quarta-feira, 26 de março de 2014

nº 181 Morrer.


Vou morrer. Desta vez é claro que vou morrer. Já não posso mover as pernas, nem os braços. Tenho o corpo tudo paralisado; não posso falar. Será que já morri? Acho que não. Sinto dor no peito ao respirar. Se respiro, mesmo que muito dificultosamente, será que estou vivo, né! Mas não posso dizer que me pegue de surpresa. Á minha idade morrer deve ser o acostumado. Quando a gente fale de mim dirá: -Morreu no seu tempo! E terá razão, vivi anos de mais, por isso não tenho medo a morrer. Resulta curioso que o único que ainda me funcione bem seja o cérebro. Tal vez isto é sempre assim. Pode ser que a natureza nos permita conversar com nós mesmos para fazer balanço do nosso passo pela terra. Quiçá esse instante final seja o céu ou o inferno do que falam os padres. Eu nunca teve medo á morte. Fui bom com os meus e jamais odiei, assim que agora posso desfrutar do céu e morrer como um bendito. Pergunto-me quanta gente haverá na paróquia que morrera ou vaia morrer no mesmo quarto no que nasceu. No tempo dos meus pais seriam mais dos que agora, isso com certeza. A casa era mais pequena, quando eu nasci. Debaixo deste quarto estavam as cortes. Fizemos a cozinha após a vinda da tropa, a primeira cozinha... Meus pais queriam este quarto porque as janelas davam ao levante. Nós, mudamos para aqui quando os velhos morreram. Rosa morreu aqui e aqui vou morrer eu. O meu filho também nasceu neste quarto mas ele não, ele há morrer na Corunha, no seu andar, num prédio cheio de desconhecidos, ou num hospital, ou dum infarto no meio da rua, ou duma volta qualquer que lhe dê o corpo. A gente de agora não sabe onde vai morrer. Quando era um menino saia todos os dias pela porta da casa, olhava para a santinha do cruzeiro e fazia o sinal da cruz. Ainda ontem fiz o mesmo. Quando foi que deixei de ir à missa? Quando foi que deixei de crer? Seria no 36. Naquele tempo vi como muitos santarrões assassinavam vizinhos com a bênção da igreja. Eu já duvidava, mas daquela deixei de duvidar. Só lamento não ver à santinha uma vez mais. A minha santinha! De criança tinha grande devoção por ela. Pedia-lhe a diário para que curara ao avó; à vaca que tivera mal parto; para que acalmara o vento e papá não correra perigo no mar... Umas vezes a coisa funcionava e outras não. Quando funcionava era a santinha, tão boa; quando não, a culpa era nossa, grandes pecadores; ou minha em exclusiva, que sempre fui um mal cumpridor dos preceitos. Tudo mudou quando fui à tropa. Foi antes da guerra, pouco antes. Estávamos na África Espanhola. Éramos novos, cheios de vida. Fumávamos charutos marroquinos. Eu nunca fora de putas. Não, aquelas moças não eram putas. Tinham fome e nós éramos só um bocado mais ricos do que elas. Foi a minha primeira vez. Aqui deixara uma moça, mas nem um bico lhe dera. A Rosa foi a minha moça desde crianças... a única moça que teve. Quando volvi para a aldeia entrei na casa de madrugada. Minha mãe sentiu-me. Levantou-se da cama, abraçou-me e chorou enquanto me fritava uns ovos e aquecia uma cunca de leite... Meu pai ficou na cama. Quando nos encontramos ao outro dia, jantamos em silêncio e na sobremesa ofereceu-me um pito. Ao sair pela porta olhei mais uma vez para a santinha. Agora já não tinha aquela carinha de menina santa. Agora o seu rostro de mulher semelhava o mais formoso do mundo. Aqueles olhos! Aqueles beiços! Ainda estou vivo. Quanto tempo terei ainda de vida! Na tropa, durante a guerra, tal vez matei a um homem. Estávamos em revista e um sargento dirigia-se a nos a gritos para indicar-nos qualquer incorrecção no nosso aspecto. Havia que contestar –Si, mi sargento. Um basco, alto coma um salgueiro, esqueceu o de mi sargento e só disse -Si. Caiu-lhe uma hóstia que se escutou em tudo o pátio. O basco não o pensou duas vezes e duma porrada deslocou-lhe a mandíbula ao tal sargento. Houve conselho de guerra sumaríssimo. Criou-se um pelotão de voluntários. Como não houve suficiente pessoal escolheram a dedo alguns companheiros do pobrezinho soldado. Tocou-me a mim. Quando se deu a ordem de disparar eu fechei os olhos. Igual não lhe dei. Igual sim. Ao acabar a guerra casei contigo. Ai Rosinha!. O dia que casamos não houve festa. Estavas de luto pelo teu irmão. Era da CNT e ao acabar a guerra escondeu-se nas minas de Sanfins. Quando o prendeu a Guardia Civil estava feito um saco de ossos. Não podes-te visitá-lo. Na noite de bodas vim-te nua por primeira vez. Eras virgem, mas parecias mais experimentada do que eu. Montei-a, e quando a penetrava fechei os olhos. Então eu não estava com a Rosa. Com os olhos fechados podia ver o rostro da santinha, esses olhos, essa boca... Quando rematamos senti remorsos. Fui à igreja, acheguei-me ao confessionário e confessei. Mas só banalidades, como sempre. Na altura, havia que cumprir o trâmite. Cada vez que folhava com a Rosa, era a santinha a que se me oferecia. Uma noite acheguei-me ao cruzeiro, subi ao estrado e estiquei o braço. Com a ponta dos dedos toquei os seus beiços, os seus olhos, as suas bochechas. Toquei as dobras do seu manto, as suas mãos... Olhei ao meu redor para ter certeza de que ninguém me vira. O caminho estava deserto, só quando olhei para a casa é que te vi. Estavas parada na porta. Não disseste nada. Depois de nascer o nosso filho, começas-te a andar mal. Cada vez estava mais cativa, não havia dinheiro para andar em médicos. Manuel acabava de cumprir quatro anos quando morres-te. Nesta mesma cama. Neste mesmo quarto. Quando estavas a agoniar acerquei-me ao teu ouvido e contei-te o da santinha. Não te queria fazer dano, mas queria que souberas o meu secreto antes de nos separar. Sei que não te importou porque olhaste para mim com um sorriso. Esse sorriso transmitiu-me toda a tua compreensão. Não houve outra mulher, só a santinha, sempre no meu desejo e na minha devoção. Já não posso respirar! Alguém virá petar na porta quando vejam que não abri as contras. Vou pensar na santinha! Vou subir ao céu!




©Texto e fotografia: José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres, Rianjo.
Março de 2014.



3 comentários:

Anónimo disse...

Tijolinho atafegante que arrasta para o fundo... belo o rosto de pedra do Cruceiro ante o que tnho passado tantas noites de volta àquela casa...

Apertas a toda a gente de lá!

Ernesto

pandulleiros.blogspot.om disse...

Fermoso relato, cheo de cualidades. Parabéns, e non se me demore en repetir. Partillo

José Luís do Pico Orjais disse...

Obrigadinho aos dois.