domingo, 11 de janeiro de 2009

nº 10 Amo-te Teresa

O 2008 foi, falando em termos estritamente musicais, um ano esplêndido para mim. Apôs tomar posse faz quinze anos duma vaga de professor de primário, a minha relação com o mundo da música fica num plano meramente teórico. Durante este tempo dei aulas, investiguei, escrevi muito, mas afastei-me radicalmente dos cenários. Suponho que depois de começar tão novo um chega a empanturrar-se de tal jeito que mesmo pode aborrecer o que durante tanto tempo amou profundamente.

Porém, até a mais forte indigestão, se é que não te leva a tumba, tem por força que passar alguma vez. E a mim passou-se-me neste 2008 no que teve ocasião de me voltar a sentir músico ao lado de algumas das pessoas a quem mais estimo nesta profissão.
Comecei o ano fazendo uma pequena turnê por Galiza acompanhando a cantadeira María Manuela. Cada vez que vou tocar com ela sinto que de algum modo estou a ser protagonista activo da história da música popular do nosso pais. Ela é um exemplar, infelizmente em extinção, de pessoa dada em corpo e alma a cultura do seu pais. Durante os seus muitos anos de cantadeira, o seu primeiro single é do 1974, jamais deixou de cantar em galego, desistindo das muitas ofertas que teve para o fazer em castelhano. Alem disso, foi das primeiras, quiçá com o Xoán Rubia, em incorporar ao seu repertório peças trazidas de Portugal. No caso do cantor de Mugardos, lembrar a formosa versão de Maria dos Vozes na Luta.

A família que acompanhamos a Manuela somos o Xurxo Varela, o seu filho, grande experto em música antiga, Paco Barreiro, excelente guitarrista e um dos melhores dubladores de vozes para o cinema e a T.V. da nossa terra, Manuel Dopico, meu irmão, o depositário de tudo o talento que guardavam os cromossomas dos meus pais, e eu mesmo.

No verão teve ocasião de tocar com o grupo do luthier e viola Francisco Luengo, Malandança. O repertório girava entorno às cantigas de Martim Codax, cantadas pela voz espectacular de Paulina Ceremużyńska. Durante anos esteve muito interessado no pergaminho Vindel como documento fulcral na historiografia musical galega. Desde o seu descobrimento pelo antiquário madrileno até a sua localização actual na Pierpont Morgan Library, este pequeno troço de vitela teve uma vida bem curiosa. Agora não só ia poder reflexionar sobre o documento, senão que colaboraria numa performance pública destas melodias recuperadas. O lugar escolhido foi a universidade laboral de Gijón, uma construção franquista a médias entre o kitsch nazi e a estética EXIN Castillos.

No último trimestre do ano vieram os concertos mais emotivos.

- O 14 de Novembro presentávamos no meu colégio um C.D. que nos mesmos produzimos, Son de Rianxo. No remate do acto pedi a Pepe Romero filho que tocara alguma peça do seu repertório, acompanhado por José do Rio do Anjo ao bombo e eu mesmo no tambor. Para mim foi uma breve mas muito emotiva actuação. Eu nunca tocara com o mestre Pepe Romero, apesar de anos de amizade, pelo que fiquei muito honrado e aguardo que ele saiba o muito que para mim significou a sua presença entre nós aquele dia.


- O 28 de Novembro, os companheiros do grupo Leixaprén voltamos subir juntos a um cenário apôs mais duma década... e tinha de ser na Ilha. Recuperamos os sons já quase esquecidos para rejuvenescer uns quantos anos com a magia ainda intacta do grande mestre de cerimónias: o Gaitropos.

- O 4 de Dezembro, no teatro Jofre, numa produção da TVG, homenageamos a María Manuela por toda uma vida de carreira musical. Lá estiveram Mini e Mero, Pilocha, Uxia Senlle, Xoán Rubia, Ugia Pedreira, Guadi, Paloma Suances, Susana Seivane e um grupo de músicos dirigidos por Xurxo Varela e Nani García. Quando fazes parte duma banda que tem de acompanhar a um pessoal como este, cada instante que vives é uma experiência única, uma aprendizagem impagável e um antídoto contra a depressão patriótica.

- O 30 de Dezembro, teve a honra de tocar na Sé de Compostela o Ordo Profetarum. Substitui ao percursionista habitual, na actuação mais complexa e extenuante da minha vida profissional. Para mim foi um desafio integrar-me num espectáculo perfeitamente estruturado, com uma arquitectura perfeita na que eu só podia pretender não incomodar, jamais ser brilhante. A coisa decorreu bastante bem, não fiz demasiado ruído, pelo que posso dizer que em termos gerais fiquei satisfeito. Mas o verdadeiramente indescritível e o facto de tocar na Sé uma música tão formosa. O meu ateísmo não me inabilita para sentir o peso que Compostela e a sua catedral tem na história do nosso país. Como galego, senti que por um instante estava a ocupar um lugar privilegiado, o altar que outrora ocupara Gelmírez, naquele no que fora coroado o rei Afonso VII. Vestido como estava com roupa talar e malhas, senti vontade de ser um cruzado da causa galega, um adiantado a defender desde o púlpito a nossa soberania. Mas desisti ante a hipótese de que o pessoal achara que estava a ver um comercial de Gadis.


Bom, rematou o meu Annus Musicalis, fui feliz, amei e sonhei, sementei e recolhi, e disse muitas poucas vezes o mais importante que podia dizer: Amo-te, Teresa.





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