domingo, 11 de maio de 2014

nº 183 Na casa do Conde de Aurora.


Chegamos a Ponte de Lima ao anoitecer, nessa hora em que o prioritário começa a ser encontrar alojamento. A primeira tentativa foi um Hotel & Spa que fica mesmo na entrada da cidade: luxuoso, moderno, muito europeio. Só havia quarto para uma noite, mas ficamos tranquilos; de não encontrar outra coisa, quando menos hoje teremos onde pernoitar. Continuamos até o interior do casco antigo, na beira do rio e da ponte que dão nome à vila mais antiga de Portugal. Estacionamos. Tero desceu do carro, entrou numa farmácia e a continuação num restaurante para perguntar se alguém saberia dum quarto para alugar no centro histórico, um espaço urbano cuja formosura nos fez esquecer imediatamente o pós-moderno Hotel & Spa. Na botica não houve sorte, mas o dono do restaurante saiu a rua e ligou o seu telefone, como se os móbiles precisaram de céu aberto para funcionar. Também sem sucesso. Apesar das muitas marcações ninguém contestou. Então aconteceu algo:

—Ó Dona Rosa, faça favor de vir cá! —ponhamos por caso que Rosa era o nome da pessoa alvo dos gritos emitidos pelo nosso amigo hostaleiro—.

Aquela senhora véu até onde nós estávamos e perguntou amavelmente em que podia ajudar. O dono do restaurante contou-lhe apressadamente que uns espanhóis (sic) andavam a procura dum quarto com casa de banhos privativa para duas noites. Também contou que ele ligara para não sei que pessoal sem qualquer resultado. A Dona Rosa pegou no seu telemóvel e ligou por sua vez a alguém que tinha o quarto por nós sonhado. Quando já estávamos na ideia de que os 2.800 habitantes de Ponte de Lima ou alugam quartos ou levam no seu celular o número de alguma pessoa que o faz, soubemos que a tal Rosa era a funcionária de Turismo e que, mesmo fora de horas, não fazia outra coisa que o seu trabalho.

Só havia que andar uns cem metros desde onde estacionamos o carro até a hospedagem. No breve percurso pelas ruelas de Ponte de Lima, a funcionária municipal explicou que onde íamos dormir era um velho paço dedicado a turismo de habitação. 

—Vê aquela figura de bronze? —diz a Dona Rosa assinalando com seu dedo uma estátua a tamanho natural assenta num banco de pedra—. É o conde de Aurora. Vocês vão dormir no seu paço.

Impactado pela notícia e sem tempo para perguntar mais alguma coisa sobre o tal conde, chegamos até o casarão, um paço ajardinado do século XVIII —e com capela!—, algo vindo a menos, mas todavia com ar de fidalgo orgulhoso. 

O quarto pronto a ocupar não fazia parte do edifício principal. Na altura deveu ser uma dependência anexa, quiçá a vivenda para o serviço. A porta culminava um formoso patamar de pedra. Dois pregos cravados a uma viga sustinham as suas respectivas andorinhas que, mália estar a altura das nossas cabeças, semelhavam ignorarmos. Talvez aqueles passarinhos também pertenciam à aristocracia.

O quarto resultou modesto, quase franciscano, anacrónico em muitos aspectos, mas não isento de certo encanto. Uma parede meeira unia-nos a capela. Tal e como se viera desenvolvendo o drama, aquela elevadíssima cama de castanheiro presentava-se ante nós como um final feliz. Deitamos e dormimos os três na cama grande, já que a Dália nem quis saber nada da supletória.

No médio da noite acordei. Abri os olhos como se acabasse de pestanejar, sem restos de sono, estranhamente desperto. As minhas pequenas dormiam, oculto o quarto por uma escuridão sem fissuras. Na procura do mais mínimo sinal luminoso que me dera a certeza de não ter ficado cego, —é o que tem ser de natureza paranoica— girei o meu corpo 180º ficando frente da janela, o único vão, junto com a porta, aberto nos seculares muros da estância. Aconteceu então que uma minúscula partícula de luz começou a crescer, a fazer-se, lentamente, cada vez maior. Ao princípio só era luz, mas pouco a pouco fui vendo como aparecia um rosto com seu chapéu, um colo com seu laço, um corpo vestido à moda do Pessoa. Percebi que o rosto sorria, que o corpo tinha vida e antes de mais teve uma revelação: aquele ectoplasma era José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho, III Conde de Aurora. 

Suponho que os fantasmas têm um poder anestesiante, ou tal vez simplesmente um bom domínio da cena porque a pesares de estar a viver o meu primeiro sucesso paranormal nem teve medo, nem houve histeria, nem teve tentação de acordar as minhas companheiras de lençóis. Outra coisa que vivi com total naturalidade foi a de como entre o Conde e mais eu estabelecer-se-ia uma cordial conversa telepática na que acabaríamos falando de literatura, de gastronomia, de futebol, de política... Nesta conversa, além de mais, ficou provado que o meu sotaque em português telepático é mais que aceitável.

—Oi, galego, você sabe que eu vivi um ano na Galiza? Teve que me exilar a Vigo em 1919, depois da derrota dos monárquicos. 

—A Monarquia do Norte, —disse eu para impressionar—.

—Pois, a mais heroica contrarrevolução, —disse o Conde silabando com-tra-rre-vo-lu-ção com um jeitinho quase daliniano—. Anos mais tarde, —continuo meu parceiro de conversa— em 1923, teve um acidente na ponte internacional de Tui. O meu carro bateu contra o dum lisboeta. A condessa de Aurora —suponho que é coisa de nobles chamar pelo título às suas mulheres— foi lançada a grande distância, sofrendo graves feridas. 

Também me contou que eu não era o primeiro galego em visitar o paço. Já lá estivera o José Maria Castroviejo na altura em que premiaram ao Conde da Aurora com o I concurso Virgen Peregrina pelo seu trabalho El camino de las peregrinaciones portuguesas a Compostela. Para ilustrar-me o evento, D. José de Sá Coutinho tirou da sua carteira fantasma um velho recorte de jornal no que aparecia retratado em animada conversa junto ao intelectual de Tirã.



Sem que eu lho perguntara confessou-me gostar mais dos escritores galegos quando estes escreviam em espanhol. Esteve a ponto de me indignar, mas com que motivo? No fundo concordávamos plenamente.

Assim passou o tempo, nem sei quanto. Do mesmo modo que a luz foi nascendo, assim também esmoreceu paulatinamente. Quando apenas tão só ficava o seu rosto acesso, o Conde disse-me algo que cheguei a ouvir apenas segundos antes de ficar novamente dormido.

—Ao acordar, olha debaixo da cama. Lá verás uma mala e no seu interior um livro. Não há é um objeto qualquer. Possível que seja o livro mais importante da tua vida. 

Volvi a abrir os olhos. Desta volta o quarto estava plenamente iluminado pelo sol duma manhã esplêndida em Ponte de Lima. Dália queria acordar e esfregava os olhos com suas mãozinhas de veludo. A mamãe aproveitava os últimos segundos de paz matinal. Levantei-me e fui à casa de banhos. Urinei e lavei as mãos, o rosto, os dentes... Vi a minha imagem refletida no espelho: olheiras mais escuras do habitual, canas mais brancas, gesto fatigado e avelhentado. Dava pena. 

Foi então que lembrei ao Conde. Com a escova ainda entre os dentes sussurrei um castiço palavrão e durante uns intermináveis segundos fiquei paralisado. Cuspi o dentífrico e enxaguei a boca. Sai da casa de banhos lentamente e me sentei no cadeirão onde na noite passada se sentara o fantasma do Conde. Estava certo de que todo fora um sonho. Não acredito em Deuses nem em Santos, muito menos em fantasmas intelectuais, —quando se tratar de intelectuais defuntos, é claro—. 

Baixei os olhos. Da cama pendurava uma colcha onde estavam bordadas duas iniciais: C.A. A rés-do-chão, quase oculta pelas roupas desarrumadas da cama, vislumbrava-se uma mala de madeira pintada de verde com os acabamentos em metal. Fiquei tão surpreso que nem me podia mexer. Neste estado catatónico andei uns instantes ata que o sangue quis volver a circular pelo seu circuito de veas e capilares, regando o meu cérebro e activando os meus paralisados músculos. 

A mala no lugar onde foi encontrada.


Quando consegui despegar-me do cadeirão fui até a mala, tirei-a de debaixo da cama e dispus-me a abri-la. Efetivamente, dentro havia um livro em oitavo encadernado em pele, com a capa nua de caracteres e ilustrações. Para enquanto, Tero e Dália já participavam da cena observando atónitas a minha busca do tesoiro. Como bom enfermo de literatura, patologia descrita pelo Vila-Matas, sou vítima dum ritual à hora de acercar-me a uma nova literária. Sempre pego no livro com uma mão e o acarinho docemente com a outra antes de abri-lo. Depois arrecendo as suas páginas e após rematar a leitura, beijo a contracapa, agradecido pelo favor recebido.

O livro que me apresentara o Conde de Aurora tinha uma peculiaridade que só descobri quando o abri para cheira-lo: as suas páginas estavam em branco. Foi nesse instante que percebi a brincadeira do meu anfitrião. Aquele livro não era uma incitação a leitura, ele sabia que eu não precisava tal coisa, era, isso sim, um desafio a escrever.  
P. S. O Conde, durante a conversa dessa noite, seica os fantasmas o sabem tudo, lembrou que a sua morte aconteceu só um mês antes de eu nascer. José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho III Conde de Aurora(Ponte de Lima, 19 de abril de 1896; Ponte de Lima, 3 de Maio de 1969).


Lendo no cadeirão onde sentou o Conde.

                                           foto: © Dália do Pico Rodríguez

quarta-feira, 30 de abril de 2014

nº 182 Pecinhas musicais do arquivo familiar de Manuel Antonio.

Para os meus alunos da Uned Senior de Rianjo

Já faz alguns verães teve a oportunidade de trabalhar uns dias com o arquivo da família Pérez, da que era membro o poeta rianjeiro Manuel António (Pérez Sánchez), tantas vezes lembrado por mim nas páginas do meu blogue. Entre os muitos papeis manuscritos, algum deles de uma beleza e importância histórica espantosa, apareceu uma folhinha de um quarto com umas diminutas peçinhas para piano que me deixaram absolutamente impressionado. Após fazer uma transcrição rápida enviei-lha ao amigo e grande pianista Alejo Amoedo para que ele me dera o seu parecer. Este, tão amável, não só me deu o seu parecer, também as interpretou ao piano e as gravou com o seu telefone para que eu ouvi-se ao vivo. Tenho que reconhecer que quando recebi o agasalho chorei emocionado.
A dia de hoje, e antes de trabalhar a fundo com o arquivo, considero que o autor é José Pérez, nome que aparece no próprio documento junto com uma data, agosto de 1922.
Aguardo que dentro de pouco podamos conhecer mais coisas do importante arquivo musical da família Pérez. Trata-se dum magnífico documento da Galiza musical da primeira metade de século, e achega, também, muitas claves sobre a vida musical das pequenas vilas galegas. Este arquivo propriedade do Concelho de Rianjo, e por isso mesmo, de tod@s @s rianjeir@s, é uma oportunidade única para a criação de um Arquivo Musical imprescindível numa terra considerada como «tão musical». Que assim seja.

Partitura original:



                                      

Interpretação de Alejo Amoedo: OBRIGADO, AMIGO.

quarta-feira, 26 de março de 2014

nº 181 Morrer.


Vou morrer. Desta vez é claro que vou morrer. Já não posso mover as pernas, nem os braços. Tenho o corpo tudo paralisado; não posso falar. Será que já morri? Acho que não. Sinto dor no peito ao respirar. Se respiro, mesmo que muito dificultosamente, será que estou vivo, né! Mas não posso dizer que me pegue de surpresa. Á minha idade morrer deve ser o acostumado. Quando a gente fale de mim dirá: -Morreu no seu tempo! E terá razão, vivi anos de mais, por isso não tenho medo a morrer. Resulta curioso que o único que ainda me funcione bem seja o cérebro. Tal vez isto é sempre assim. Pode ser que a natureza nos permita conversar com nós mesmos para fazer balanço do nosso passo pela terra. Quiçá esse instante final seja o céu ou o inferno do que falam os padres. Eu nunca teve medo á morte. Fui bom com os meus e jamais odiei, assim que agora posso desfrutar do céu e morrer como um bendito. Pergunto-me quanta gente haverá na paróquia que morrera ou vaia morrer no mesmo quarto no que nasceu. No tempo dos meus pais seriam mais dos que agora, isso com certeza. A casa era mais pequena, quando eu nasci. Debaixo deste quarto estavam as cortes. Fizemos a cozinha após a vinda da tropa, a primeira cozinha... Meus pais queriam este quarto porque as janelas davam ao levante. Nós, mudamos para aqui quando os velhos morreram. Rosa morreu aqui e aqui vou morrer eu. O meu filho também nasceu neste quarto mas ele não, ele há morrer na Corunha, no seu andar, num prédio cheio de desconhecidos, ou num hospital, ou dum infarto no meio da rua, ou duma volta qualquer que lhe dê o corpo. A gente de agora não sabe onde vai morrer. Quando era um menino saia todos os dias pela porta da casa, olhava para a santinha do cruzeiro e fazia o sinal da cruz. Ainda ontem fiz o mesmo. Quando foi que deixei de ir à missa? Quando foi que deixei de crer? Seria no 36. Naquele tempo vi como muitos santarrões assassinavam vizinhos com a bênção da igreja. Eu já duvidava, mas daquela deixei de duvidar. Só lamento não ver à santinha uma vez mais. A minha santinha! De criança tinha grande devoção por ela. Pedia-lhe a diário para que curara ao avó; à vaca que tivera mal parto; para que acalmara o vento e papá não correra perigo no mar... Umas vezes a coisa funcionava e outras não. Quando funcionava era a santinha, tão boa; quando não, a culpa era nossa, grandes pecadores; ou minha em exclusiva, que sempre fui um mal cumpridor dos preceitos. Tudo mudou quando fui à tropa. Foi antes da guerra, pouco antes. Estávamos na África Espanhola. Éramos novos, cheios de vida. Fumávamos charutos marroquinos. Eu nunca fora de putas. Não, aquelas moças não eram putas. Tinham fome e nós éramos só um bocado mais ricos do que elas. Foi a minha primeira vez. Aqui deixara uma moça, mas nem um bico lhe dera. A Rosa foi a minha moça desde crianças... a única moça que teve. Quando volvi para a aldeia entrei na casa de madrugada. Minha mãe sentiu-me. Levantou-se da cama, abraçou-me e chorou enquanto me fritava uns ovos e aquecia uma cunca de leite... Meu pai ficou na cama. Quando nos encontramos ao outro dia, jantamos em silêncio e na sobremesa ofereceu-me um pito. Ao sair pela porta olhei mais uma vez para a santinha. Agora já não tinha aquela carinha de menina santa. Agora o seu rostro de mulher semelhava o mais formoso do mundo. Aqueles olhos! Aqueles beiços! Ainda estou vivo. Quanto tempo terei ainda de vida! Na tropa, durante a guerra, tal vez matei a um homem. Estávamos em revista e um sargento dirigia-se a nos a gritos para indicar-nos qualquer incorrecção no nosso aspecto. Havia que contestar –Si, mi sargento. Um basco, alto coma um salgueiro, esqueceu o de mi sargento e só disse -Si. Caiu-lhe uma hóstia que se escutou em tudo o pátio. O basco não o pensou duas vezes e duma porrada deslocou-lhe a mandíbula ao tal sargento. Houve conselho de guerra sumaríssimo. Criou-se um pelotão de voluntários. Como não houve suficiente pessoal escolheram a dedo alguns companheiros do pobrezinho soldado. Tocou-me a mim. Quando se deu a ordem de disparar eu fechei os olhos. Igual não lhe dei. Igual sim. Ao acabar a guerra casei contigo. Ai Rosinha!. O dia que casamos não houve festa. Estavas de luto pelo teu irmão. Era da CNT e ao acabar a guerra escondeu-se nas minas de Sanfins. Quando o prendeu a Guardia Civil estava feito um saco de ossos. Não podes-te visitá-lo. Na noite de bodas vim-te nua por primeira vez. Eras virgem, mas parecias mais experimentada do que eu. Montei-a, e quando a penetrava fechei os olhos. Então eu não estava com a Rosa. Com os olhos fechados podia ver o rostro da santinha, esses olhos, essa boca... Quando rematamos senti remorsos. Fui à igreja, acheguei-me ao confessionário e confessei. Mas só banalidades, como sempre. Na altura, havia que cumprir o trâmite. Cada vez que folhava com a Rosa, era a santinha a que se me oferecia. Uma noite acheguei-me ao cruzeiro, subi ao estrado e estiquei o braço. Com a ponta dos dedos toquei os seus beiços, os seus olhos, as suas bochechas. Toquei as dobras do seu manto, as suas mãos... Olhei ao meu redor para ter certeza de que ninguém me vira. O caminho estava deserto, só quando olhei para a casa é que te vi. Estavas parada na porta. Não disseste nada. Depois de nascer o nosso filho, começas-te a andar mal. Cada vez estava mais cativa, não havia dinheiro para andar em médicos. Manuel acabava de cumprir quatro anos quando morres-te. Nesta mesma cama. Neste mesmo quarto. Quando estavas a agoniar acerquei-me ao teu ouvido e contei-te o da santinha. Não te queria fazer dano, mas queria que souberas o meu secreto antes de nos separar. Sei que não te importou porque olhaste para mim com um sorriso. Esse sorriso transmitiu-me toda a tua compreensão. Não houve outra mulher, só a santinha, sempre no meu desejo e na minha devoção. Já não posso respirar! Alguém virá petar na porta quando vejam que não abri as contras. Vou pensar na santinha! Vou subir ao céu!




©Texto e fotografia: José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres, Rianjo.
Março de 2014.



sexta-feira, 14 de março de 2014

nº 180 XYZ


XYZ
A Marcial e a Alberto, por esta ordem.

Esta história aconteceu a fins da década de 90, uma época da minha vida sonora como uma fanfarra de ciganos romenos. Depois de muitos anos de ausências, X, Y e Z, três amigos da infância, encontram-se no átrio duma igreja. Vemos a cena desde os olhos emocionados de X, um músico hipocondríaco que acaba de descobrir que o seu umbral da dor é baixíssimo. Z é introduzido no templo nos ombros de quatro funcionários duma funerária, num caixão de mogno sobre cuja tampa reluz um crucifixo e um Cristo metalizados. 


Passados uns minutos, o pessoal que fica no átrio esta constituído por ateus, impontuais, tabaquistas e falabaratos, quase que todos homens. X, elemento do primeiro sector, sente-se um bocado incómodo, pois detesta a todos os demais grémios. Do interior da igreja abarrotada de gente brota uma melodia melancólica como trazida por um vento mareiro. A letra da canção é um trilho para este povo de marujos que tanta gentinha perdeu no mar: «Tu, has venido a la orilla / no has buscado, ni a ricos ni a pobre...». X, interessado desde criança pela história das canções, sabe que Pescador de hombres, foi composta por Cesáreo Gabaraín, um padre músico e desportista que mesmo chegou a ganhar um disco de ouro. Quando o coro recita os versos «en la arena he dejado mi barca / junto a ti, buscaré otro mar» as conversas no exterior cessam, as olhadas dirigem-se ao chão, há alguma bágoa nos mais sensíveis...

Num momento em que X faz um varrido de esquerda à direita do seu campo de visão, os seus olhos se cruzam na distância com os de Y, que sorri apercebido da presença do seu velho colega de turma. Y aproxima-se a X. Quando estão a poucos centímetros Y estende a sua mão:

-Venha mais cinco! -disse Y.
-Que caralho faz tu aqui? -contestou X.

Y, que viste um impecável traje preto, acomoda a gravata, move ligeiramente a cabeça e vai-se embora, silencioso, com o rostro contrariado, semi-oculto trás uns óculos de pasta preta. Há movimento no interior do templo. A gente começa a sair; soam os sinos; forma-se o cortejo fúnebre. X integra-se na comitiva e coloca-se de par de Z que agora é sustentado pelos parentes mais próximos. O padre lidera uns cantos ou plegárias acompanhados de sineta que faz pensar a X naquele poema de Alfredo Brañas chamado O avelhão no que se descreve um rito funerário localizado na vizinha Vila Nova. Por um instante, X esquece onde está e se imagina fazendo uma roda que caminha muito de vagar em torno ao catafalco de Z, emitindo os dançantes um zumbido monótono, sinistro... Na realidade, o que acaba de visionar é uma cena dum filme antigo, quiçá uma adaptação cinematográfica dum romance de Valle Inclán. Haverá alguma conexão Branhas↔Valhe Inclán? D. Alfredo esteve na nossa ilha em 1891 no bota-fora do vapor Teresita, propriedade dum industrial da localidade. →José Manuel de la Peña y Oña, bisavó de Valle Inclán, teve de se deslocar desde Vila Nova até a Arousa fugindo das represálias do exercito francês.→ No breve espaço de tempo que José Manuel de la Peña y Oña e a sua mulher Serapia Fernández Cardacid moraram aqui, tiveram uma criança de nome Francisco Peña, avô de Valle Inclán.→Durante os anos que seguiram à derrota dos franceses, os contrabandistas carcamãens assenhorearam-se do Mar da Arousa.→O mais ilustre desta casta de contrabandistas foi o genovês Benito Vicetto Beneto, pai do historiador ferrolano do mesmo nome. Todas estas ideias desordenadas vieram a cabeça de X durante os escassos cem metros que distavam desde a igreja até o campo-santo.

A entrada ao cemitério era ampla, mas ficou pequena ante as presas da multidão desejosa dum bom lugar desde o que contemplar a inumação. X deixou-se levar, mas quando se encontrou diante da boca aberta daquele nicho de formigão, compreendeu que não queria presenciar como esta se devorava ao seu amigo. Aos seus ouvidos, no médio dum silêncio sepulcral, chegaram os lamentos da mãe e das irmãs do defunto cada vez mais desatados. Saiu discretamente. Ao ultrapassar o umbral do recinto, divisou ao longe a figura de Y, que tal vez também não suportou a cena. X teve a impressão melodramática de ter assistido ao enterro duma grande amizade.

Na actualidade, ano 2014, X é um poeta frustrado e uma pessoa razoavelmente feliz. Y tem um largo historial de reclusões em cárceres de todo o estado. Numa delas chegou a coincidir, a típica casualidade galega, com P, outro ex-companheiro de estudos agora funcionário de prisões. Z é um pequeníssimo segmento da coluna azul dum diagrama que X viu recentemente na prensa local e cujo cabeçalho era exactamente este: Percentagem de homens menores de trinta anos falecidos na década dos noventa a consequência do consumo em massa de drogas.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

nº 179 Tetos

Tetos
Micro-novela erótica

C. I

Começou sendo apenas um ruidinho semelhante a uma pingueira a bater no parapeito da janela, fácil de ignorar ou de acomodar aos pensamentos. Mas na meia-noite os sons vão-se singularizando, fazendo-se grandes até atrair toda a tua atenção, ensimesmando-te. Agora percebia um ritmo de cadência lenta, monótona, ligeiramente sincopado. Percebia um tempo accelerando que me levou a pensar que no andar superior alguém praticava sexo sobre uma cama indiscreta. Incomodou-me. Por um instante senti que se estava a invadir a minha solidão, como se na distância alguém acertasse a meter-me o dedo na chaga. Mas a minha paranoia esvaeceu-se quando escutei a sua voz. Foi nascendo, ao igual que aquele ruidinho primigénio, um chio cadencioso ao pouco convertido em grito apenas dissimulado. Reconheci a voz duma mulher em pleno gozo, sentindo-me, hei de confessa-lo, moderadamente excitado. Mas, trás a aparição da Prima Donna, o ato correu com brevidade, ficando eu dormido quase que no instante em que caia o telão.

C.II

Ao outro dia deitei-me cedo. Não eram mais das dez quando pousava o livro sobre a mesinha e apagava a lâmpada, na esperança de que as horas ganhadas à noite haviam-me ajudar a sobreviver. Vã ilusão! Às doze da noite em ponto, novamente o ruidinho começou a invadir o meu quarto. Tão diminuto como era e tinha o poder de me acordar dum sono aparentemente profundo. Não pude evitar olhar o relógio de números luminosos. Não pude evitar escutar com atenção. Não pude evitar uma alegria súbita quando a voz feminina proclamou, urbe et orbi, o seu júbilo.  

C.III

Passaram quatro ou cinco dias nos que ao dar as doze começavam os ruídos, os gritos, sempre o mesmo protocolo; um mesmo início e um mesmo final. Para então, eu já não podia dormir sem presenciar o espetáculo que se desenvolvia no andar de acima. As minhas fortes enxaquecas  acostumaram-me a deitar  cedo, a levantar cedo, a levar uma rotineira vida de frade bento. A meia-noite era para mim um tempo proibido. Até a hora de começo da função lia passando, despreocupado, as folhas, sabendo que os de acima seriam pontuais. Alguma vez, cônscio desta pontualidade inexplicável, pôs o despertador na esperança de dormir umas horinhas, mas de nada serviu. Só com o grito final da rapariga o meu corpo se entregava, ficando dormido até a manhã seguinte.

C.IV

Um dia escutei uns tacões a bater no chão. Normalmente, antes de começar o ato, uma porta se abria; sentia-se algum deambular pelo andar; às vezes alguma urgência para estar na hora no lugar adequado. Mas só foi ao escutar os tacões que cai na conta de que durante todo este tempo os únicos ruídos humanos identificados por mim eram de mulher. Essa noite esteve mais atento ainda. Agora é que tinha a certeza: toda a atividade do andar superior era provocada por uma única dama a qual eu escutava enquanto ela se masturbava. As minhas sensações então foram contraditórias. Por uma parte senti por vez primeira que estava a violar a intimidade de alguém. Isto só o senti uns segundos.  O sentimento mais potente foi o de solidariedade ou mais bem admiração por uma mulher autossuficiente, liberada dos caprichos do sexo contrário.

C.V

Os dias a seguir não fizeram mais que confirmar as minhas suspeitas sobre a pontualidade onanista da vizinha de acima, além de fazer medrar a minha admiração por um ser tão motivado em dar-se prazer. A mim sempre me deu tanta preguiça!

C.VI

O prédio onde ambos morávamos era um lugar desolador em inverno. Das numerosas vivendas, apenas estavam ocupadas três ou quatro, sendo imperceptível o trânsito pelos espaços comuns: os patamares, os elevadores ou a garagem. Premi o botão e as portas metálicas abriram-se para mostrar o meu rosto avelhentado no espelho do fundo. Penetrei no habitáculo justo no momento em que batia a porta da rua. Coloquei a mão na célula fotoelétrica para evitar que se fecharam as portas. Quando aquela rapariga véu que ia partilhar o elevador surpreendeu-se tanto coma mim, colorando-lhe as suas façulas um assomo de rubor. Vestia um uniforme que reconheci ao momento e foi então que lembrei a sua presença junto ao posto de frutas do supermercado da esquina. Eu sou alérgico a numerosas frutas, nomeadamente aquelas que têm pelo, às tropicais e alguma mais que nem sei, assim que procuro não me acercar demasiado. Só compro maçãs que ela, em várias ocasiões, me pesou amavelmente. Tenho observado que quando a bicha e muito comprida, reclamam a fruteira pelo alto-falante, incorporando-se à linha de caixas e deixando o seu posto vago até que só ficam umas poucas pessoas a espera.

C.VII

Como poderia explicar-vos o momento em que o seu dedo pecador premeu o número de andar acima do meu. O ruborizado então fui eu. Sai do elevador e abri a porta, mas no canto de entrar, fiquei na espera de verificar que a fruteira abria, por sua vez, a porta correta. Todo correu como estava previsto. Passaram as horas. Aguardei a que o duplo zero substituíra ao 59. Novamente o ruidinho. Começava o espetáculo. Então senti vergonha. Lembrei a cara da rapariga das maçãs. Pensei que podia ser seu pai. Pensei na sua vontade de estar soa, de gozar ensimesmada. Pensei em Foucault e nos problemas de comunidade de  Schopenhauer: o velho professor atirou a sua vizinha Caroline Marquet  pelas escadas. Tudo aconteceu subitamente. Levantei-me e fui para o quarto do lado contrário. Durante os poucos meses que continuei a morar naquele andar, jamais volvi à minha antiga cama.

C. FINAL

Segui comprando-lhe maçãs. Paulatinamente melhorei muito das minhas dores de cabeça.

© José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres. Rianjo. 
Fevereiro de 2014.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

nº 178 No cabo de ano de Manuel Antonio.


O 28 de Janeiro de 1930 morria em Asados o poeta Manuel Antonio. Resulta um bom exercício historiográfico ver a recepção que tal sucesso teve nas páginas do jornal El pueblo gallego, onde ele colaborara, assim como a relevância das pessoas que assinavam os artigos. Só um dia depois da morte do poeta, Johan Carballeira publicava um panegírico titulado "El viaje sin regreso", uma viaje que o próprio Carballeira percorreria só sete anos depois, vítima das balas fascistas. 

El viaje sin regreso
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Murio Manuel Antonio, hombre y poeta.

Frente al despierto mar del atlántico enero, alargando en crudos horizontes se hizo el día de ayer un cadaleito-velero para llevar a navegar en la eternidad a Manuel Antonio.
Desnudo y puesto "como los hijos de la mar", del verso de Machado, esperó ese viaje sin regreso. Todo el mar celta del mozo poeta, hizo una cruz de silencio y sangró con los ramos desnudos y luminosos de sus versos de piedra madura.
El cósmico acento del poeta partió para las lejanías. Su voz marinera verde y vital como el viento se fué en ondas hertzianas a hacer fiesta de belleza fuera de la rueda del mundo. 
Manuel Antonio: "estás juntando soledades". Y he aquí que tu responso te lo rezan tus versos:

Xa che levaron os ollos
relingadores de lonxanías
e pescadores de profondidades.
Xa che levaron a voz
asolagada na furna xiróvaga
por onde escoan as tempestades.

***

A esta hora en que cierra los ojos Manuel Antonio, Galicia pierde a su poeta más perfilado, mas denso, más universal.
Su poesía está ahí ya categorizada en esqueleto, resistiendo el embate del tiempo, porque sus versos, no son versos inconsútiles, blanduchos y sonorizantes y tiernos como de carne. Son enjutos. De hombre. Sus versos son de hueso. Los que tienen más hueso de todos los que se fundieron en verba gallega. Su poesía tiene dentro sustancia, materia de eternidad desinfectada, clara y perenne. A esta elaboración llegó por recursos de amor, de pensamiento, de caminar con hundidos pasos de hombre y aire de arcángel.
Los poemas de Manuel Antonio se parten a cada contacto en seguros voladores caminos como el diamante se deshace en rosas interiores de luz.
Paul Valery, cae catedrático hondo de poesía por ejemplo, al contrastar el valor poético de Manuel Antonio le grabaría encendidamente el juicio de los 18 quilates supremos.
Manuel Antonio, como ese otro gran poeta Amado Carballo, muere antes de cumplir los treinta años. Como Carballo, su escuela es netamente moderna. Está dentro de la más pura escuela novecentísta. Su libro "De catro a catro" es un libro de versos que se sostienen por sí solos, valientemente y se hacen un sitio de honor al lado de la lírica española, mejor formada de últmima hora. Con Antonio Machado, con Juan Ramón Jiménez, con Jorge Guillén, con Pedro Salinas, con Juan Larrea, con Gerardo Diego.
Pero hay algo más que un finísimo esteta en el poeta "De catro a catro". Hay un valor humano verticalísimo. Hay una hombría, un civismo, una rigurosa ética haciendo ámbito a su juego lírico.
Porque este mozo que nació en Rianjo e hizo un mapa de ronseles en el mar cantó con la mas honda voz de hombre cara a Dios.
Se fué Manuel Antonio y en este enero de 1930 pierde Galicia a su poeta mas hecho y derecho.
Una gavilla de fervores internos, del pensamiento al corazón hondos como su muerte, serán su eviterno cortejo.

Juan Carballeira, El pueblo gallego (31/01/1930)

O dois de fevereiro aparece no mesmo jornal uma pequena nota de Manuel Pazos Jiménez, autor do que desconheço qualquer dado bio-bibliográfico. Com o artigo, inclui-se um poema, Lied ohne worte, publicado originariamente em De Catro a Catro e uma fotografia que parece ser do poeta de Assados. No pdf consultado [Galiciana], a qualidade da fotografia é péssima, mas acho que o documento resulta muito interessante.

Manuel Antonio, al otro lado 


Manuel Antonio, el fuerte cantor del mar, de ese mar desvelado de espumas y brisas, se ha esfumado. En su pipa marinera consumió el tabaco del recuerdo pleno de eternidades.
No es ahora momento propicio para desempapelar el elogio. Su solo nombre, pleno de sugerencias renovadoras plasmadas en su libro "De catro a catro", manual de mares cosmopolitas y punto de apoyo del creacionismo gallego es más que suficiente para descubrir su fuerte personalidad.
 Ha caido no con un verso en la boca, sino hastiado de horizontes que hoy nos hacen pulsar en su exaltación un treno lúgubre y fatal.
Y así, pues, en Asados, frente al mar -su mar celta- cayó envuelto en promesas deshojando el almanaque. Manuel Antonio atravesó en la barca de Caronte. En la boca llevaba la moneda poética de su creacionismo.

Manuel Pazos Jiménez, El pueblo gallego (02, 02, 1930)

Quiçá o mais emotivo de todos os artigos é o escrito por Antón Vilar Ponte, já que desprende um apreço sincero não só pelo poeta, senão também pelo ser humano. Em 1921, Manuel Antonio pede a Vilar Ponte que lhe publique um poema no jornal A Nosa Terra, do que era director. Nesse mesmo ano celebrara-se em Vigo a III assembleia nacionalista. 

 Exemplos
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O noso poeta do mar

Eu sabía que Manuel Antonio hachábase apreixado por unha grave doenza, mais iñoraba que ista doenza poidese arrincalo tan axiña da terra. O lér a nova da sua morte sintín com'a friaxe d'un coitelo no mais fondo do meu ser, mentres d'orvallo queimante enchíanse os ollos...
E penso agora, como pensei cand'o Amado Carballo ceibou o derradeiro salaio, nos predileitos dos deuses, dos que dixo Plauto:
"Quem dií diligunt, adolescens moritur." [Frase das Bacanas que vem a dizer: "Quem vive bem, vê a morte antes de tempo."] Nota de Ilha de Orjais.
E lembro ô pálido e doente tísico aleman, pai espiritoal do "naladif" Laforgue, que se chamava Novalís e que morreu novo, com'o mesmo Laforgue, como Guyan, como Wateau, como Rodembach, como Becquer, como Julián Casal, como Gutiérrez Nájera, como tódol-os grandes predestinados, com'os eleitos do ceo do Arte, que nasceron con esceso dàmor e dèsprito.

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D'aquela, xa fai d'isto moitos anos, dirixía eu a revista "A Nosa Terra". Recibín pol-o correio unha cuartilliña c'unhos versos estranos na compaña d'unha carta moi soberbia no que pouco mais ou menos puiden ler: "Supoño que non publicarán este poema que mando e que coido que non está mal feito". Firmaba: Manuel Anonio. Nunca, en ningures, tiña ouvido tal nome. Pro os versos agradáronme, e viron a lus de contado, c'unhas liñas ô pé escribidas da miña mán a xeito sinceiro de alusa loubanza. Aqueles versos foron os primeiros do egrexo autor de "Catro a catro" que da forma manuscrita pasaron â forma impresa. Asín nasceu a miña amistade estreita e íntima con Manuel Antonio. Asín foi dend'entón o probe poeta agora finado, cada vez que viña â Cruña, un bô irmán no meu fogar, que inda sendo pequeno puidera dicir con frase de Gauthier, que se non veu nunca cheio de verdadeiros amigos. ¡O meu fogar, hoxe de loito, de loito para sempre, pol-a perda da boa muller, dina compañeira d'un home de combate que o alegraba, onde c'os brazos abertos tiveron acollida garimosa cantos pelingrinos do Ideal, alcesos no amor â terra a él chegaron!...

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Manuel Antonio, outo e magro, co'as meixelas tinguidas da coor rousada da tisis, c'o corpo esquélico, sempre levando a cachimba mariñeira nos labios finos e pálidos, tocado de chapeu bohemio e de chalina d'artista oitocentista, soñaba a toda hora con aventuras esóticas. "Vostede nasceu -dicíalle o noso filósofo Xohan Viqueira, outro malogrado do galeguismo, como Porteiro, como Losada Diéguez- para ser o enxebre poeta do mar". E isto foi, sinxelamente. A sua musa creacionista zugou a calma dos "camiños innumerabres", de que falara Esquilo, para eternizar no arte lírico impresións belidas e requintadas do océano, que teñen un senso inmurchabre de universalidade.
Pola patriótica editorial "Nós" os poemas "De catro a catro" sairon do ineditismo para se cinguiren de loureiros sempre vizosos. E con eses loureiros o nome de Manuel Antonio -o galeguista radical que arelaba a rexa acción- terá un posto d'honor nas nosas antoloxías líricas. No cimeterio de Asados o merlo xovial e luzivio de Guerra Xunqueiro, todo en loito de plumaxe negra e de peteiro de cera marela, eu ben sei que ha de lle facer exequias de cristal ôs restos apodrecidos do probe poeta mariñán, sobre dos que chora bágoas amargas a nova Galicia. 

P.S. -Manuel Antonio, en colaboración con Alvaro Cebreiro, o dibuxante, publicou fai anos, cando poucos o coñecían ainda, un manifesto de vanguardia, en galego, que era un verdadeiro panfleto iconoclasta. 

A. Villar Ponte El pueblo gallego (05, 02, 1930)

No museu de Manuel Antonio em Rianjo, há uma formosa fotografia na que podemos ver a Bal y Gay compartindo taças com ilustres rianjeiros. O compositor lucense era uma assinatura habitual de El pueblo gallego. Em 1930 data Bal y Gay Seis pezas para Canto e piano encol de verbas de Amado Carballo, composição que felizmente podemos escutar no som ambiente cada vez que visitamos o museu de Manuel Antonio.

S.O.S.
"Peace, peace! he is not dead, he doth not sleep
He hath awakened from the dream of life"
[Paz, paz! Ele não está morto, não está dormindo, 
apenas acordou do sonho da vida] Nota: Tradução Ilha de Orjais
Shelly: Elegía en la muerte de Kents.

"S.O.S." Así se titula un poema de este Manuel Anonio, marinero que acaba de emprender el viaje sin retorno. Y "Sós" tituló él otro de sus poemas. Curiosa coincidencia, ésta, del idoma gallego con la internacional telegrafía de los navegantes. Grito de angustia, señal de peligro, ancia de auxilio, ese S.O.S. deviene, no sé por qué extraños designios, la exacta grafía de la verba con que nosotros expresamos nuestra plural soledad.
Símbolo cristalino esta coincidencia en Manuel Antonio, poeta gallego, surcador de todos los mares, hombre que acuñó paisajes lejanos con su insobornable troquel gallego y que dió al ruiseñor aldeano un acento vibrante de pájaro marino. Poeta ejemplar en esta hora gallega, afincado en la tierra y su mirada a navegar, unido al destino de nuestra cultura y, por eso, conscientemente, incansable peregrino. Poesía, la suya, universal y gallega. Comunión estrecha de nuestro idioma con el más puro lenguaje internacional.
¡Sós! ¡S.O.S.! ¡Solos! ¡Auxilio!, quiero gritar yo hoy en la muerte de Manuel Antonio. Tras Amado Carballo, cuyo tránsito quebrantó radicalmente a nuestra lírica, perdemos ahora a este nuestro primer poeta. Ambos, desaparecidos en el umbral de los treinta años. "Los amados de los diosos mueren jóvenes". Tal vez. Y es tremendo que a Galicia corresponda el dar crédito a esa frase. Pero tal parece su destino.
¿A dónde dirigir ahora nuestra vista que no encontremos soledad?

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Con esta muerte, y a costa de todas nuestras esperanzas, ese libro singular que se llama "De catro a catro" penetra hoy en la inmortalidad. Manuel Antonio y su obra alcanzan -prematuramente, sí, pero para siempre- esa madurez que sólo se logra en la muerte. Manuel Antonio, a quien yo he visto atravesar las rúas compostelanas con su aire de sonámbulo, la mirada perdida en invisibles horizontes, ha despertado al fin. Desde ahora es una figura concreta, perfilada, cerrada y persistente. Figura, ya, del Pórtico de la Gloria de nuestra cultura. Definitivamente rodada su obra de imposibilidades, notaremos ahora toda su fuerza -"enorme y delicada".
Y sabremos, también, cuánto el futuro de nuestra lírica ha perdido en este definitivo despertar de Manuel Antonio.

Jesus Bal y Gay El pueblo gallego (06, 02, 1930)

Não conheço muitos mais artigos publicados imediatamente depois da morte de Manuel Antonio, fora destes de El Pueblo gallego. Há mais um de Otero Espasandín sobre o seu amigo em Nueva Espanha mas espanta-me, ou quiçá não tanto, a ausência de penas ilustres do nacionalismo galego.

Como esta postagem está a sair um bocadinho trágica, e só para descontrair, achego uma cantiga com uma história curiosa. Ao lado do meu computador tenho um teclado Yamaha, dotação da Xunta para as aulas de música em primária. Soa horrível, mas é muito útil para fazer harmonizações e arranjos para a escola. Quando lia os artigos sobre o passamento de Manuel Antonio comecei a perguntar-me como seria o enterro em Assados. Teriam ido vultos do galeguismo? A intelectualidade rianjeira?
Não faço a menor ideia, nem sei se alguém me saberá contestar a estas perguntinhas. Mas na minha cabeça começaram a sonar os sinos da igreja de Assados. Os sinos converteram-se numa melodia que levei ao teclado escolar, conhecido familiarmente como «o matraquilho». 
Eu não toco piano, apenas pouso os dedos para juntar sons e fazer acordes, mas o resultado da minha ensonhação manuelantoniana foi uma humorada que titulei Sinos para um poeta defunto. Canção para piano escolar e soprano prescindível.
Não mo levem a mal.


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sábado, 28 de dezembro de 2013

nº 177 Uma foliada rianjeira de 1955.

Na página web http://www.musicatradicional.eu estão-se a colocar digitalizadas, as transcrições do trabalho de campo realizado pelas missões folclóricas do CSIC entre 1944 e 1960. Fazia anos que vinha reclamando que a parte galega deste material, milheiros de fichas com partituras e anotações, viera para a Galiza. Se como parece este fundo estará disponível em breve para todo o mundo, poderemos gozar dum material de indubitável valor histórico, documental e, obviamente, também artístico, que nos vai permitir aos músicos contar com uma quantiosa base de melodias e de letras para futuras actualizações.
Entre o ramalhinho de registos galegos digitalizados, ainda escasso, eu encontrei uma delicatessen que, além disso, tem relação direita com a vila na que moro, Rianjo.

A história é esta:

Em 1943 o Padre Higínio Anglés começa a dirigir o Instituto Español de Musicologia dependente do CSIC. Os trabalhos de etnomusicologia correram por conta da Sección del Folklore, dirigida desde o 1944 até o 1955 por Marius Scheneider (1903-1982). A Sección de Folklore vai realizar 68 missões por todo o Estado Espanhol, recolhendo-se, como já disse, milheiros de cantigas transcritas com notação musical. 
Em 1955, o músico Pedro Echevarria Bravo (1905-1990) vem a Rianjo na sequência do que será a missão 46 e recolherá umas cantigas a Ramón Rodríguez Alcalde, marinheiro rianjeiro de 67 anos de idade. O tal Pedro Echevarria Bravo era natural de Villalmanzo, Burgos, mas desde o 1953 dirige a banda de música da Deputação da Corunha e desde o 1955 a de Compostela. Esta recolha tem um valor ainda maior se pensamos na escassíssima historiografia musical com a que conta o nosso concelho. Por exemplo, Rianjo não aparece no cancioneiro de Casto Sampedro, ainda que sim nos fundos recentemente publicados pelo Dr. Xavier Groba. Também não aparece nenhuma entrada na magna colecção de canto antigo galego da Dra. Dorothe Schubarth. Só Bal y Gay e Torner se acordaram de Rianjo no seu cancioneiro. 

Transcrição de Pedro Echevarria Bravo da cantiga Se chove, deixa chovere.


Edição com musescore (pdf)

Tal vez seja um erro irreparável pela minha parte, mas não me resisto a oferecer-vos uma actualização deste tema que fiz com minha sanfona. Eu não sou um bom sanfoneiro, nem o instrumento estava em uso, já que faz algum tempo que apenas toco. Mas hoje fui ao colégio onde trabalho e onde por acaso estava a sanfona. Tinha uma câmara a mão e sem muita preparação volveu a sonar em Rianjo, neste caso Taragonha, a velha foliada do senhor Ramón Rodríguez Alcalde. No vídeo, ao meu lado, vê-se uma maqueta da motora dos Cambeses feita pelo nosso alunado. Bom, aguardo que me desculpem o atrevimento.