sábado, 25 de maio de 2013

nº 165 De quando teve tratos com o cão dos Dorado.

Sim. É assim de prosaico. Eu teve tratos com o cão dos Dorado, não com o clã. Era um pícaro e passeava pelo Lagartinho, por frente da quinta do Marcial Dorado, aquele homem que conhecíamos de vender as passagens na motora, anos antes de que a ponte acabara com a insularidade da Arousa. Mesmo para umas crianças, embora bem informadas, resultava escandaloso que aquele sujeito chegara a ter semelhante castelo. Dizque a sua moradinha contava com uma grande adega, discoteca particular, piscina e não sei quantas outras esquisitices, ainda mais quando na nossa ilha continuava a haver casas com quinteiro e serviços muito elementares.

Pois bem, eu passava por diante da grande portada e dois cãs de raça loba botaram-se-me acima e deram comigo numa leira contigua, estombalhando-me na erva, mas não por vontade própria. Um dos melhores amigos do homem, que naquela ocasião não o foi meu, deu-me uma chanchada no cu, deixando-me a cacha a ferver. 

Cheguei a minha casa assustado e dolorido. A minha mãe decidiu fazer escracho telefónico, pegou no aparelho e pôs a parir a quem estava do outro lado, que por acaso não era o interdito; a saber quem é que era.

Na altura eu tinha doze ou treze anos, agora tenho quarenta e quatro. Botem contas. O Marcial já era um grande empresário, já dera o passo de expendedor de tiques a grande distribuidor de substâncias muito mais lucrativas. Aqueles cativos que fomos atacados pelos cãs dos Dorado sabíamos de quem era a casa, e a que se adicava o patrão. Curioso que um alto funcionário de sanidade não soubesse nada.

Considero que o Marcial Dorado está no cárcere para cumprir condena pela chanchada que um dia me deu no cu o seu cadelo. É um justo pago. O que nunca poderá pagar nem por mais anos que passe de reclusão é a saudade que sentimos dos muitos amigos perdidos. Esse cão dos Dorado, esse sim que é perigoso.


La Vanguardia 19 de dezembro de 1984
(Este Feijoo não deve ser muito de ler jornais)

terça-feira, 21 de maio de 2013

nº 164 Uma fotografia de Ovidio Murguia ao piano.

Esta fotografia enviou-ma o meu amigo Ernesto Vázquez Sousa quando estava a preparar a minha palestra para o congresso de Guerra da Cal. Está tirada dum artigo de Juan Naya Pérez, no boletim nº 356 da R.A.G. Desde que a vi por primeira vez fiquei fascinado. 
A personagem que toca o piano e olha em escorço à câmara é Ovidio Murguia, rodeado por quatro indivíduos sem identificar, possivelmente colegas seus da boemia madrilena. Na instantânea aparecem três instrumentos, um piano, com as candeias da cornucópia acesas, uma pandeireta e uma guitarra. Tenho já publicado muito sobre a relação dos artistas galegos com a música, artistas conhecidos pelas suas dotes pictóricas ou literárias, mas dos que apenas se fala em termos musicais. É bem possível que o de Ovídio Murguía não seja uma simples posse para tirar a fotografia e que na realidade ele também tivera formação musical, nomeadamente pianística. A dia de hoje eu não posso confirmar mas, como veremos, esta fotografia feita na etapa madrilena do filho de Rosalia de Castro, pode dar-nos alguma informação que acho de interesse.
Em primeiro lugar tudo indica que se trata do estudo ou da morada de Ovídio. Durante o tempo que esteve em Madrid viveu com a família de Pérez Lugin, o seu parente, assim que tal vez este fosse o seu quarto na vivenda do autor de La casa de la Troya. As paredes estão cheias de quadros, algum deles catalogados, o qual nos pode dar uma datação aproximada.


A data certa desta fotografia tem de ser entre 1897, ano na que o pintor assina Passarinho no ramo, óleo pintado sobre o coiro duma pandeireta e o 1 de janeiro de 1900, data do seu falecimento. 
Mas o que mais me impressionou da imagem, além da olhada à câmara do Ovidio e essa pandeireta colgada da parede. Tratar-se-à dum exemplar de 23 cm de diâmetro, com seis pares de ferrenhas. Não sabemos a sua origem, se foi comprada na feira do Padrão onde tantas foram vendidas ou quiçá, quem sabe, se trate duma prenda de amor de Visitación Oliva. Esta moça madrilena foi o amor impossível de Ovidio. A sua família afastou-no dela, que muito provavelmente ficou grávida do pintor e deu aos Murguia Castro o seu primeiro e único neto. Em qualquer caso, como é próprio dum artísta romântico, Ovídio morreu de tuberculose longe da sua amada, baixando-se o telão em janeiro de 1900 duma muito triste tragedia de amor.

fonte: http://www.foroxerbar.com/viewtopic.php?t=12844

Assim como os outros quadros estão perfeitamente identificados, não é seguro que a pandeireta da fotografia corresponda com a pintada por Ovídio. A fotografia que ilustra o artigo de Juan Naya não é o suficientemente nítida para ver se há algo desenhado no coiro, mas em qualquer caso, considero que se trata do instrumento utilizado como lenço para Passarinho no ramo
Antes falava em termos românticos das motivações que o Ovidio Murguia teria para pintar esta pandeireta, mas o certo é que existe no século XIX uma grande tradição que fez desta prática um verdadeiro gênero pictórico. No catálogo da exposição La pandereta pintada, Joaquin Díaz escreve o que se segue:

«Durante todo el siglo XIX la pintura de panderetas reviste una importancia singular ya que con la subasta de las mismas de las mismas se obtenían recursos para atender a las necesidades de los soldados que se hallaban luchando en África o en Cuba.
Precisamente en 1892 y durante las fiestas de Carnaval surgió una inicativa del Círculo de Bellas Artes de Madrid para adquirir mil panderetas y entregarlas a diferentes artistas plásticos de Madrid para que las pintasen. El resultado fue tan espectacular que se vendieron casi todas y con el montante de lo obtenido y la organización de un baile se contribuyó a sufragar los gastos del propio Círculo (salones, cátedras, modelos, etc.) de modo que la inicativa duró unos años y llenó de panderetas toda España.»

terça-feira, 30 de abril de 2013

nº 163 (Des)Memória histórica.

O dezasseis de abril de 1937 eram assassinados na Caeira, Narciso Suárez Lojo e José Besada Nieto. O ano passado cumpriam-se setenta e cinco anos da tragédia, uma data que ficou, como tantas outras, definitivamente na desmemória.

Existem algumas páginas que dão listas dos represados, tal como a magnífica http://vitimas.nomesevoces.net/, na qual podemos ler os nomes de nove vizinhos da Ilha de Arousa justiçados. Estes são, alem dos acima citados, José Búa Laredo, Luis Castro Lojo, Marcelino Dacosta Bravo, Santiago Otero Pajares, Juan Sanes Otero, Antonio Sanes Otero e Francisco Vázquez Vázquez.

Curiosamente, as páginas da memória dão conta de todas estas vítimas inocentes, mas são escassas aquelas que citam aos membros da Guardia Cívica ou da Falange nos anos do terror. Se fazemos memória que seja com todos os dados ou quando menos com aqueles que são públicos.

Achego uns recortes de jornais que foram tirados de internet. Não precisam de comentário, só duma leitura histórica e sossegada. Contudo, permitir-me brevemente dar a minha opinião. Estamos numa época na que se estão a recuperar espaços que pertenceram a fabriqueiros, fomentadores, industriais de origem catalão os quais, supostamente, trouxeram o progresso às nossas rias. É óbvio que não se pode generalizar, que houve muitas gerações, diferentes épocas e circunstâncias, mas é frequente encontrar os seus apelidos entre os quadros repressores. Façamos memória.

Recomendo a leitura de PEREIRA, Dionísio Loita de clases e represión franquista no mar (1864-1939), Vigo: Edicións Xerais; 2010.

El Pueblo Gallego 31/12/1936

El Pueblo Gallego 07/07/1937

El Pueblo Gallego 09/10/1937

sexta-feira, 26 de abril de 2013

nº 162 Um berço ouvido na casa.

Ultimamente estou a ir muito por Santa Baia do Oeste em Catoira a casa dos meus sogros, com motivo dos trabalhos na horta. Anteontem, por enquanto não chegava a fresca para a rega, pus-me a desenhar um continho que vamos fazer com @s menin@s do meu cole.
Dália estava comigo, vendo-me trabalhar e riscando ela também algum papel, desenhos sempre muito mais criativos do que os meus. Então achegou-se a minha sogra, sentou connosco, e pegou numa boneca que a minha filha tinha deitada num berço de joguete. Neta e avó eram as mamães da bonequinha, arrolando-a e fazendo-lhe mil afagos.
Foi então que a minha sogra botou estas quadras que agora transcrevo e que ao momento copie no meu caderno de debuxo. Foi formoso ouvi-la ao carão da minha filha, num ato de transmissão geracional carregado de significados emotivos e tradicionais.
Fique aqui o meu reconhecimento para as avós e os avôs que cantam aos net@s, o melhor herdo que um pode desejar.

domingo, 14 de abril de 2013

nº 161 A câmara de Ugia.

Durante o tempo que viveu na Ilha de Arousa, Ugia Pedreira teve uma forma um bocado esquisita de se comunicar comigo. Os seus correios apenas tinham palavras, mas não era necessário, vinham sempre ilustrados por uma fotografia. O acordo ao que cheguei com ela foi que de cada imagem, ou de cada grupo de imagens, faria um pequeno texto, sempre improvisando, deixando que as palavras fluíram ceives e espontâneas.
Depois duns quantos anos, a Ugia deixou a sua morada da Arousa, pelo que podemos dar por concluída esta colaboração, mas haverá outras.
Eis aqui o caderno completo com as suas fotos e os meus poemas. Só há que premer na imagem.
Obrigado, Ugia. 

quarta-feira, 10 de abril de 2013

nº 160 micropoema


Pedi conselho a Walser
para fazer um poema que de tão diminuto
- após introduzido nas veias -
o sangue o transportara 
a cada canto do teu corpo.

Mas os poemas crescem
fazem-se tão grandes como folhas de papel, 
como paredes,
como muralhas chinesas.

Por isso és tu agora
a que deambula
- tão livremente -
pelo interior dos meus poemas.

texto e desenho: ©rjais 2013

segunda-feira, 25 de março de 2013

nº 159 O velho inventor de palavras...

Hoje, aqui em Rianjo chovia a esmadraçar. Esta palavra, esmadraçar, é comum na Arousa, o lugar onde mora o velho inventor de palavras. É assim que na linguagem quotidiana dos ilhéus há termos tão especialmente formosos como MALHANTE, GRADICELA ou GARROA.
Pois bem, chovia tanto que a minha filha e mais eu decidimos colher umas cartolinas amarelas e desenhar alguma coisa para presentear a mamãe.
Eu comecei por fazer o rascunho duma mala de cartão e quando a coisa começava a ter um jeitinho, Dália quis achegar o seu grãozinho de areia. Então pegamos na sanguina. Colorei um bocadinho e, de seguido, a minha filha fiz o esfuminho com o seu dedinho, perfeitamente, sem se sair dos limites. O texto coloquei-no depois, sem pensar muito no que dizia, deixando que a escritura automática fosse alimentada exclusivamente pelo meu coração.
Vivam os dias de chuva!



©rjais 2013