polifónica de Pontevedra, formada em boa parte por funcionários, ao igual que Bóveda, de fazenda, cantou na corda dos tenores o médico Victor Liz Quibén, chefe da Guarda Cívica e personagem sinistro ao que se lhe atribuem mais de vinte assassinatos. Também, não deixa de ter graça que o irmandinho Antonio Losada Diéguez coincidira na corda de barítonos com o caciquinho Vicente Riestra Calderón, competidores pela jurisdição de A Estrada nas eleições a Cortes. O redor da Polifónica, na que cantara Castelao, Bóveda e a sua mulher Amalia, andaram pessoas muito relacionadas com a Direita Galeguista liderada por Filgueira como o seu inseparável Iglesias Vilarelle, Lino Sánchez ou o próprio Gerardo Álvarez Limeses e o seu filho Xosé Mª Álvarez Gallego.
O tema do Museo de Pontevedra devera também revisar-se. Como é sabido, uma parte dos fundos com os que conta são fruto dos embargos decretados pelo Tribunal Regional de Responsabilidades Políticas. A Castelao, por exemplo, se lhe impus em 1940 uma multa de 75.000 pts. Como tal quantidade não foi paga, procedeu-se a confiscação dos bens que Castelao guardava nas suas vivendas de Ponte Vedra e Rianxo. Depois de negociações e acordos com a viúva e as irmãs do artista rianxeiro, com os Baltar de mediadores, chegou-se ao estado atual, sendo o Museo de Pontevedra o lugar onde podemos contemplar a maior parte da sua obra. Filgueira Valverde teve, como diretor do museu, um papel preponderante junto a Sánchez Cantón no espólio dos bens de Castelao. Resulta irónico que o património do artista rianxeiro ficasse a salvo numa instituição pública graças ao andrógeno Sánchez Cantón e ao manteigoso Filgueira —assim eram qualificados pelo próprio Castelao—.

Final

Só me resta dizer uma coisa: se a R.A.G. tiver vocação de volver a ser uma instituição séria, o Día das Letras Galegas do 2016 deveria ser dedicado ao escritor galego mais universal: Luis Vaz de Camões.