sábado, 19 de setembro de 2009

nº 67 [de]construçom de Susana Sánchez Aríns

Faz um par de semanas peguei na bicicleta para dar um passeio pelos montes próximos ao Lioira. Estou a procura dumas rochas das que me falou um velho amigo que de moço andou o mato tudo à procura de pastos para as vacas. Dera só umas poucas pedaladas quando uma montra chamou a minha atenção, o que me fez descer da bicicleta e entrar na loja por ver se no seu interior haveria algo do meu interesse.

Naquela livraria só encontrei fome de livros. As prateleiras estavam nos ossos e mais que nenhuma, aquela que alojava a secção de poesia. Todos os volumes, quer dizer, os quatro ou cinco que lá estavam, eram da editora Espiral Maior. Peguei neles; fui dando-lhes uma ligeira vista de olhos até que na solapa dum daqueles espécimes em risco de extinção pude ler: "Susana Sánchez Arins (Vila Garcia de Arousa, 1974), licenciou-se nas filologias Hispânicas e Portuguesa na USC e na actualidade é professora de Ensino Secundário na Ilha de Arousa."
Sempre que entro numa livraria compro um livro. Às vezes tardo em escolher, pois nestas lojas pouco fornecidas não sempre é doado encontrar algo bom. Neste caso chegou com ler o de que a professora leccionava na Ilha de Arousa.

(Abro uma parêntese para dizer que a moça que atendia detrás da banca era ela mesma um formoso poema. Tinha uma beleza exótica, pouco comum nestas terras célticas de Rianjo, pelo que me permito compara-la a um verso caucano de Avilés de Taramancos.)

Meti o livro na mochila e fui caminho das alturas, numa cima desde a que podia ver a Mãe Ria com a Arousa acomodada no seu útero. Lá, sozinho, li os primeiros versos, as primeiras páginas dum poemário cujo título [de]construçom evocou-me subitamente a filosofia críptica de Derridá ou a culinária de Ferrá Adriá. Acho que a poeta Susana Sánchez tem algo de ambos os dois alquimistas.

Precisamente, a filosofia deconstructivista de Derridá proclama que não existe uma única leitura dum texto literário e que qualquer de estas leituras jamais logrará abranger o texto na sua totalidade. Portanto, não vou entrar numa análise em profundidade do livro de Susana, só direi que gostei imenso porquanto acho que se trata duma obra sincera e metodicamente alicerçada.

As vivendas, também como as pessoas, podem ser deconstruídas. Antigamente, não sei se agora se segue a fazer, os mestres canteiros numeravam as pedras para desmontar uma vivenda ou parte dela, para assim saber como encaixar novamente o quebra-cabeças. Eu tenho visto, acho que todos temos visto, alguma edificação cheia de números pintados nos perpianhos. Com este sistema tão primitivo foi possível desmontar claustros de mosteiros, como o de Toxos Outos, hoje num centro escolar privado de Noia ou a monumental igreja de S. João de Porto Marim.

As pessoas somos deconstruídas de dentro para fora, vão-nos sacando a alma pela boca, como se estivéramos ante um malvado demo gótico ou o coração, para ser dissecado e embalado num vaso canopo qualquer. A minha alma e o meu coração voaram faz tempo, mas recebi outra alma e outro coração ganhando, isso sim, com o intercâmbio.

Diz a poeta neo-carcamã que quando o mundo sobra/ os lençóis são útero. Posso perceber a solidão duma cama esvaziada como com uma trincha a lastimar a cerna dura. Posso perceber a sua angústia a lançar um grito desesperado como este: e já serás só química do adeus. Posso ser vulnerável mas nunca experimentei o des-amor, pois só amei a quem me ama, e esse nosso amor é eterno. Por isso, volvamos a Derridá, o verso é sempre polisémico, porque no poema que lemos, intuímos apenas aquilo que nos tocou viver.

E como mostra, esta Oferenda da Susana Sánchez, uma pérola de sensibilidade deconstruída:

Oferenda

e nas ruínas da minha intimidade
cinzenta e derrubada
estúpidamente continuo
a edificar palavras

que acolham na cova das maos

esse espaço

tam branco e tam calmo

que te quero destinado.


SÁNCHEZ ARÍNS, Susana (2009) [de]construçom [Espiral Maior; A Corunha] p. 66
XXI prémio nacional de poesia Xosé María Pérez Parallé.

2 comentários:

dedoscomovermes disse...

obrigadíssima [sobretodo polo de neo-carcamã].
Provavelmente neste mês apresentemos [de]construçom na Arousa. E bom momento para vires de visita.

José Luís do Pico Orjais disse...

Se posso, estarei.