- Esta não é leitura para os miúdos.
Desde esse mesmo momento aquele livro foi considerado objectivo número um. Cada vez que ficava sozinho ia ao quarto e pegava nele, lia umas páginas e o devolvia procurando não alterar a cena do crime que acabava de cometer. Com cada folha aguardava encontrar aquilo pelo que o meu pai decidira incluir o livro do Neira Vilas no Index Librorum Prohibitorum, mas nada parecia justificar medida tão radical. Suponho que eu estava à procura de sexo ou crimes atrozes que não chegavam nunca. Mas o livro foi-me engatando e alguns parágrafos ficaram em mim para sempre e, principalmente, um que dizia assim:
«Esta noite, Ramón chegou a morada do Daniel o jornaleiro, disposto a contar-lhe a inquietude que o aburava. Ainda que não havia entre eles um vencelho de amizade, um leva-e-traz de segredos e palavras em murmúrios, tinham-se apreço e uma mais certa que expressada estima de homens que no ar ventam o poder canjar nalgum intre.
Pegaram em candanseu talho, fechou-se por dentro a porta, trás da cal havia pendurado o retrato dum homem de barba cumprida.»
Os protagonistas do parágrafo anterior são o Ramón, pai do Moncho e o Daniel, ambos os dois militantes antifascistas. No romance que acontece durante a Guerra Civil, conta-se a história dum menino que vai a descoberta dos segredos da existência humana em tempos de dor extrema.
Já de adulto, recuperei a leitura desta pequena jóia literária e compreendi os verdadeiros motivos que houve para que fosse censurada. Recém estreada a democracia, na altura do golpe de estado do Tejero e do Milán del Bosch, quem sabe os medos que os militares democratas como meu pai albergariam. A conversa clandestina do Ramón e do Daniel presididos pela foto dum barbudo, quiçá Marx ou Bakunin, lembravam uns tempos aos que alguns, como os assaltantes do Congresso, quiseram voltar.
Assim, no quarto de casal dos meus pais havia duas armas escondidas. A regulamentária dos repressores, e mais uma, carregada permanentemente de futuro.
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