sexta-feira, 21 de novembro de 2008

nº 08 Leitura das leituras 2

Aqueles anos do Moncho (1977) [Akal; Madrid]
No quarto dos pais há sempre gavetas proibidas. No do meu, militar de profissão, havia uma proibidíssima onde guardava uma Star de nove milímetros fabricada em Eibar e com empunhadura de nácar. A pistola estava escodida no armário, oculta entre a roupa branca. Lembro-me de aquele dia que de joelhos e diante da gaveta aberta, introduzi a mão entre os lençóis até sentir o frio do aço do cano.

Para então, já descia pela minha fronte um suor frio, batia o coração como um pisão da frágua e não sei como naquele mesmo instante não cai ao chão desmaiado. Muito devagar peguei na culatra, arrastando a pistola até que ficou ante mim despida e trémula. Apenas um segundo, o intervalo que tardou em fazer o caminho de ida e volta. Esta foi a única vez que teve entre as minhas mãos uma arma de fogo.

Uma vez, a procura de qualquer coisa, remexia no conteúdo da mesinha-de-cabeceira, enquanto meu pai, deitado na cama, olhava para mim. Entre um inúmero de objectos fascinantes havia um livro com uma capa de impacto: Aqueles anos do Moncho. Um pequeno ajoelhado e abraçado a outra criança um bocadinho maior, um homem deitado numa poça de sangue, a folha queimada e, no fundo, os troncos derramados dumas árvores. Meu pai, que até então não se incomodara muito em que remexera nas suas coisas, alterou-se quando, curioso, me pus a dar uma vista de olhos no livro. Ele diz para mim em tono muito grave:

- Esta não é leitura para os miúdos.

Desde esse mesmo momento aquele livro foi considerado objectivo número um. Cada vez que ficava sozinho ia ao quarto e pegava nele, lia umas páginas e o devolvia procurando não alterar a cena do crime que acabava de cometer. Com cada folha aguardava encontrar aquilo pelo que o meu pai decidira incluir o livro do Neira Vilas no Index Librorum Prohibitorum, mas nada parecia justificar medida tão radical. Suponho que eu estava à procura de sexo ou crimes atrozes que não chegavam nunca. Mas o livro foi-me engatando e alguns parágrafos ficaram em mim para sempre e, principalmente, um que dizia assim:

«Esta noite, Ramón chegou a morada do Daniel o jornaleiro, disposto a contar-lhe a inquietude que o aburava. Ainda que não havia entre eles um vencelho de amizade, um leva-e-traz de segredos e palavras em murmúrios, tinham-se apreço e uma mais certa que expressada estima de homens que no ar ventam o poder canjar nalgum intre.
Pegaram em candanseu talho, fechou-se por dentro a porta, trás da cal havia pendurado o retrato dum homem de barba cumprida.»

Os protagonistas do parágrafo anterior são o Ramón, pai do Moncho e o Daniel, ambos os dois militantes antifascistas. No romance que acontece durante a Guerra Civil, conta-se a história dum menino que vai a descoberta dos segredos da existência humana em tempos de dor extrema.

Já de adulto, recuperei a leitura desta pequena jóia literária e compreendi os verdadeiros motivos que houve para que fosse censurada. Recém estreada a democracia, na altura do golpe de estado do Tejero e do Milán del Bosch, quem sabe os medos que os militares democratas como meu pai albergariam. A conversa clandestina do Ramón e do Daniel presididos pela foto dum barbudo, quiçá Marx ou Bakunin, lembravam uns tempos aos que alguns, como os assaltantes do Congresso, quiseram voltar.

Assim, no quarto de casal dos meus pais havia duas armas escondidas. A regulamentária dos repressores, e mais uma, carregada permanentemente de futuro.

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