sexta-feira, 12 de julho de 2019

nº 234 Os Cantores del Instituto e a receção da obra de Lopes-Graça na Galiza. I


Em 1956, o compositor português Fernando Lopes-Graça (Tomar, 17 de dezembro de 1906; Cascais, 27 de novembro de 1994) cumpria 50 anos, a minha idade atual. Na altura, o maestro acumulava um longo historial de repressão por motivos políticos no que se incluíam detenções, prisão, impedimentos para ensinar e proibição de interpretar a sua obra. O seu posicionamento contra o salazarismo é conhecido por todos, assim como a sua militância no Movimento de Unidade Democrática e no P.C.P.
Se teve atrancos em Portugal, na Espanha de Franco o panorama não pintava melhor. 
Numa entrevista à Revista Ritmo, nesse mesmo ano de 1956, Lopes-Graça lamentava-se da pouca repercussão que a sua obra tinha no Estado Espanhol:

«–Después que mi amigo el consagrado pianista Leopoldo Querol ejecutó en Madrid, en 1942, mi Concerto número 1 para piano y orquesta, que había creado (sic) [deve de ser estreado] con Freitas Branco el año anterior en Lisboa, yo creo que la única composición mía conocida en España es la Encomendação das almas, que la espléndida Agrupación Coral de Cámara de Pamplona ha estrenado en el Festival de Granada de 1954, y que me ha dispensado el honor de incluir repetidas veces en sus programas.» Ritmo, Ano XXVII nº 283 1956 Novembro. 01/XI/1956

Foto dedicada à Revista Ritmo 1956

Em realidade, se fazemos uma procura demorada e exaustiva, podemos ir encontrando referências a obras suas interpretadas em alguma cidade galega –e também na Espanha–, mormente por solistas ou agrupações portuguesas convidadas a eventos de fraternidade Galiza-Portugal. Assim, em 6 de dezembro de 1952, o coro de câmara As pequenas cantoras de Portugal, dirigido por Virgílio Pereira, atuam no teatro García Barbón de Vigo, incluindo no seu reportório as Cantigas de Natividade, do mestre de Tomar. 
Este concerto poderá ter alguma importância no nosso relato, como veremos mais adiante.

Continuando com a exposição cronológica dos feitos avançamos até o 16 de março de 1956, ano da fundação de Los Cantores del Instituto [de ensino médio]  de Pontevedra. Em apenas dois anos o coro foi ganhando uma reputação alicerçada pelo mestrado de Agustín Isorna Ríos e Manuel Fernández Cayeiro e as extraordinárias relações públicas do diretor do instituto, D. José Filgueira Valverde. Assim, entre as numerosas atividades desse curso escolar, os coristas viajam a Madrid para participar nos atos da Semana Santa na que se vão interpretar algumas obras de Lopes-Graça. Mas, sabemos quais?

Os professores Fernando Otero Urtaza (2014) e Xavier Groba (2015) aclaram que a participação do coro escolar tinha como principais eventos «as solenidades docentes, as festividades relixiosas do Nadal, Coaresma e oficios de Semana Santa e nas conferencias-concerto que Filgueira tiña ven a compartir con eles». Xavier Groba (2015) p. 69 Segundo aparece na brochura Los Cantores del Instituto de Pontevedra. Historial y Repertorio. 1956-1963 [H. y R.] as peças de Lopes-Graça interpretadas pelo coro foram as seguintes: 

[Indicamos em cifra o curso no que foi interpretado pelo coro segundo se indica na brochura antes citada.]

–Pela noite de Natal. 1955-1956;
–Vinde, vinde já a Deus. 1957-1958;
–Eu hei de dar ao Menino. 1955-1956;
–De varão nasceu a vara... 1956-1957.

Este grupo de partituras pertencem ao conjunto titulado Cantos tradicionais portugueses de Natividade, cuja primeira audição deu-se em Lisboa em 19-XII-1950, sendo gravado pelo Coro de Amadores para o selo discográfico Radertz em ca. 1951. Como se está a ver, os Cantores do Instituto escolheram do repertório de Lopes-Graça o mesmo grupo de canções que as Pequenas cantoras de Portugal cantaram no García Barbón. Mas os cantos da Natividade foram interpretados como exemplos de umas conferências de Filgueira Valverde sobre o Natal, obviamente dadas no mês de dezembro. É meses antes, em abril do 1957, que os cantores viajam a Madrid para atuar durante a Semana Santa na igreja paroquial de San Agustín e na igreja da Cidade Universitária, além de participar na retransmissão radiofónica de Radio Madrid ou Radio Nacional de España, segundo as fontes. 

«Los cantores del Instituto de Pontevedra actuarán en la Hora Santa que transmite "Radio Madrid" el Jueves y Viernes Santo desde la Ciudad Universitaria y en las que predicará el ilustre musicólogo Padre Federico Sopeña.
También cantarán los Ofícios del Triduo Sacro: Jueves y Viernes Santo en la bellísima iglesia de San Agustín y el Sábado Santo, de nuevo, en la Ciudad Universitaria.
Aparte las obras clásicas, en especial de autores españoles, destaca y constituye novedad un excepcional conjunto de obras religiosas actuales, escritas casi todas ellas exprofeso para nuestro coro y que han de estrenarse en estas solemnidades de Semana Santa. Fueron dedicadas a los Cantores del Instituto por Joaquín Rodrigo, Cristóbal Halfter, F. Lopes Graca (sic), A. Moreno Fuentes y dos admirados compositores, honra de nuestra ciudad, P. Luís María Fernández y Antonio Iglesias Vilarelle.» El Pueblo gallego: rotativo de la mañana: Año XXXIV nº 11230; 30/III/1958.

Estas peças de Lopes-Graça não podiam ser as da Natividade, as únicas que aparecem em H. y R. Felizmente, no magnífico catálogo do espólio musical do maestro organizado pela professora Teresa Cascudo, encontramos a solução ao mistério. Com a entrada LG 31 recolhem-se Dos cantos religiosos tradicionales de Galicia, para coro feminino a capella, dedicados «Para el Coro del instituto Nacional de Enseñanza Media de Pontevedra».

Na entrevista concedida à revista Ritmo em 1956, Lopes-Graça fala das suas obras mais recentes nestes termos:

«Eso [a redação do Diccionario de Música] me ha impedido el trabajo de cración, que se reduce a dos o tres obritas corales (entregadas a la Coral Polifónica de Pontevedra y a los Cantores de Madrid), a las Melodías rústicas, para piano (que acabo de grabar, con la Sonata número 2, para His Master's Voice); a los 24 preludios para piano, aun en su mayor parte inéditos; en fin, como obra de más empeño, el Concertino para piano, metales, percusión y cuerdas, dedicado a Helena Sá e Costa, y que esta ilustre pianista aguarda oportunidad para estrenar.» Ritmo, Ano XXVII nº 283 1956 Novembro. 01/XI/1956

Posto em contacto com o Museu da Música Portuguesa de Cascais, e depois das ágeis gestões feitas pela sua directora Conceição Correia, a quem agradeço imenso a pronta resposta, teve a oportunidade de ver o manuscrito de Dos cantos religiosos tradicionales de Galicia. 

Capa da cópia autografa LG 31
Colecção Museu da Música Portuguesa

  Íncipit de La Pasión
Colecção Museu da Música Portuguesa

  Íncipit de El Ramo de Pascua
Colecção, Museu da Música Portuguesa

O material tradicional que usou Lopes-Graça pertence ao fundo Casto Sampedro do Museo de Pontevedra e aparece recolhido na tese de doutoramento de Xavier Groba (2012).

I
0487 Xoves Santo "La Pasión" de Cenlle, romance [El discípulo amado]
II
0492.2 Domingo de Pascua, canto do Ramo de Pascua. "Romance religioso" [Rubiá, o máis probable, ou San Cristobo de Cea, ou Os Blancos] 1906

Em conversa com o próprio Xavier Groba, ele lembrou-me que na viagem a Madrid Los Cantores del Instituto gravaram para Hispavox o seu primeiro, talvez único, registo discográfico:

«O luns e martes de Pascua os rapaces gravaron en Hispavox os seus primeiros rexistros discográficos de obras de Tomás Luis de Victoria, música compostelana, música medieval galega e as súas perduracións e villancicos tanto do Século de Ouro como populares harmonizados». Otero Urtaza (2015)

Que eu saiba, estas gravações nunca chegaram a editar-se, pelo que também desconheço se os Dos cantos religiosos... de Lopes-Graça foram interpretadas diante dos microfones de Hispavox.

Conclusões.

A visita a Madrid teve como mestre de cerimónias, nunca melhor dito, ao P. Francisco Sopeña Ibáñez, um dos chefes da musicologia espanhola em tempos do regime franquista. Junto com os numerosos cargos docentes e de gestão que teve na sua dilatada carreira está o de ser pároco da Igreja de S. Tomás, na Cidade Universitária madrilena, um dos lugares onde vão atuar os Cantores. Em H. y E. o P. Sopeña dá a sua singular visão do que foram aquelas jornadas:

«Durante dos años [1957 e 1958], el coro del Instituto de Pontevedra cantó la Semana Santa en nuestra iglesia de la Ciudad Universitaria, haciendo lo que sólo es posible en la adolescencia: rezar y, al mismo tiempo, cantar. [?] Cantan las viejas y entrañables "Cantigas"; cantan la hermosa y lúcida polifonía de Palestrina; cantan, como quien sueña, la canción gallega».

Cunha narrativa um bocado enredada –e até contraditória– o P. Sopeña dá uma definição que para mim é um dos melhores esboços feitos sobre a personalidade do professor José Filgueira Valverde. 

«El Instituto es la obra de una vida derramada en cristiano hasta el máximo: José Fernando Filgueira, que entra en la vida universitaria con una teses colosal sobre "Cantigas" –la tesis de la que hablaba siempre el inolvidable Asín Palacios–, lo dejó todo para ser, incluso desde su hogar, el creador de esta palpable maravilla. ¿Lo dejó todo? No dejó nada: pocas veces vermos más claro esa dialéctica de renuncia y de ciento por uno, mensaje, drama y recompensa de Dios a toda vocación realizada. Porque los libros, la arqueología, las excavaciones, el cancionero, hasta la vitalidad que estremece y que cansa, todo ha sido y es para esa adolescencia a la que asusta, encandila y encauza. Quen en le panorama de vocaciones sacerdotales cuenta tanto el Intituto de Pontevedra, hasta como signo».

Asusta, encandila y encauza, toda unha declaração de princípios dos métodos educativos do franquismo, e um modo muito espanhol de ser contundente com uma oratória em três períodos, tal e como o celebérrimo fija, limpia y da explendor.

O certo é que no seu laborar cristão, o professor Filgueira Valverde realizou ou promoveu algum dos marcos históricos mais importantes da cultura galega do século XX, entre os quais, sem dúvida, lançar pontes imorredouras entre Galiza e Portugal. De 1958, por exemplo, é a sua biografia de Camões em castelhano, com uma edição portuguesa umas décadas depois. Durante os anos que foi Presidente da Câmara de Ponte Vedra, de 1959 a 1968, vai-se celebrar na sua cidade o Festival de la Canción Gallega. Como já tenho contado, a este festival –que como o seu nome indica está dedicado a canções em língua galega para canto e piano– houve seis compositores portugueses a participar: Frederico de Freitas, João de Freitas Branco, Joly Braga Santos, Cláudio Carneyro,  Victor Macedo Pinto e um quase inédito Jorge Rosado Peixinho. As gestões pessoais de Filgueira tiveram que ser decisivas para que este pequeno grupo de maestros portugueses participaram no festival junto com mais de setenta compositores de nacionalidade espanhola. Quando redigi o meu estudo sobre o festival fiquei surpreendido pela ausência de Lopes-Graça. Agora que conheço da presença da dedicatória de Dos cantos religiosos... a minha estranheza é ainda maior. 

Fica claro, então, o papel importante que no relato sobre a receção em território espanhol da obra de Lopes-Graça teve o coro dos Cantores del Instituto de Pontevedra e como sempre, eis a presença de Filgueira, surgindo como Deux ex machina, para dar uma solução lógica ao problema exposto.


Fotografia dos Cantores tirada ante a porta da Igreja de San Agustín de Madrid. 1958 H. y R.
Por cima dos meninos vestidos de coroinhas o coro feminino que interpretou Dos cantos religiosos tradicionales de Galicia. Entre a raparigada aparece um padre, que pudera ser Francisco Sopeña.

Bibliografia:

CASCUDO, Teresa (1997) Fernando Lopes-Graça. Catálogo do espólio musical. Cascais, Museu da Música Portuguesa
d. P. ORJAIS, José Luís «Compositores portugueses no Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra» Opúsculo das Artes nº2 Abril, 2013 [Revista Digital]
GROBA, Xavier (2012) Casto Sampedro e a música do cantigueiro galego de tradición oral. Redondela, Concello de Redondela. [Tese de doutoramento]
GROBA, Xavier (2015) Xoán Tilve, Gaiteiro de Campañó. Compostela, aCentral Folque.
OTERO URTAZA, Fernando (2014) «Un legado de Filgueira: Os Cantores do Instituto», en Cadernos Ramón Piñeiro, XXXI. Compostela, Xunta de Galicia.
(1965) Los cantores del instituto de Pontevedra. Historial y repertorio. 1956-1963. Pontevedra, Imp. Lib. Paredes Valdés.

3 comentários:

Margarita Viso disse...

Maxistral traballo!
Parabéns!

José Luís do Pico Orjais disse...

Obrigado, mestra.

Anónimo disse...

Muito interessante, meu... visitar este blogue é sempre uma delícia...

Apertas,

Ernesto