quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

nº 261 Seguindo os passos de Castelao por Bruxelas II


Os velhos mestres 

«Eu non sei saír do Museo antigo. Pásame eiquí o que me pasaba no Museo do Prado que non podía saír diante dos cadros de Patinir; pois ben eiquí as pernas non me levan fora das salas dos primitivos. Eu coido que se tivese algún cadro distes na miña casa min saia dela nin tampouco pintaba e ó mellor volvíame parvo». p. 185 Diario 1921

Hoje iniciamos o nosso passeio pelos Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique, visitando o de Magritte e o dos velhos mestres. Neste último, senti o mesmo que Castelao, a paz uterina de quem vive num espaço protegido, absolutamente a salvo da mediocridade estética do mundo polo que circulamos. Tudo o que vejo alimenta-me e, ao mesmo tempo, reconcilia-me com os humanos. Para o artista Rianxeiro, estar na casa de Brueguel, Bosch ou Huys deve ter sido como conhecer os seus distinguidos antepassados.

Em 1921, Magritte era um jovem de 23 anos que trabalhava numa papelaria. Não creio que Castelao conhecesse o trabalho limitado que o pintor belga tinha naquela época, mas de ter visto os seus desenhos, como os dos cartazes publicitários, tenho a certeza que se teriam dado bem. 

Cartaz de Allumettes Record
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

O resto da exposição Magritte teria muito a comentar, mas agora estamos a falar de Castelao. Precisarei de mais de uma visita para poder comentar todas as obras resenhadas no Diario, mas nesta primeira, as pinturas vieram ao nosso encontro como se Castelao tivesse deixado escrito na parede: eu estive aqui. 

A primeira das telas que reconhecemos foi a Pietá de Rogler van der Weyden (ca. 1399-1466). Deste autor também se mencionam, entre outros, um Calvario e o Retrato de Antoon van Bourgongië.

«O seu cadro “Calvaire” é unha maravilla; o Cristo é dun deseño perfeuto e a Virxen vestida de azul e San Xoán é moi simpático; o San Xoán do painel dereito (o cadro é un tríptico) é dunha beleza singular. A “Pietá” tamén é ademirabel; sobor dun fondo de aurora ou serán amarelento as figuras cheas de dor; a Virxen bicando a cara de Cristo coa tesura da morte. […] Ten, ademáis un retrato mañífico anque perde un pouco à beira dos de Memlig». Diarios 1921 p. 194

Calvaire
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Pietá
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Retrato de Antoon van Bourgongië
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Do tríptico de As Cenas das Tentações de Santo António parecem existir dezenas de exemplares. Algumas fontes, suponho que interessadas, consideram esta de Bruxelas a mais detalhada. Já conhecia as cópias de Madrid e de Lisboa, e a verdade é que não me sinto qualificado para fazer qualquer tipo de julgamento sobre o assunto. O que posso dizer é que, mais uma vez, senti-me privilegiado por estar fronte a um fragmento do meu imaginário particular.

As tentações de Santo António
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Desenhos de Castelao no Diario 1921

    
Fragmentos   

Desenho de Castelao no Diario 1921 
 
Fragmento

«O cadro de Bosch está cheo de humor e de caricaturas xeniaes; verdadeiramente san Antón non podía meditar à beira de tantas cousas divertidas. E logo non hai duas, nin três, nin catro: hai un cento. Asombra o inxenio de Bosch ollando iste cadro, tan bem pintado ademáis e cun paisaxe fermosísimo. Copie três couss que deixo pegadas eiquí. A 1ª é unha figura peluda que vai na popa dun barco moi divertido, leva unha espada espetada nunha perna ó xeito valente, do cú saille un garabullo e no garabullo leva un paxaro encoiro que lle dá peteirazos a unha vella que anda aboiada. A 2º é ise bandullo cun coitelo espetado; é unha cousa bem eispresiva e dun gran huorismo. A 3ª. É xenial; o aspeuto da figura que vai diante co moucho na cabeza fai rir; o tipo que vai detrás é dun huorismo fondo, é un lombudo e coxo ó mesmo tempo com aspeuto de proe de pedir, coa sua zanfona pendurada. Pis bem ista figura ten un detalle de humorismo que non o imaxinaría o mellor humorista inglés: iste malpocado é coxo porque ten… ¡un clavo espetado no pé! ¡É colosal!». Diario 1921 p. 181

Por hoje basta, amanhã mais, porém, não quero terminar este post sem mostrar uma imagem que, assim que a vimos, deixou-nos impressionados a mim e à Tero. É uma pequena pintura de Brueguel II intitulada A Procissão. 

As tentações de Santo António
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique

Desenho de Castelao
Que San Roquiño nos liberte de médicos,
abogados e boticarios! 

E aqui o dilema. Supostamente, o desenho de Castelao é anterior à visita a Bruxelas. É tudo uma casualidade? Que opinem os sabidos, que eu não sei.

E até amanha, que, parafraseando a Castelao no Diario, estou canso e dói-me a cabeça.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Nº 260 Seguindo os passos de Castelao por Bruxelas I


Passo este Natal, com a minha família, em Bruxelas, uma estadia que aproveitámos para seguir os passos de Castelao, na sua viagem a estas terras em 1921. O diário em que o artista Rianxeiro registou as suas impressões sobre a cidade, os seus monumentos e obras de arte, é um magnífico guia de viagem. 

Neste primeiro passeio pelo centro histórico encontrámos La Grande-Place, um espaço que já tinha visitado na adolescência, e que agora me parecia consideravelmente mais pequena. A primeira vez tive a sensação de estar no interior de um relicário gótico, decorado em latão e prata dourada por um joalheiro extraordinário. Desta volta, a sensação não foi muito diferente.

A Castelao a praça deixou-lhe com a boca aberta:

«É unha plaza chea de carauter cos seus edificios de pedra com dourados e as tendas de flores no medeo. Logo aquilo fálanos, ó esprito, dos tempos idos, cando o traballo estaba cheo de dinidade e cando a libertade adeministrativa e o arredismo cultural chegou a ter os seus mártires».

Os mártires aludidos devem ser Henri Voes e Jean Van Eschen, os primeiros protestantes queimados pola Inquisição e os Condes de Horn e de Egmont, decapitados, este último o protagonista da opus 84 de Beethoven. Estas execuções tiveram lugar em La Grand-Place, como consequência do fanatismo religioso da monarquia espanhola.

A procura da verdade

«Na Gran Plaza e nunha das “Maisons des Corporations” vin unha Verdade em pedra. Ista Verdade está a medeo vestir como a Venus de Milo; na man izquerda ten un libro aberto, o dedo índice da outra mán está pousado enriba dunha das páxinas do libro; o pé da Verdade está unha águia de pedra dourada. É certo que ista Verdade é un pouco más vella que as de Paris: pero ¡qué diferente concepción da Verdade! ¡O qué vai de tempos a tempos e de pobos a pobos!». p. 175

O edifício a que Castelao se refere é a chamada Maisón de la Louve (loba), no nº 5, perto da rue de la Tête d'Or. Sobre uma pilastra de pedra está a figura esculpida por Auguste Braekevelt. A inscrição que a acompanha diz: Hic Verum, Firmamentum Imperi, algo assim como: Eis a Verdade, apoio do Império.

Foto: Tero Rodríguez

Outra visita que fizemos foi ao Manneken-Pis, um meninho a urinar, símbolo de uma cidade que talvez pela sua diversidade cultural e religiosa, inscreveu no seu santoral comun, a um sátiro incontinente.

«Fíxenlle unha visita ó Manneken Pis o “plus vieux bourgeois de Bruxelles”. É unha cousa encantadora e dina de sinxeleza flamenga. Mesmo parece que foi il quén inventou a coarteta popular:

Ma nudité n’a rien de dangereux.

Sans péril, regardez-moi faire;

Je suis ici comme l’enfant heureux

Qui fait pipi sur le sein de as mère». Diario 1921 p. 174


A tradução da quadra poderia ser esta:

Não há nada perigoso na minha nudez,

não se preocupe, veja-mo fazer,

estou aqui como a criança feliz

que faz xixi no peito da mãe.


Talvez, Castelao, grande colecionador de postais, encontrou-se com uma como esta. 


Como uma anedota bizarra, encontramos o urinante vestido de Pai Natal. Parece que se acostuma a disfarçá-lo por diversos motivos, possuindo um guarda-roupa com mais de 800 fatos.

Amanhã iremos conhecer o Museu de Arte Antiga que tanto impactou o Castelão. Aí procuraremos as telas que destacou no seu diário.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

nº 259 Isabel Castelo, uma diva na lista da Forbes

 

 Uma diva na lista da Forbes

A primeira vez que me deparei com o nome de Isabel Castelo deve ter sido ao rever a biografia de Teresa Turné, na sequência da minha pesquisa sobre o Festival de la Canción Española de Ponte Vedra. A soprano madrilena, presença constante no concurso de música da capital do Leres, ganhou o Prémio de Canto Isabel Castelo em 1963 ‒talvez ela apenas um accéssit‒, o mesmo que ganhariam vozes tão prestigiadas como a Berganza ou a Orán. Mas foi recentemente que a minha mulher me perguntou se eu sabia alguma coisa sobre a história da Castelo: marquesa, cantora de ópera nascida na Corunha, protagonista com a voz de um famoso anúncio de televisão e integrante da lista da Forbes como uma das grandes fortunas de Espanha. Devo dizer que depois de tantos anos estudando e escrevendo sobre a música do meu país, e especialmente as mulheres músicas, o meu orgulho sofreu um duro golpe. Quase não sabia nada além da existência de um prémio que levava seu nome.

Aos poucos fui descobrindo aspetos de sua vida pessoal e, sobretudo, de seu trabalho como cantora lírica que me pareceram relevantes o suficiente para comentá-los aqui, sabendo que a personagem mereceria uma atenção mais demorada de alguém com um tempo do que eu não disponho. Em suma, espero que este artigo sirva para mostrar o meu respeito por uma soprano com um trabalho profissional digno de ser lembrado.

 

Ramón D’Ortega y Hervella, o avó fundador

Ramón D’Ortega y Hervella, fundou em 1920, na cidade de Vigo, a companhia de seguros Ocaso.  Se temos pouca informação biográfica sobre a neta, não temos muito mais sobre o avô. Da mesma forma, gostaria de poder traçar o perfil deste personagem que fundou do nada, há mais de cem anos, um império económico que não parou de crescer até hoje.

O trabalho de Dom Ramón ‒aquele que ele desempenhará até a criação da seguradora‒ era o de tipógrafo, igual ao do também galego Pablo Iglesias, fundador da UGT. Com ideias profundamente progressistas, ingressou na Sociedade Tipográfica (1914) e em 1928 representou a Vigo no XIV Congreso Ordinario de la Federación Gráfica Española, precisamente dependente da UGT, realizado em Saragoça. 

Como tipógrafo trabalhou, entre muitos outros lugares, nas oficinas da revista de Jaime Solá, Vida Gallega.

Do seu espírito progressista, é-nos revelado o facto de em 1912 ter participado, com a quantia de 500 réis, numa angariação de fundos, aberta no Brasil, para ajudar à família de Francisco Rodríquez Pancho, vítima de um homicídio cometido por um clã caciquil da vila de Salvatierra. 

Na Gazeta de Madrid de 23 de junho de 1920, é autorizado o registo da seguradora de Vigo, denominada: Seguro Funerario El Ocaso

Em 1934, Don Ramón aparece como vice-presidente do Partido Democrático Radical da Corunha, formação liderada no Estado Espanhol pelo também tipógrafo e maçom, Diego Martínez Barrio (Sevilha, 1883; Paris, 1962). O executivo da Corunha esteve composto na presidência por César Alvajar; vice-presidente, Ramón D’Ortega; secretário, Ovidio Rodríguez Blanco; o vice-secretário, Manuel Varela Fernández; tesoureiro, Juan Martínez Morás; o contador Francisco Suárez; primeiro vogal, Antonio Domínguez Lamela; idem segundo, Ángel Saavedra Ponte; idem terceiro,  Jesús Mejuto.

Nesta lista encontram-se várias pessoas que, após o golpe militar de 36, serão acusadas de pertencer à Maçonaria, como, por exemplo, César Alvajar, Rodríguez Blanco ou Antonio Domínguez Lamela. O próprio Ramón D'Ortega será obrigado a declarar na sede da Falange, acusado de ser membro da irmandade e, posteriormente, pagará por este motivo, uma multa, muito elevada para a altura, de 10.000 pts.

É possível que a hostilidade de uma cidade nas mãos das milícias armadas dos Caballeros de la Coruña e da Falange, o tenha encorajado a mudar a sua residência para Madrid, onde a sua vida transcorreu discretamente, dedicado a seus negócios, até à sua morte em 1950.

 

Ramón D’Ortega y Hervella
Escultura de Juan Cristobal, 1951
Fonte: https://juancristobalescultor.es/

 

Concepción D’Ortega López. O início do matriarcado

Em junho de 1962, Concepción D’Ortega, herdeira do império Ocaso, em trânsito para a Argentina, fez escala no Brasil. No documento emitido pelo consulado brasileiro em Madrid consta que a sua profissão era a de prendas caseiras. Em realidade, ela era a legatária da empresa fundada polo seu pai, e a iniciadora duma saga que transmitirá o património de filha única em filha única até os nossos dias. 

Conchita D’Ortega nasceu em Madrid o 25 de Junho de 1905. O nome de sua mãe era Isabel López Briceño (1874-1974), uma mulher nascida na Câmara Municipal de Tielmes, Comunidade Autónoma de Madrid.

 

Concepción D’Ortega acompanhada de seu pai Ramón D’Ortega.
Vida Gallega. Ano XIII Nº 168

 

Em maio de 1928, casou com Santiago Castelo Cortés (A Corunha, 26 de junho de 1903; Madrid, 18 de junho de 1986) na igreja de São Nicolas da Corunha. O Santiago era filho de Manuel Castelo Rey (1864-1934), oficial do registo civil, e de Agustina Cortés Ramos (1863-1944). A ele é creditada a ascensão da seguradora, da qual foi presidente do Conselho de Administração no período de 1952 a 1971, bem como a diversificação dos seus negócios.

 


"Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965," Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (National Archives, Rio de Janeiro) in familysearch.org

 

Isabel Castelo D’Ortega.

O 19 de junho de 1929 nasce, na Corunha, Isabel Castelo D’Ortega, a principal protagonista do nosso artigo. 

 

 
Isabel Castelo, com 2 anos. 
 Vida gallega : ilustración regional: Ano XXIII Número 504 - 1931 novembro 30

 

Enquanto se aguarda uma investigação mais aprofundada nos arquivos das escolas da Corunha e do Conservatório Superior de Madrid, pouco podemos acrescentar sobre a formação musical da Castelo, além do que ela própria declarou na imprensa ‒ou possa testemunhar qualquer dia‒ se tiver vontade de fazê-lo. Aos dez anos, a família mudou a sua residência da Corunha para Madrid, pelo que é possível que tenha recebido as primeiras aulas de música nas margens do Orção. De ser assim, com toda probabilidade, seria aluna da tiple Bibiana Pérez Mateo (1865-1950). 

Entre as professoras que menciona, maioritariamente do Conservatório de Madrid, destaca-se Mili Porta (A Coruña, 1918; Madrid, 1971). Esta pioneira na regência de orquestra foi uma das fundadoras do coro Anaquiños da Terra, sociedade formada por membros da comunidade galega da capital espanhola. Como mecenas, Isabel Castelo teve alguma relação com esta entidade, da que foi madrinha.

A sua professora de canto, como a da maioria das cantoras da sua geração, foi Lola Rodríguez Aragón (1910-1984), fundadora da Escuela Superior de  Canto. 

Por fim, Isabel Castelo confessa ter sido aluna de Carlota [Charlotte] Dahmen (1884-1970), soprano especializada em Wagner e Strauss, que no final da vida se dedicou a dar aulas privativas de canto na capital de Espanha. Carlota Dahmen casou em 1916 com seu professor, o galego-cubano Eladio Chao Sedano (1874-1951). Quando questionada por uma jornalista sobre o que as suas professoras pensavam da sua voz, a resposta da soprano galega foi esta:

«La primera [Mili Porta] decía que me tenía que meter el temperamento en el bolsillo, y la segunda [Carlota Dahmen] que tengo demasiada voz». El Ideal gallego. 25/05/1955 p. 10

Isabel Castelo casa em dezembro de 1950 com o tenente de navio Ángel de Mandalúniz y Uriarte, surpreendentemente, apenas dois meses após a morte do avô Ramón D'Ortega, fundador da seguradora Ocaso. Na altura tem 21 anos e, como ela mesma confessa, abandonou a carreira musical para agradar o marido, portanto, seriam poucas as suas apresentações públicas antes do casamento.

 

"Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965," Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (National Archives, Rio de Janeiro) in familysearch.org

 

A síndrome da mulher casada levou inúmeros grandes talentos a abandonarem prematuramente a profissão, privando a humanidade, também composta por homens, do fruto de anos de estudo e dedicação. É por isso que o patriarcado, implacável com as mulheres, é também extremamente prejudicial para os homens. E embora nesta sinistra costume de cercear carreiras profissionais para criar donas de casa submissas e devotadas, não faltem exemplos tanto em lares conservadores como progressistas, a verdade é que a figura de Isabel Castelo foi apresentada como o modelo apurado de mulher do regime, como se pode ver na seguinte manchete de El Ideal Galego que não deixa margem para dúvidas.

 

El Ideal gallego : diario católico, regionalista e independiente: Año XXXIX Número 11874 - 1955 mayo 25 

 

A herdeira de uma das grandes seguradoras de Espanha não tem nome, referem-se a ela como “uma jovem da Corunha”. Além disso, destacam o facto de que para criar o prémio mais importante de Espanha «foi autorizada pelo marido», ninguém vaia pensar que ela age de motu proprio.

As frases finais deste artigo, colocadas na boca de Isabel, são definidoras: 

«Hay que preparar un refugio para las horas de dolor y de tedio, y eso sólo se encuentra en la religión y en el arte».

 

O Premio Isabel Castelo

Na Ordem de 12 de agosto de 1955, publicada o 1 de setembro do mesmo ano, dá-se a classificação da Fundação Isabel Castelo como benéfico docente de carácter particular. Parece que este facto foi conseguido em tempo recorde, já que o pedido feito por Ángel de Mandalúniz y Uriarte levava data  do 17 de junho anterior.

O fim único da fundação era o de 

«otorgar un premio de enseñanza de Canto, ya que su propósito es fomentar la enseñanza de este arte, estimulando la formación de futuros valores nacionales, y al mismo tiempo honrar la vocación de su esposa, doña Isabel Castelo D’Ortega. consagrada a cultivarlo». 

Por este motivo, a fundação contava com um capital nominal de 200.000 pesetas. com o qual seria atribuído um prémio anual, entregue o primeiro de março, de 20.000 pesetas, na primeira vez, e 7.000 nas convocatórias subsequentes. Em realidade, logo passou a ser definitivamente de 20.000.

Poderão aspirar ao prémio

«los cantantes de ambos sexos que no hubieren  cumplido cuarenta años de edad y que hayan obtenido de sobresaliente en los exámenes de convocatoria oficial y libre, correspondientes al final de la carrera de Canto celebrado en el Conservatorio de Música de España donde estén establecidos dichos estudios, con anterioridad no superior a cinco años y con relación a la fecha en que se celebre el concurso».

Na verdade, até onde sei, os prémios só foram atribuídos a vozes femininas. Na Ordem também se detalha a composição do júri.

«[...] el Director del Real Conservatorio de Música de Madrid, como Presidente; la fundadora o persona en quien ella delegue, como vocal primero, eligiéndose a su fallecimiento de entre los herederos, si hubiere varios en igualdad de condiciones, al más idóneo, con la intención y significación del premio: un académico de la Sección de Música de la Real Academia de Bellas Artes de San Femando como vocal segundo; los dos Catedráticos más antiguos de la Enseñanza de Canto, y el Catedrático más antiguo de la Enseñanza de Armonía; ocupando sus puestos los tres Catedráticos—del Real Conservatorio de Música de Madrid—, por orden de antigüedad, v finalmente un Catedrático o Profesor especial del Real Conservatorio de Música de Madrid, designado por la fundadora, que hará de Secretario, teniendo todos los miembros del Tribunal voz y voto».

Além do prémio monetário, as vencedoras receberiam um diploma e uma medalha com a efígie de Isabel Castelo, sendo obrigadas, em troca, a realizar um concerto solidário no local e dia que a fundadora decidisse.

 



Medalha Prémio de Canto Isabel Castelo
 Escultor Juan Cristobal (1896-1961)
 Fonte: https://juancristobalescultor.es/

 

Isabel Castelo vangloriou-se de que o seu prémio tinha um valor financeiro de 20.000 pesetas. em comparação com as 2.000 do Lucrecia Arana, prémio de fim de carreira do Conservatório de Madrid. Obviamente, o prestígio não reside, exatamente, na quantidade de dinheiro que uma vencedora recebe. Em vez disso, deveríamos olhar para o nome das ganhadoras e para a composição dos júris. 

A primeira convocação, proclamada extraordinariamente em janeiro de 1956, correspondeu a Enriqueta Tarrés. Em 1957 foi a vez de Teresa Berganza, facto este que normalmente é omitido nas suas biografias ou dá-se-lhe o valor errado de 1955, quando o prémio ainda nem existia. Outras das vencedoras foram Isabel Penagos, 1958, María Orán, 1968… Em 1960, entre os membros do júri estavam Mili Porta, Lola Rodríguez Aragón e o maestro Guridi.

 

Finalmente, a sua voz

Na década de 60, Isabel Castelo gravou dois discos com acompanhamento orquestral, ambos sob a direção do maestro Pablo Sorozábal. O aval do maestro guipuscoano deveria bastar para credenciar estas gravações, mas a verdade é que cada vinil tem a sua história e, embora neste caso não tenhamos todos os dados, ambos merecem um pequeno comentário.

La canción del Olvido. Libreto de Federico Romero Sarachaga e Guillermo Fernández-Shaw Iturralde e música de José Serrano. 

Regente: Pablo Sorozabal

Maestro concertador: Julián Perera

Diretor de coro: José Perera

Orquestra: Orquesta de Conciertos de Madrid

Coro Cantores de Madrid

Soprano: Isabel Castelo [Rosina]

Barítono: Renato Cesari [Leonello]

Tenor: José María Higuero [Toríbio e Sargento Lombardi]

Hispavox, S.A. 1963 HH 10-228

 


A primeira coisa que destaco neste álbum é a qualidade sonora. Mesmo no meu modesto toca-discos, é surpreendente o quão equilibradas soam as diferentes secções da orquestra, com close-ups de muito sucesso, principalmente, na minha opinião, quando a protagonista é a harpa. Um som magnífico como acostuma a passar com os discos procedentes da casa Hispavox. A título de curiosidade, no caderno interior do LP, somos informados do processo tecnológico inovador com que se conseguiu um som tão sofisticado:

«Al escuchar esta versión de La Canción del Olvido se podrá observar una novedad singular, ligeramente apreciable en su edición monosural y muy notoria en estéreo: la realidad teatral, traducida en un encuadramiento y realce de la perspectiva sonora.

Antes de efectuar la grabación, los equipos artísticos y técnicos de la Empresa han efectuado un estudio cuidadoso de los recursos escénicos, y a ellos han procurado ajustarse con la máxima fidelidad. Como consecuencia, algunos planos sonoros  cercanos se superponen a otros más alejados del oyente, hasta concretar al máximo el contorno de actuación y aún de movilidad de cada personaje [...].

Cantantes, coros, orquesta y director han colaborado eficazmente en esta difícil Grabación Audioscenica, haciendo posible este intento para el que Hispavox, S.A., ha puesto a contribución los más modernos adelantos técnicos».

Renato Cesari, que interpreta o personagem Leonello, é um barítono que me fascina. Ao ouvi-lo cantar uma romanza, às vezes temos a impressão de estar diante de um crooner ou de uma estrela do tango ou da canção napolitana. Em todo caso, sua voz mundana é deliciosa e credível, mesmo quando lhe tocou representar personagens castiços nas muitas zarzuelas que Sorozabal lhe dirigiu. 

O tenor estremenho José María Higuero transmite uma certa angústia, quando presenciamos a sua luta constante, muitas vezes sem sucesso, para encontrar a nota certa nas cadências finais.

E Isabel Castelo? Que podemos dizer dela? Pois bem, a minha impressão é que a sua voz soa afinada; correta na execução; com agudos potentes e bem colocados; com um fiato reflexo da sua grande capacidade pulmonar. Contra isso, um hieratismo que pode irritar, ou fazer com que o espetador implore por um bocadinho mais de salero. Talvez tenha sido esse o aspeto do seu temperamento que a grande Mili Porta recomendou que guardasse no bolso.

De qualquer forma, acho que estamos ante o seu melhor LP.

 

O maestro Sorozabal, o barítono Cesari e os primeiros violinos Luis Antón e Jesús Corvino.

Caderno interior. La canción del olvido. HH 10-228

 

Caderno interior. La canción del olvido. HH 10-228

 

Lírica Española. VV.AA.

Regente: Pablo Sorozabal

Maestro concertador: Julián Perera

Soprano: Isabel Castelo

Introdução: P. Federico Sopeña

Alhambra [Columbia] 1965 MCCP 29,019

 



 
Capa e autógrafo do meu exemplar.
Arq. do Pico Rodríguez

 

Mais uma vez, Sorozábal dirige à Castelo, desta vez para nos oferecer uma seleção de romanzas de zarzuela, na sua maioria, muito populares. É deste álbum que foram recuperadas as músicas ouvidas nas propagandas Ocaso. Começaram a ser emitidas por volta de 2006, sempre apresentando o sol que o fundador da seguradora funerária imaginou pousando no horizonte, figura poética do fim da vida.

Na primeira edição, a música escolhida foi «Romanza de la Duquesa» de Jugar con fuego. Em parcelas sucessivas, utilizaram-se a «Polonesa» de El Barbero de Sevilla, o rondó de El Maestro Camponone ou as «Carceleras» de Las hijas de Zebedeo. Estes anúncios, ou melhor, as suas bandas sonoras, provocaram numerosos comentários críticos na Internet, a maioria deles ao nível da prestigiada ágora digital denominada Forocoches. 

Quanto à atuação de Isabel Castelo, penso que é mais do que digna, e mostra-nos uma soprano solvente e com boa técnica, como convém a quem se formou no Conservatório de Madrid. Mesmo assim, achamos que Federico Sopeña é muito generoso quando diz no texto que apresenta o álbum:

«la voz de Isabel Castelo  escala brillantemente los agudos proprios de las sopranos ligeras, se centra y se agranda para el dramatismo de “Gigantes y Cabezudos” y se abre para “armar jaleo” indispensable que lo castizo pide, pero sin perder nunca esse sello de musicalidad, de rigor que convierte a la romanza de la zarzuela en algo “distinto”». 

Em suma, nem tanto, nem tão pouco.

 

Cancionero Sefardi vol.1

Voz: Isabel Castelo

Flauta: Luis Amaya

Celo: José Mª Alcazar

Percussão: Mª Cruz López de Rego

Arranjo, harmonização e direção musical: Adelino Barrio

Diapasón [Dial Discos S.A.] 1985 52.5089

 

Retrato da contracapa e capa.
 Arq. do Pico Orjais

 

Este álbum seria surpreendente, e até um acerto, se a fascinante Sofía Noel não o tivesse gravado primeiro. Até o repertório é muito parecido com os discos da soprano e folclorista belga. Em suma, os arranjos de Adelino Barrio são elegantes e agradáveis de ouvir, isto se primeiro consegues isolar ‒e a poder ser, eliminar para sempre da tua cabeça‒ a excêntrica pandeira, conseguindo assim se concentrar nos belos acordes da guitarra e nos contrapontos da flauta.

Com a participação da Castelo, o conjunto funciona mais ou menos bem, é gostoso de ouvir, mesmo paga a pena experimentar a sua escuta. Mas a sombra da Noel é tão longa!

 

Para concluir

Dito o que foi dito, espero que ninguém se sinta tentado a pensar que os discos de Isabel Castelo são um capricho de uma rapariga rica. Nada está mais longe da realidade. É evidente que a sua voz não resiste à comparação com a da Berganza ou a de Victoria de los Ángeles, mas quem da sua geração a suportaria? Mas, da mesma forma, é preciso dizer que ela não é pior do que algumas das que saíram da escola de Lola Rodríguez Aragón e que tiveram uma carreira artística com os seus bons momentos, concertos em praças importantes e gravações que hoje continuam a circular, para deleite de nostálgicos, nas plataformas digitais.

É verdade que a figura pública de Isabel Castelo D'Ortega, Marquesa de Taurisano, pode ser pouco atraente para o pessoal por ela pertencer à nobreza, ser uma das pessoas mais ricas de Espanha e por ter aquele vício tão típico das milionárias ‒em muitos casos para limpar a consciência ou o caminho que leva ao céu‒ da caridade piedosa. O que não saberei eu sobre este preconceito sendo como sou ateu, comunista e levando gravado na consciência, aquilo que dizia Marx: de cada um de acordo com sua capacidade, par cada um de acordo com sua necessidade. Mas também qualifica a nossa opinião saber que ela é neta de um tipógrafo afiliado à UGT, criador de uma empresa galega, Ocaso, que foi investigado e extorquido pelo regime franquista por ser membro da Maçonaria. O avô paterno, Manuel Castelo Rey, foi o responsável polo Registo Civil da Corunha que assinou a ata do casamento de Marcela e Mário, ou melhor, de Marcela e Elisa. Também não parece que tivesse aversão a trabalhar com pessoas que não foram afins ao regime imposto por Franco. Pablo Sorozábal, que provavelmente salvou a sua vida graças a amigos influentes, teve que se demitir da Orquestra Sinfónica de Madrid poucos anos antes de gravar com a Castelo, por querer incluir uma sinfonia de Shostakovich no seu repertório de concertos. O próprio Juan Cristobal, criador da medalha que recebeu a vencedora do prémio Isabel Castelo, foi fundador em 1931 da Associação de Amigos da União Soviética. Em quanto o mecenato, Isabel Castelo, por exemplo, colaborou com a Associação dos Amigos da Ópera e o Festival de Ópera da Corunha.  Além disso, em sua cidade existe uma sala no Aquário que leva seu nome, que com certeza, não foi uma homenagem que lhe veio de graça.

Estamos, portanto, ante  uma mulher de contrastes, como todas as que fazem parte da historia de um pais. Ela pertence a uma saga de filhas únicas. Sua mãe e ela mesma, até a morte do primeiro marido, herdeiras legítimas do império familiar, foram apresentadas pela imprensa da época como donas de casa submissas. Porém, ao receber a Medalha da Galiza, no site oficial da Xunta foi possível ler que deixou a música para atender aos seus negócios e não para agradar ao marido, como nos tinham dito. É difícil pensar que uma mulher que vai levar sua empresa a alturas nunca alcançadas, aprendera de repente a ser empresária, após a morte prematura do seu companheiro.

Não procurem por Isabel Castelo na Enciclopedia Galega, no Álbum de Múlleres Galegas ou no Diccionario de la Música Española e Hispanoamericana. Agora, ela gravou dois discos com Sorozabal e criou um prémio que durante alguns anos ajudou a muitas sopranos contemporâneas a lançarem suas carreiras. É difícil documentar todas as iniciativas musicais que tiveram o seu apoio, mas, certamente, o seu patrocínio ajudou a abrir muitos panos em teatros de toda a Espanha. 

Acredito que estudar a personagem, em relação à sua intervenção na música do seu tempo, nos daria uma visão realista de uma geração de artistas líricas que sempre vemos com um certo halo de mitificação e elitismo, e que, no entanto, foram trabalhadoras esforçadas na Espanha castrense e repressiva que o déspota Franco projetou. 

Por fim, e como remate a esta curta biografia da Castelo, permito-me incluir as únicas palavras dela, ditas ou cantadas, que consegui resgatar em galego. São as pronunciadas perante o Presidente da Xunta na entrega das Medalhas da Galiza:

«Graças Galiza, porque nasci na tua terra, nasci no teu chão, no Fogar de Breogão».

sábado, 22 de junho de 2024

nº 258 02 Flexi Disc

 


Bibliografia: 

Antología del folklore musical de España. Primera selección antológica [Grabación sonora]
Autor: García Matos, Manuel 1912-1974 
Editor: Hispavox
Data de pub.:D.L. 1959
Descriçao física: 4 discos : 33 1/3 rpm, mono ; 30 cm+2 livros (34 y 69 p.) 
Fonte: BNE

Antonio Fraguas e a memoria musical de Cotobade
Autor: Groba González, Xavier 
Editor: aCentral Folque, Centro Galego de Música Popular
Data de pub.:[2019] 
Descriçao física: 1 disco sonoro ; 12 cm+1 livro (235 páginas)
ISBN:9788494951183 
Fonte: BNE 

terça-feira, 11 de junho de 2024

nº 257 01. Postal Fonoscope

 


Vídeo em que mostro um postal sonoro que guardamos no Fundo Local do Concelho de Rianxo. Pretendo desta forma dar a conhecer alguns exemplares de documentos sonoros curiosos, tanto pelo seu formato como pelos seus intérpretes ou repertório reproduzido. Espero que sejam úteis.

Errata: Os autores de En er mundo são Jesús Fernández Lorenzo e Juan Quintero.

Bibliografia: BNE

domingo, 10 de dezembro de 2023

Nº 256 Esther Gloria Prieto e os Festivais da Canção


Heterodox@s galeg@s 02

Na década de 1960, no Estado espanhol houve uma eclosão de festivais de música que seguiram o modelo do de San Remo, Itália. A celebração desses eventos logrou descobrir novas figuras da canção, além de agregar alguns sucessos eternos ao repertório. Mas, por trás do puramente artístico, encontramos uma luta entre localidades e áreas geográficas da Península, na procura de aproveitar o chamado milagre turístico espanhol. Assim, os Festivais de Benidorm, do Mediterrâneo ou de Maiorca contavam com o apoio das respetivas câmaras municipais, quando não eram diretamente organizadas por elas. Inclusive, como em Maiorca, as canções tinham a obriga de promover explicitamente os atrativos turísticos da ilha.

Finalmente, o estudo dos festivais é um magnífico observatório para a análise do controlo político exercido por uns e por outros, na aparentemente monolítica ditadura de Franco. O festival de Benidorm, por exemplo, foi criado pola Rede de Emisoras do Estado (REM), grupo controlado polas FET y de las JONS, dependendo diretamente da Secretaria General del Movimiento. Este controlo absoluto durou até à chegada de Manuel Fraga Iribarne ao cargo de Ministro de Información y Turismo. Então, o dinheiro veio deste ministério para quem o lema “divisas para o turismo” era um dogma de fé.

É curioso como um Estado democrático -também em aparência-, como o atual, recupera do ostracismo esta festa com ADN franquista. Igualmente paradoxal é a ingenuidade, se é que houve, do grupo de Tanxugueiras em tentar vencer no referido concurso. O Benidorm Fest é um evento que continua a ser controlado polo REM, chamemos-lhe agora TVE, com a despesa de dinheiro público em benefício das mesmas zonas turísticas de sempre e cum alvo estético ou musical previamente determinado. Nada importa nem o público, nem a crítica, nem a qualidade do produto. O único interesse é a promoção de uma ideia de Estado onde os alalás galegos são supérfluos em democracia, como já foram supérfluos, em ditadura, os lalalás em catalão.

Na Galiza também tivemos os nossos Festivais, algum tão meritório como o do Minho de Ourense. A sua primeira edição ocorreu em 1965, sendo apresentadas 55 canções em espanhol, 19 em português e 17 em galego. É preciso dizer que o jornal La Región fez campanha para que no festival fossem divulgadas letras em galego, numa altura em que apenas Los Tamara tinham dado o passo de cantar na nossa língua, e o casulo de Andrés do Barro ainda estava por eclodir.

Esther Gloria Prieto, pioneira.

Esther Gloria Prieto Alcaraz (Madrid, 31/10/1930*- Valencia, 24/04/2012) nasceu em casa de artistas, sendo seus pais Julío Prieto Nespereira e sua mãe a cantora Paquita Alcaraz. Do pai existem numerosas monografias, catálogos e artigos, sendo desnecessário deter-nos nele. Basta dizer que foi um dos maiores gravadores da pintura espanhola do seu tempo e que era irmão da compositora e pianista Obdulia Prieto.

* Os dados de nascimento e óbito são retirados de sua certidão de óbito. 

Menos conhecida é a figura de Paquita Alcaraz, cançonetista que, apesar da sua curta vida, desenvolveu uma carreira repleta de acontecimentos notáveis. Estreou o filme mudo Alma rifeña (1922) de Juan Buchs e foi Teresa na estreia de El huesped del Sevillano do maestro Serrano.

Após se casar com Julio Prieto Nespereira (1930), a cantora deixou os palcos por um tempo. O fato de ter engravidado imediatamente deve tê-la incentivado a abandonar as tábuas por cerca de três anos. Finalmente decide regressar, mas já não como estrela de teatro musical, mas como liederista, acompanhada apenas por um piano e em espaços íntimos e intelectualmente elevados. Seu último concerto acontece no Lyceum Club Femenino o 30 do março de 1933. Uma despedida carregada de simbolismo, pois o 27 de setembro do mesmo ano morre de septicemia. Gloria tinha, na altura, três anos.



Múndo gráfico, 03/02/1926

Ondas, 03/04/1927

La nación, 02/11/1933


Compositora dos Festivais da Canção.

Esther Gloria Prieto era madrilena de nascimento, educou-se em Madrid e o seu trabalho como montadora musical de TVE sempre se desenvolveu fora da Galiza. Não sei se podemos considerá-la galega porque o pai o fosse. Mas o certo é que sempre manteve uma relação com Ourense, onde vivia a sua família paterna e com Pontedeume, estância de veraneio e vila na que morreu e foi enterrado seu pai. Se a considerarmos galega seria, muito provavelmente, a primeira compositora profissional de canção ligeira do nosso pais. 

Arquivo de TVE
La importancia de llamarse Ernesto. Estudio 1

A sua atividade estará limitada a festivais de música, concursos nos quais podiam ser recebidos importantes prémios em dinheiro; valores que facilmente podiam variar entre trinta e cem mil pesetas na época. Além disso, a canção que ganhava um prémio ou simplesmente tinha sido selecionada, acostumava ser gravada num álbum ou impressa a sua partitura, algo que gerava royalties de imediato.

Aqui fica uma pequena retrospetiva da presença de Gloria Prieto em algum destes festivais.

-Ao primeiro festival ao que acode Gloria é o da Canción de Madrid em 1961, onde obteve o 5º prémio com Sólo quiero olvidar, tendo como letrista a Amado Regueiro Rodríguez, o mesmo que fez a adaptação livre do texto do Hino da Alegria, popularizada por Miguel Rios. 

-Um ano depois, apresentou as suas Canciones Tristes ao prémio Montes do Festival da Canción Gallega de Ponte Vedra, obtendo uma menção honrosa. Embora o género musical deste concurso pontevedrino fosse radicalmente oposto aos até agora mencionados, em alguns aspetos da sua organização eram muito semelhantes. 

-Huella de ti, cantada por Gelu, foi pré-selecionada para o Festival de Eurovisión de 1962 e gravada por Los 4 de Barcelona e Elvira. Também foi impressa pela editorial Quiroga.

-Em 1963 é finalista em Benidorm com Lluvia, da que também era autora da letra. Foi gravada por Fina Galicia para Iberfón.

-7 de julho de 1963. Estreia no Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra de Canções Tristes, pola soprano Carmen Pérez Durías e da pianista Carmen Martín.

-Em 1965 participou no I Festival del Miño com La voz del río, letra de M. Martínez Remis, poeta madrileno, argumentista de filmes espanhóis de baixa qualidade e letrista de alguns sucessos musicais, na voz, por exemplo, de Sara Montiel. Com esta peça consegue o segundo prémio.

-Para a segunda edição do Festival del Miño (1966) apresenta três novas canções: Palabras gastadas e La niña del río, novamente do letrista Martínez Remis e Todo lo que yo sé, com letra e música sua. Com Palabras gastadas ganha o segundo prémio. Foi gravado para a discográfica Berta por Elvira.

-IV Festival del Miño (1968) De tu mano aprendí, letra e música de Gloria Prieto.

-II Festival de la Canción Infantil de TVE. Apresenta duas cançoes, Vamos a contar mentiras, música e letra sua, cantada por Ana Kiro e El Conjunto Sideral, com letra de Marisa Medina, interpretada por Sabrina.

-No Festival de Eurovisión de 1969, na edição que finalmente ganhou Salomé, Gloria poderia ter presentado Mil veces volverías, con letra da televisiva Marisa Medina, mas este é um dado que não posso confirmar.

As divas de Gloria Prieto

Resulta difícil rastrear todos os cantores e cantoras que incluíram músicas de Gloria Prieto nos seus álbuns. Alguns dos seus sucessos foram registados por diversos artistas, a maioria com uma vida profissional não muito longa.

    Cantoras não galegas

  •     Elvira

De todas as suas intérpretes, foi com a cantora valenciana Elvira -que para que não houvesse dúvidas sobre a sua origem era conhecida como La Voz de Naranja- com a que manteve uma relação pessoal e profissional mais intensa. Elvira acabou fazendo parte da família, já que Gloria foi madrinha da sua filha, a dançarina Esther Ponce.

Huella de ti, neste caso cantada por Elvira, é um slow-rock com orquestração de big band. A "voz de naranja", caricaturada desta volta com propositado estilo anglo-saxão, dificulta, em boa medida, a compreensão do texto. Sendo o arranjo musical mais do que correto, e mesmo, a meu ver, não desprovido de beleza, questiona-se como soaria esta peça com a intervenção de gargantas menos maquilhadas como a de Fina Galicia. De qualquer forma, em 1962, esta canção não teve sorte na pré-seleção do Festival de Eurovisão. Ela foi defendida por Gelu de Granada, terminando em último lugar dos dez competidores. Não sei se conta como desagravo patriótico saber que a vencedora, Llámame de Victor Balaguer, ficou em último lugar na fase final realizada no Luxemburgo, sem receber um único ponto do júri.

 


Palabras gastadas mostra algumas chaves do que será o estilo preferido nas composições de Gloria, principalmente uma maior influência da música francesa sobre a anglo-saxónica ou italiana. Se o texto fosse em francês poderia passar por um gémeo em estilo de Ma vie de Alain Barrière ou Capri c'ést fini de Herver Vilard. 

  •     Sabrina

Com as demais músicas selecionadas para o II Festival da Canção Infantil da TVE, 1968, a cantora Sabrina gravou El Conjunto Sideral, música de Gloria e letra de Marisa Medina. Sabrina era presença habitual nos festivais de verão espanhóis, entre os quais, como não poderia deixar de ser, o do Miño (Ourense).

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Ora, sem comentários...

As nossas cantoras

Mas no que diz respeito aos interesses galegos, as suas canções são interpretadas polas mais grandes do seu tempo: Fina Galicia e Ana Kiro.

  •     Fina Galicia

Como já tenho contado neste mesmo blogue, Fina Galicia foi uma das triunfadoras do V Festival da Canción de Benidorm. A artista corunhesa gravou vários EP, com canções próprias do ambiente ye-ye e aperturista da época. Numa compilação das vinte canções finalistas do Festival, Fina Galicia grava LLuvia de Gloria Prieto.



Arq. do Pico-Rodríguez. Fondo Local de Música do Concello de Rianxo

Em Lluvia pudemos ouvir a bela e afinada voz de Fina Galicia, madura apesar da juventude e, ao contrário do que é habitual nos restantes participantes do evento levantino, muito natural. Outra característica das músicas de Gloria Prieto e  presença de introduções instrumentais, por vezes bastante longas, destacando-se algumas de piano, criando efeitos sonoros, como neste caso, evocando nas notas mais altas do teclado o som da chuva batendo no chão ou no vidro.

  •     Ana Kiro



Arq. do Pico-Rodríguez. Fondo Local de Música do Concello de Rianxo

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De tu mano aprendí começa com uma bombástica introdução de piano solo, um tanto Tchaicovskiana, preludiando à voz da Kiro num estilo de canção e desempenho que não a favorece em nada.



Arq. do Pico-Rodríguez. Fondo Local de Música do Concello de Rianxo

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Em Vamos a contar mentiras, a voz de Ana Kiro apresentasse-nos muito próxima, com um carácter otimista, sendo o resultado uma escuta agradável que transmite vibrações muito boas.

  •     Madalena Iglésias

Madalena Iglésias (Lisboa; 24 de octubre de 1939-Barcelona; 16 de enero de 2018), nascida Madalena Lucília Iglésias do Vale, era, como Glória, meio galega. A sua mãe foi a pontevedrina Lidia Garrido Iglesias, refugiada em Portugal devido ao golpe de estado franquista**, que após casar com o almadense José Rodrigues do Vale, vai morar na freguesia portuguesa de Cecilhas. Bayo Veiga, Luís O Pharol, nº 28, ano 11, Novenbro de 2015. p. 3

** Dados oferecidos por Madalena Iglésias em entrevista concedida por Júlio Isidro ao programa Inesquecível da RTP.

Madalena é um ícone da canção, da rádio e do cinema portugues, com uma grande relação com os meios artísticos espanhóis nos anos da sua atividade profissional, décadas de 60-70. Prova disto é que a sua primeira presença na rádio espanhola fosse da mão de Bobby Deglané, sendo apadrinhada por Lucho Gatica e Paquita Rico. 


Mil veces volverías, apresenta, a quem antes não a conhecia, uma Madalena Iglesias no seu papel, com todas as suas virtudes e defeitos. A sua voz profunda, algo abafada, uma atitude hierática, pouco expressiva, mas, ao mesmo tempo elegante e sedutora. Foi uma pena que Madalena não se tenha aventurado mais no território do Fado e da canção folclórica portuguesa, onde a sua voz, na minha opinião, encaixa muito melhor, como demonstra a sua magnífica versão do Fado da Madragoa.

Pré-catálogo de Esther Gloria Prieto.

Amor misterioso
Andrómaca
Arroto com Camilo Williart Fabri
Bárbara com Camilo Williart Fabri
Duérmete bebe. Impresso Ediciones Musicales RCA Española, S.A.
Caminos
Cuatro canciones tristes
O enterro da moza. Letra de Ben-Cho-Sei
Canzón de berce. Letra de José Fernández Méndez
Soedade plena. Letra de Pura Vázquez
A cidá de Santiago. Letra de Federico García Lorca
De tu mano aprendí.. Letra de Manuel Martínez Remis
El conjunto sideral. Letra de Maria Luisa Guiu Medina
Huella de tí. Impresso Ed. Quiroga
Julia com Camilo Williart Fabri
La voz del río. Letra de Manuel Martínez Remis
Lluvia. Impresso Ed. Quiroga
Los veraneantes com Camilo Williart Fabri
Mil veces volverías. Letra de Maria Luisa Guiu Medina
Nocturno. com Camilo Williart Fabri
Palabras Gastadas Letra de Manuel Martínez Remis
Solo quiero olvidar. Impresso Ed. Quiroga
Tus caminos
Y para que? Letra de Milagros Castro Méndez; Impresso Ed. Re-do-la

Conclussoes finais

Este artigo só é uma aproximação ao reportório de Esther Glória Prieto, sendo absolutamente consciente de que o seu catálogo deveu ser significativamente mais cumprido que o aqui exposto. Contudo, tenho a esperança de que seja, quando menos, significativo.
Nesta minha primeira abordagem a dito reportório tiraria as consequências que se seguem:

1º Parece evidente a influência da canção francesa no estilo da Prieto. Talvez, se combinamos isto com a chegada ao Estado Espanhol da onda italiana e anglo-saxona em forma, respetivamente, de canção romântica e ye-yê,  podamos entender o porquê as suas composições não tiveram um maior sucesso. Em definitiva eram igual de boas ou más que o resto das suas competidoras.

2º Os artistas que o puderam fazer, enviavam a estes festivais a partitura completa, incluindo as respetivas partes, de acordo com o modelo de instrumento que lhes foi previamente comunicado. Sabemos que Gloria Prieto enviou estas partituras, por exemplo, para o Festival del Miño, por isso é mais do que provável que os arranjos que ouvimos nas gravações sejam originais dela.

2º Neste artigo achegamos um importante catálogo de nomes que interpretaram as canções de Gloria Prieto. Ana Kiro, Fina Galicia, Gelu, Sabrina, Elvira e Madalena Iglésias.  Todas elas mulheres muito novas, vozes femininas que, quiçá excetuando a Fina Galicia, procuravam um espaço de lado das Marisol, Rocío Durcal ou Karina. Tenho a certeza de que alguma voz masculina cantou as suas canções, mas não dei com nenhuma gravação impressa. É muito possível que a autora escrevesse pensando em ser interpretada por uma voz feminina, com o cliché próprio deste tipo de eventos.

3º Repassando os discos da época, resulta infrequente encontrar mulheres ocupadas em compor peças de género ligeiro. Os compositores eram, na sua esmagadora maioria, homens, e nas raras ocasiões em que aparece o nome de uma mulher é, normalmente, para assinar a letra da canção. Uma ilustre exceção é a de María Josefa López Fernández, autora juntamente com Aniano Alcalde do eurovisivo Vivo cantando. Também assinou, desta vez em parceria com o marido Ricardo Ceratto, Mi Tierra Gallega, que Pucho Boedo e Los Tamara transformaram em obra de arte.

Mas não esqueçamos que as intérpretes e as compositoras jogavam em território hostil. Mergulhar na biografia das mulheres de que falamos neste artigo é devastador. Gelu, Elvira e Madalena Iglésias abandonaram suas respectivas carreiras quando se casaram. María Josefa López Fernández, ganhadora do Festival de Eurovissão, dialogava assim com o seu entrevistador:

«—¿Qué da más trabajo, María José, componer o ser ama de casa y madre de familia?
—Ambas cosas, pero creo que más ser ama de casa.
—¿Cuál de las dos profesiones prefieres?
—Ama de casa y madre de familia ante todo».  Diario de Burgos, 06/03/1969, p.3

Esther Gloria foi aluna de Lola Rodríguez de Aragón e Conchita Badía. Estudou no conservatório madrileno e, em 1960, foi aluna becária nos cursos internacionais Música en Compostela. Confesou ter chegado à música ligeira como a brincar, tentando a sorte nos festivais com maior remuneração e projeção económica. Parece que ela trabalhou na trilha sonora de alguns filmes que não consegui localizar e, é evidente, que não parou na tentativa de ser compositora de música séria, como ela mesma a descreveu. Tenho certeza que num futuro próximo o repertório de Esther Gloria Prieto trazer-nos-á lindas novidades.


Retrato de Esther Gloria Prieto. Foto Reza. La Región. 04/07/1965


Retrato de Esther Gloria Prieto. La Región. 12/07/1966


Retrato de Esther Gloria Prieto. La Noche. 01/11/1967

Webs de interesse:

https://mulleresourensas.blogspot.com/2021/02/esther-gloria-prieto-alcaraz.html

https://estherponcemagazine.com/xana-capitulo-5/

sexta-feira, 21 de julho de 2023

nº 255 Faustino Rei Romero e Artur Garibáldi. Uma foto em Braga.


O poeta Artur Garibaldi Pereira Braga (1913-1992) viajou por primeira vez à Galiza em 1935. Parece que esteve um tempo, o suficiente como para apaixonar-se do país, e também duma viguesa. Em qualquer caso, a sua conexão com a nossa terra propiciou um viçoso ramo de amizades, eventos, publicações e cargos honoríficos.

Foi autor, por exemplo, do livro de poemas À Cidade de Vigo, dedicado a todos os seus amigos da dita urbe galega. Neste estranho poemário, o rapsoda português, dedica uma das suas composições a um endereço de correios, polo que sabemos, com certeza, onde era que morava sua amada olívica.

Há uma casa na Espanha

que tem lá meu coração:

por ela fiquei a amar

a gloriosa Naçao.

-Linda cidade de Vigo:

Sanjurjo Badia, 9!


Como para não se dar por aludida!

Desde a sua primeira visita a Galiza em 1935, o vínculo com a nossa terra não deixou de crescer, sendo nomeado em 1940 Acadêmico Correspondente da Real Academia Galega. Uns anos mais tarde, no 1944, organiza o primeiro Torneo Poético Luso-Galaico, com o que pretendia um maior achegamento literário entre ambas comunidades.

Como ativista no movimento de unidade de ação entre intelectuais de aquém e além Minho, foi promotor e participou em númerosos congressos e certames, como a Assembleias lusitano-galegas celebradas em Braga (1955), a primeira, e A Corunha (1961), a segunda.

Por certo, a Real Academia Galega publicou as atas e comunicações em 1965, no prelo da Editora Nacional, imprensa do regime franquista, dedicando-lhe o volume Al Exmo. Sr. D. Manuel Fraga Iribarne


Foto de família dos assistentes à Assembleia corunhesa. O Garibáldi aparece acima, no centro, à esquerda, segundo olhamos, de Ferro Couselo. 
Primera y segunda asamblea lusitano-gallega: actas y comunicaciones. Asamblea Lusitano-Gallega (1ª: 1955: Braga) Madrid : Editora Nacional, 1967

O seu posicionamento político levou-no a militar, sem fazer demasiado ruído, nas forças progressistas contrárias ao Salazarismo. Assim, entre as suas obras, há um curioso Polonia heroica, poemário publicado em 1941 e traduzido ao espanhol por Enrique Romero Archidona. Em entrevista publicada em El Pueblo Gallego (5 de Março de 1957), Garibáldi afirmava que dita publicaçao constituyó un éxito, pero sentimos mucho miedo. -De Hitler? -Y de los muchos amigos que tenía entonces.

Os seus poemas tiveram acolhida na Galiza em jornais e revistas como Sonata ou Spes. O seu círculo de amizades mais íntimo estava no grupo de poetas vigueses, como os Álvarez Blázquez ou o próprio Celso Emílio. Entre esses elegidos estava o nosso Faustino Rei Romero, com quem vai colaborar nas páginas literárias dedicadas, nos jornais portugueses, à literatura galega.

Algumas semanas atrás, por sorte, abri um velho livro guardado no Fondo Local de Música do Concello de Rianxo e, entre as suas desarrumadas páginas, encontrei um pequeno recorte do jornal Faro de Vigo. Está datado em 22 de fevereiro de 1952. O breve, assinado por Faustino Rei Romero, vem ilustrado por uma fotografia de Artine, com o próprio Faustino e o Arturo Garibáldi como protagonistas.



Os dois amigos poetas teceram caminhos de ida e volta entre a Galiza e Portugal, e ambos lutaram, ao seu jeito, contra as ditaduras peninsulares. Obrigado.

 


Dedicatória autógrafa de Arturo Garibáldi no exemplar de À Cidade de Vigo da minha coleção.