segunda-feira, 30 de junho de 2014

nº 186 Arousa Folk 76 III

Encontro com Xoán Silva

Na sequência das minhas investigações sobre o Arousa Folk 76, encontrei-me em inúmeras ocasiões com o nome de Xoán Silva. Este cambadês nascido em 1951 participou no festival na modalidade de cantor e compositor, interpretando dois temas: Irmãos! Irmãos galegos! do poeta —amigo da família Silva— Ramón Cabanillas e Inverno, de Celso Emílio Ferreiro. Contam os que assistiram ao festival que o Xoán teve de enfrentar-se aos organizadores do evento, a Delegación Nacional de la Juventud, pois os seus temas, além de estar em galego, era uma provocação anti-sistema sem muita dissimulação.
Embora o Xoán Silva ter trabalhado numa entidade bancária na Ilha de Arousa durante anos, eu não o conhecia em pessoa, questão esta resolvida faz umas semanas graças às gestões do amigo Xaquín Chon Charlín. Uma vez facilitado o contacto ficamos em Cambados, havendo um bate papo muito produtivo. O Silva véu com outro amigo, Luís Costa Oubiña Falua, que no 76 estivera no festival como espectador, o qual me achegou um ponto de vista que não tinha explorado. Além de mais, Falua forneceu-me novos contactos que hão dar o seu fruto —em forma de artigo neste blogue— proximamente.
A hospitalidade de Xoán Silva e a sua generosidade para com o meu trabalho é inenarrável. Sirva esta postagem como homenagem pessoal ao seu activismo cultural, à sua dedicação por esta música que não só alimenta os espíritos, mas também abala os cérebros. Fica para mais adiante contar as experiências do Xoán, do Falua e de tantas outras pessoas com as que estou a falar. Hoje só quero que gozeis com a voz deste cantor do mar da Arousa, em cujas melodias e harmonias podemos sentir o legado do violino do seu pai  Benito Silva e as cores da paleta de seu irmão Lino. Obrigado, Xoán.

Xoán Silva no cenário do Arousa Folk
© Xosé Rañó

Xoán Silva e o acordeonista Diosiño no cenário do Arousa Folk
© Xosé Rañó

quinta-feira, 5 de junho de 2014

nº 185 Arousa Folk 76 II.


Um artigo do ABC bastante sano.

Reflexões acerca dum artigo publicado no ABC em 18 de setembro de 1976.





Da pouca bibliografia com a que contamos sobre o Arosa Folk 76, nenhum texto mais revelador e sintético que este artigo publicado só uns dias depois de se celebrar o festival. Para os não iniciados dizer que este evento teve lugar na primeira semana do mês de setembro de 1976, em a Ilha de Arousa, no rueiro de Testos. No artigo aparecido em ABC fica bem claro as tensões vividas na altura, num momento histórico de mudança no que o festival se converteu em paradigma do instinto de sobrevivência dumas instituições anacrónicas tanto no âmbito político como no social.

O título do texto de María Ángeles Sánchez, Un festival bastante sano, resume perfeitamente o acontecido naquele setembro do 76. A jornalista parece dizer: – Sei o que fizestes no verão passado, mas só vou contar um bocadinho. Durante três dias uma turba de nacionalistas, hyppies, esquerdistas espanhóis, falangistas, nacional-católicos, secretas e arousãos alucinados conviveram em sete quilómetros quadrados. Cabe lembrar que na era pré-ponte o único médio de transporte para nos comunicar com o continente era o barco. Isso sim,  a organização contou durante aquele longo weekend  com um helicóptero que não cessou de fazer viagens. E contra todo prognóstico os incidentes foram mínimos, mais fruto das ingestão massiva de álcool que da subversão política. Por isso se destaca a saúde do festival, desde um conceito dicotómico: saúde física e saúde política, como naqueles manuais de formação do espírito nacional.

Mas neste artigo o primeiro a destacar são as cifras:

- Participaram 400 músicos de 46 províncias de todo o Estado Espanhol.
- Houve 20 horas (oficiais) de música, repartidas em jornadas de manhã e tarde.
- O orçamento inicial foi de 2.000.000 de pts. chegando a ser finalmente de 7.000.000 de pts., 40.000 €, uma autêntica fortuna.
- 40 bilhetes de avião para jornalistas dos que só foram utilizados a metade.
- Dá-se a cifra de 6.000 assistentes, a qual semelha algo conservadora tendo em conta que na Arousa havia cerca de 5.000 habitantes. Em qualquer caso os músicos e público presente que entrevistei lembram uma assistência multitudinária.

Resulta fulcral para entender Arosa Folk 76 ter em conta o contexto político. Morto o ditador em novembro do 1975, os meses a seguir iam ser de paulatina descomposição do regime personalista nascido em redor da figura de Franco. Morto ele, acabou-se a raiva. Órfãs do pater familias, as diferentes polas da árvore do nacional-catolicismo procuram acomodo no estado novo, no que os imobilistas desaparecem para sobreviver só aqueles feitos de pasta moldável . Assim, em junho do 76 demite Arias Navarro e o Bourbón nomeia presidente a Adolfo Suárez, o mais hábil acomodatício.
Nesta tessitura, a Delegación Nacional de la Juventud, denominada assim desde o 1969, antes Frente de Junventudes, reivindica com Arosa Folk o seu direito a existir «frente a los que pretenden monopolizar las actitudes juveniles». De fato, o festival vai ser como o canto do cisne —um canto caríssimo— pois em 1977 sai o decreto de dissolução da Delegação Nacional de la Juventud.

Uma das perguntas à que todavia não encontrei resposta certa é o porquê de ter-se escolhido à Ilha de Arousa como cenário do macro festival. É possível que na mente dos organizadores estivesse presente a estética Woodstock ou, ainda mais, o Festival da Ilha de Wight, celebrados entre 1968 e 1970, sempre no mês de agosto: «Se trata de la mayor manifestación “folk” celebrada hasta ahora en España, capaz de rivalizar com el festival celebrado no hace muchos años —y cuyas fotos dieron la vuelta al mundo— en la isla de Wight, en el canal de la Mancha.» ABC 09/07/1976 p. 29 A Ilha permitia um isolamento interessante para manter a ordem, havia natureza virgem para fazer escoteirismo, e a península estava bem pertinho por se a guarda civil tinha de intervir. De fato, em Vila Nova houve um destacamento em previsão duns incidentes que apenas se deram. «Consideramos que era un bello marco en Galicia y con un paisaje precioso, también porque reúne una serie de condiciones favorables para llevar a buen término la consecución del certamen.» Odiel, 02/09/1976 p. 13 Quem diz isto último é Julián Granados, o director artístico do Arosa Folk e o ideólogo que propusera três anos antes à Delegación Nacional a criação dum evento destas características.

Bandeiras galegas e anarquistas apareceram penduradas o primeiro dia do festival. Isto era frequente nas concentrações populares, pelo que já era aguardado pela organização. Os do Frente de Juventudes, assim se lhe continuou a chamar a pesares do câmbio de denominação, contra-atacaram pendurando eles próprios bandeirolas galegas: «Y es cierto que el blanco y azul ondeaba junto con la bandera nacional y la enseña falangista.» O mesmo aconteceu com o hino: «Mientras que el himno gallego era cantado los dos primeros días, ya de madrugada, por los grupos que se habían distinguido como más combativos, en la clausura fueron los propios organizadores los que lo iniciaron desde el escenario. Y resultaba curioso ver como, bajo el mismo himno, puños cerrados, saludos fascistas y gestos de victoria se mezclaban entre los espectadores. Y es que de todo eso había.»

Nos cenários cantou-se a León Felipe, Alberti, etc. Xoan Silva, representante da província de Ponte Vedra, interpretou Inverno, de Celso Emílio e Acción Gallega de Cabanillas.  Os galegos foram, pelo simples feito de cantar na nossa língua, os mais vitoriados. Pela mesma razão, a apresentadora Eva Gloria  (1951-2007) foi apupada. Pedia-se-lhe que falara na nossa língua ao que ela, acima do cenário, respondia entre lágrimas que quisera faze-lo, mas não sabia. Além dos gritos teve de aguentar algum cano de verdura, vegetal emblemático do Carnaval arousão, que lhe foi presenteado por um público furioso. O outro condutor do festival foi José María Comesaña (1949-1996), que até pouco antes da sua morte trabalhou nas tardes de María Teresa Campos. Os organizadores achavam que contratando a Eva Gloria, apresentadora do musical juvenil da TVE Aplauso e a cara mais sexy do ente, estava todo feito. Mais uma vez se equivocaram e logo se arrependeram de não trazer um produto local. Todo faz pensar que a eleição de Eva Gloria e Comesaña foi uma aposta pessoal de Julian Granados.

Um dos aspectos mais controvertidos é a de se houve veto a certos cantores de intervenção. Fala-se de que a organização convidara a grandes nomes como Lluis Llach e Maria Del Mar Bonet. Também aos Vozes Ceives, tais como Benedicto, Bibiano ou Miro Casabella. De ser certo eles recusaram ir, mas é possível que existisse um veto ou que simplesmente fossem ignorados.


Como dado não carente de certo pitoresquismo, lembrar que o festival contou com um hino próprio composto pela cantora santanderina Maruca, nome artístico de Maria del Mar Quiroga de Viedma. Titulou-se dito hino Isla de Arosa, ouArousa Island, na  sua versão em inglês. A partitura chegou a ser editada em papel mas, que eu saiba, nunca em vinilo.
Por último destacar as fantásticas fotografias de Rafael Rubio  que acompanham ao artigo. Além de apresentar quatro imagens em cor, das poucas que tenho visto do festival, há uma em preto e branco na que aparece o rosto de vários carcamães assistentes ao evento. Em primeiro plano, María Suárez García, —Maria a Cuncha— e a sua filha Maria Garcia Torrado. O conhecimento da identidade das retratadas devo-lha as pesquisas do meu irmão Xoan Dopico Orjales.




Como apêndice a esta postagem quisera transcrever aqui um artigo de Juan Otero Dios, Nitucho, autor duma novela, Pregones de una caracola y narraciones de un grumete. Mesmo que nascido na Ilha de Arousa —era filho do grande Juanito de Luisa— morava em Huelva onde colaborou com o jornal Diario Odiel. O 28 de agosto de 1976 publicou um artigo titulado Arosa Folk 76, no que amostra a sua surpresa pela celebração deste evento na sua ilha natal. Sirva esta achega como reconhecimento à família dos Otero da Arousa, uma saga de escritores ainda não suficientemente reconhecida pelos seus conterrâneos.

AROSA FOLK 76

(Con mi recuerdo mas entrañable para los bravos marineros isleños, eternamente empapados por las olas y quemados por el Sol).

Con mayúscula sorpresa, leo en la prensa haber sido elegida mi cuna, la Isla de Arosa, como escenario del «Festival Arosa Folk 76».
Nunca más acertada elección para ello, habida cuenta de las bellezas naturales atesoradas por ese puñado de tierra, anclada en el casi matemático centro de la ría del mismo nombre, cuyas ondas mecieran los sueños literarios de don Ramón del Valle Inclán y los Camba, amén de otros grandes literatos y poetas que vieron las primeras luces en las privilegiadas riberas arosanas.
Como digo al comienzo, leo la noticia bajo la influencia de la sorpresa, habida cuenta de que la Isla de Arosa siempre ha sido como una cenicienta comarcal, que si algo posee de valor es totalmente intrínseco y no por obra y gracia de concesiones gratuitas de los gobiernos que se han sucedido a lo largo de su historia.
Por ejemplo, la Isla de Arosa, es el emporio conservero más importante de la Península en razón a su geografía. En ella, ha nacido la fabricación de conservas de mariscos en el mundo y los pescados han sido conservados con antigüedad equiparable a la de cualquier destacado centro industrial conservero de la nación. En la antigüedad también fueron sus astilleros, los constructores de naves para luchar contra corsarios, y para defender la nación de fuerzas invasoras.
En cambio, la Isla de Arosa, siempre ha carecido de todo o casi todo. Una de sus necesidades más perentorias, es un puente que la una a la Península, ya que sus siete mil habitantes se hallan aislados y a merced de todas las inclemencias meterológicas, que en los inviernos de Arosa causan grandes trastornos a sus moradores. Este puente, es el sueño dorado de los isleños, súplicas que siempre fueron desoídas, tal vez por propia conveniencia de intereses creados ajenos, que se lucran masivamente a costa del aislamiento isleño.
Por eso este «Arosa Folk 76», me escama grandemente que sea ubicado en la Isla de Arosa. A no ser que sus organizadores carezcan de los suficientes medios económicos para costearlo, o que la subvención, si es que la hay, sea de tan poco valor que no pueda con ella costearse la intervención de una pareja de gaiteros. Entonces, claro, mejor escenario y mas barato, no estaría al alcance de la comisión. Y con respecto a civismo, también es casi seguro que pocos lugares podrán presumir como ella puede hacerlo. Con decir que estos 7.000 habitantes viven sin control de autoridad alguna en total armonía, creo que está más que demostrado el alto grado de humanidad y educación ciudadana.
Y como no hay buena fiesta sin buen comer, la mariscada y variedad conservera que a buen seguro la gentileza y hospitalidad isleñas aportarán gratuitamente, habrá sido un importante renglón más a favor de la elección del escenario sin par designado. Por lo menos, por una vez se ha demostrado buen gusto y hecho justicia. 
Juan Otero Dios
ODIEL Sábado, 28 de agosto de 1976 p.12 


Cartaz Arosa Folk 76
Arquivo Xoan Dopico

quarta-feira, 21 de maio de 2014

nº 184 Decálogo de Manuel Antonio


Antologia arredista e sentimental de Manuel Antonio.

DECÁLOGO 
de
MANUEL ANTONIO

I

Ti, Rodolfo Cruceiro, que eras tão galego, tinhas que ser, como bom galego, multiforme e omnímodo. PROSA p. 65 

II

Madrid, poço negro de todos os resíduos da península. PROSA p. 136 

III

Diferença entre um galego e um espanhol: ser ou não ser. PROSA p. 207 

IV

Estrangeira por estrangeira vale mais uma fala de Europa que a da Meseta. PROSA p. 140

V

Nos prostíbulos já sabem/ que a nossa moeda/ tem o anverso de ouro/ e o reverso sentimental. POESIA p. 117

VI

Topei um Alquimista/ que queria fazer terra/ e não tinha mais que ouro. POESIA p.178

VII

A mim dá-me pena cada casa nova que se faz em Rianjo. Eu quisera que todos lhe tivessem o respeito que eu lhe tenho. Não são capazes de enxergar esse desejo que ele tem de seguir sendo sempre como sempre, sem novidade. Se eu tivesse muito dinheiro havia mercar Rianjo para metê-lo debaixo dum imenso fanal e deixa-lo assim. CORRESPONDÊNCIA p. 202

VIII

A aventura espanhola. Mas falas de Espanha? Cuidado que és fúnebre. Eu não che digo nada disso, porque não gosto de fazer brincadeira dos mortos. CORRESPONDÊNCIA p. 108

IX

Uma das coisas que mais me fazem odiar todo castelhanismo é o lento assassinato que comete com todo o nosso, e cujo exemplo mais patente é a fala. CORRESPONDÊNCIA p.100 

X

Todo passa, e alguma hora chegará que quiçá abonda para justificar uma vida sem rumo. Por enquanto, recomendo-te que sejas galego, é dizer, humorista. CORRESPONDÊNCIA p. 136



BIBLIOGRAFIA:

- Manoel-Antonio, Correspondencia III; edición, limiar e notas de Domingo García-Sabell. 
Vigo : Galaxia, 1972. CORRESPONDÊNCIA

-Obra completa / Manuel Antonio ; edición e notas de Xosé Luís Axeitos Agrelo. 
[A Coruña] : Fundación Barrié : Real Academia Galega, D.L. 2012 PROSA.

- Poesía galega completa / Manuel Antonio ; edición de Xosé Luís Axeitos
Barcelona : Sotelo Blanco, D.L. 1992 POESIA.



domingo, 11 de maio de 2014

nº 183 Na casa do Conde de Aurora.


Chegamos a Ponte de Lima ao anoitecer, nessa hora em que o prioritário começa a ser encontrar alojamento. A primeira tentativa foi um Hotel & Spa que fica mesmo na entrada da cidade: luxuoso, moderno, muito europeio. Só havia quarto para uma noite, mas ficamos tranquilos; de não encontrar outra coisa, quando menos hoje teremos onde pernoitar. Continuamos até o interior do casco antigo, na beira do rio e da ponte que dão nome à vila mais antiga de Portugal. Estacionamos. Tero desceu do carro, entrou numa farmácia e a continuação num restaurante para perguntar se alguém saberia dum quarto para alugar no centro histórico, um espaço urbano cuja formosura nos fez esquecer imediatamente o pós-moderno Hotel & Spa. Na botica não houve sorte, mas o dono do restaurante saiu a rua e ligou o seu telefone, como se os móbiles precisaram de céu aberto para funcionar. Também sem sucesso. Apesar das muitas marcações ninguém contestou. Então aconteceu algo:

—Ó Dona Rosa, faça favor de vir cá! —ponhamos por caso que Rosa era o nome da pessoa alvo dos gritos emitidos pelo nosso amigo hostaleiro—.

Aquela senhora véu até onde nós estávamos e perguntou amavelmente em que podia ajudar. O dono do restaurante contou-lhe apressadamente que uns espanhóis (sic) andavam a procura dum quarto com casa de banhos privativa para duas noites. Também contou que ele ligara para não sei que pessoal sem qualquer resultado. A Dona Rosa pegou no seu telemóvel e ligou por sua vez a alguém que tinha o quarto por nós sonhado. Quando já estávamos na ideia de que os 2.800 habitantes de Ponte de Lima ou alugam quartos ou levam no seu celular o número de alguma pessoa que o faz, soubemos que a tal Rosa era a funcionária de Turismo e que, mesmo fora de horas, não fazia outra coisa que o seu trabalho.

Só havia que andar uns cem metros desde onde estacionamos o carro até a hospedagem. No breve percurso pelas ruelas de Ponte de Lima, a funcionária municipal explicou que onde íamos dormir era um velho paço dedicado a turismo de habitação. 

—Vê aquela figura de bronze? —diz a Dona Rosa assinalando com seu dedo uma estátua a tamanho natural assenta num banco de pedra—. É o conde de Aurora. Vocês vão dormir no seu paço.

Impactado pela notícia e sem tempo para perguntar mais alguma coisa sobre o tal conde, chegamos até o casarão, um paço ajardinado do século XVIII —e com capela!—, algo vindo a menos, mas todavia com ar de fidalgo orgulhoso. 

O quarto pronto a ocupar não fazia parte do edifício principal. Na altura deveu ser uma dependência anexa, quiçá a vivenda para o serviço. A porta culminava um formoso patamar de pedra. Dois pregos cravados a uma viga sustinham as suas respectivas andorinhas que, mália estar a altura das nossas cabeças, semelhavam ignorarmos. Talvez aqueles passarinhos também pertenciam à aristocracia.

O quarto resultou modesto, quase franciscano, anacrónico em muitos aspectos, mas não isento de certo encanto. Uma parede meeira unia-nos a capela. Tal e como se viera desenvolvendo o drama, aquela elevadíssima cama de castanheiro presentava-se ante nós como um final feliz. Deitamos e dormimos os três na cama grande, já que a Dália nem quis saber nada da supletória.

No médio da noite acordei. Abri os olhos como se acabasse de pestanejar, sem restos de sono, estranhamente desperto. As minhas pequenas dormiam, oculto o quarto por uma escuridão sem fissuras. Na procura do mais mínimo sinal luminoso que me dera a certeza de não ter ficado cego, —é o que tem ser de natureza paranoica— girei o meu corpo 180º ficando frente da janela, o único vão, junto com a porta, aberto nos seculares muros da estância. Aconteceu então que uma minúscula partícula de luz começou a crescer, a fazer-se, lentamente, cada vez maior. Ao princípio só era luz, mas pouco a pouco fui vendo como aparecia um rosto com seu chapéu, um colo com seu laço, um corpo vestido à moda do Pessoa. Percebi que o rosto sorria, que o corpo tinha vida e antes de mais teve uma revelação: aquele ectoplasma era José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho, III Conde de Aurora. 

Suponho que os fantasmas têm um poder anestesiante, ou tal vez simplesmente um bom domínio da cena porque a pesares de estar a viver o meu primeiro sucesso paranormal nem teve medo, nem houve histeria, nem teve tentação de acordar as minhas companheiras de lençóis. Outra coisa que vivi com total naturalidade foi a de como entre o Conde e mais eu estabelecer-se-ia uma cordial conversa telepática na que acabaríamos falando de literatura, de gastronomia, de futebol, de política... Nesta conversa, além de mais, ficou provado que o meu sotaque em português telepático é mais que aceitável.

—Oi, galego, você sabe que eu vivi um ano na Galiza? Teve que me exilar a Vigo em 1919, depois da derrota dos monárquicos. 

—A Monarquia do Norte, —disse eu para impressionar—.

—Pois, a mais heroica contrarrevolução, —disse o Conde silabando com-tra-rre-vo-lu-ção com um jeitinho quase daliniano—. Anos mais tarde, —continuo meu parceiro de conversa— em 1923, teve um acidente na ponte internacional de Tui. O meu carro bateu contra o dum lisboeta. A condessa de Aurora —suponho que é coisa de nobles chamar pelo título às suas mulheres— foi lançada a grande distância, sofrendo graves feridas. 

Também me contou que eu não era o primeiro galego em visitar o paço. Já lá estivera o José Maria Castroviejo na altura em que premiaram ao Conde da Aurora com o I concurso Virgen Peregrina pelo seu trabalho El camino de las peregrinaciones portuguesas a Compostela. Para ilustrar-me o evento, D. José de Sá Coutinho tirou da sua carteira fantasma um velho recorte de jornal no que aparecia retratado em animada conversa junto ao intelectual de Tirã.



Sem que eu lho perguntara confessou-me gostar mais dos escritores galegos quando estes escreviam em espanhol. Esteve a ponto de me indignar, mas com que motivo? No fundo concordávamos plenamente.

Assim passou o tempo, nem sei quanto. Do mesmo modo que a luz foi nascendo, assim também esmoreceu paulatinamente. Quando apenas tão só ficava o seu rosto acesso, o Conde disse-me algo que cheguei a ouvir apenas segundos antes de ficar novamente dormido.

—Ao acordar, olha debaixo da cama. Lá verás uma mala e no seu interior um livro. Não há é um objeto qualquer. Possível que seja o livro mais importante da tua vida. 

Volvi a abrir os olhos. Desta volta o quarto estava plenamente iluminado pelo sol duma manhã esplêndida em Ponte de Lima. Dália queria acordar e esfregava os olhos com suas mãozinhas de veludo. A mamãe aproveitava os últimos segundos de paz matinal. Levantei-me e fui à casa de banhos. Urinei e lavei as mãos, o rosto, os dentes... Vi a minha imagem refletida no espelho: olheiras mais escuras do habitual, canas mais brancas, gesto fatigado e avelhentado. Dava pena. 

Foi então que lembrei ao Conde. Com a escova ainda entre os dentes sussurrei um castiço palavrão e durante uns intermináveis segundos fiquei paralisado. Cuspi o dentífrico e enxaguei a boca. Sai da casa de banhos lentamente e me sentei no cadeirão onde na noite passada se sentara o fantasma do Conde. Estava certo de que todo fora um sonho. Não acredito em Deuses nem em Santos, muito menos em fantasmas intelectuais, —quando se tratar de intelectuais defuntos, é claro—. 

Baixei os olhos. Da cama pendurava uma colcha onde estavam bordadas duas iniciais: C.A. A rés-do-chão, quase oculta pelas roupas desarrumadas da cama, vislumbrava-se uma mala de madeira pintada de verde com os acabamentos em metal. Fiquei tão surpreso que nem me podia mexer. Neste estado catatónico andei uns instantes ata que o sangue quis volver a circular pelo seu circuito de veas e capilares, regando o meu cérebro e activando os meus paralisados músculos. 

A mala no lugar onde foi encontrada.


Quando consegui despegar-me do cadeirão fui até a mala, tirei-a de debaixo da cama e dispus-me a abri-la. Efetivamente, dentro havia um livro em oitavo encadernado em pele, com a capa nua de caracteres e ilustrações. Para enquanto, Tero e Dália já participavam da cena observando atónitas a minha busca do tesoiro. Como bom enfermo de literatura, patologia descrita pelo Vila-Matas, sou vítima dum ritual à hora de acercar-me a uma nova literária. Sempre pego no livro com uma mão e o acarinho docemente com a outra antes de abri-lo. Depois arrecendo as suas páginas e após rematar a leitura, beijo a contracapa, agradecido pelo favor recebido.

O livro que me apresentara o Conde de Aurora tinha uma peculiaridade que só descobri quando o abri para cheira-lo: as suas páginas estavam em branco. Foi nesse instante que percebi a brincadeira do meu anfitrião. Aquele livro não era uma incitação a leitura, ele sabia que eu não precisava tal coisa, era, isso sim, um desafio a escrever.  
P. S. O Conde, durante a conversa dessa noite, seica os fantasmas o sabem tudo, lembrou que a sua morte aconteceu só um mês antes de eu nascer. José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho III Conde de Aurora(Ponte de Lima, 19 de abril de 1896; Ponte de Lima, 3 de Maio de 1969).


Lendo no cadeirão onde sentou o Conde.

                                           foto: © Dália do Pico Rodríguez

quarta-feira, 30 de abril de 2014

nº 182 Pecinhas musicais do arquivo familiar de Manuel Antonio.

Para os meus alunos da Uned Senior de Rianjo

Já faz alguns verães teve a oportunidade de trabalhar uns dias com o arquivo da família Pérez, da que era membro o poeta rianjeiro Manuel António (Pérez Sánchez), tantas vezes lembrado por mim nas páginas do meu blogue. Entre os muitos papeis manuscritos, algum deles de uma beleza e importância histórica espantosa, apareceu uma folhinha de um quarto com umas diminutas peçinhas para piano que me deixaram absolutamente impressionado. Após fazer uma transcrição rápida enviei-lha ao amigo e grande pianista Alejo Amoedo para que ele me dera o seu parecer. Este, tão amável, não só me deu o seu parecer, também as interpretou ao piano e as gravou com o seu telefone para que eu ouvi-se ao vivo. Tenho que reconhecer que quando recebi o agasalho chorei emocionado.
A dia de hoje, e antes de trabalhar a fundo com o arquivo, considero que o autor é José Pérez, nome que aparece no próprio documento junto com uma data, agosto de 1922.
Aguardo que dentro de pouco podamos conhecer mais coisas do importante arquivo musical da família Pérez. Trata-se dum magnífico documento da Galiza musical da primeira metade de século, e achega, também, muitas claves sobre a vida musical das pequenas vilas galegas. Este arquivo propriedade do Concelho de Rianjo, e por isso mesmo, de tod@s @s rianjeir@s, é uma oportunidade única para a criação de um Arquivo Musical imprescindível numa terra considerada como «tão musical». Que assim seja.

Partitura original:



                                      

Interpretação de Alejo Amoedo: OBRIGADO, AMIGO.

quarta-feira, 26 de março de 2014

nº 181 Morrer.


Vou morrer. Desta vez é claro que vou morrer. Já não posso mover as pernas, nem os braços. Tenho o corpo tudo paralisado; não posso falar. Será que já morri? Acho que não. Sinto dor no peito ao respirar. Se respiro, mesmo que muito dificultosamente, será que estou vivo, né! Mas não posso dizer que me pegue de surpresa. Á minha idade morrer deve ser o acostumado. Quando a gente fale de mim dirá: -Morreu no seu tempo! E terá razão, vivi anos de mais, por isso não tenho medo a morrer. Resulta curioso que o único que ainda me funcione bem seja o cérebro. Tal vez isto é sempre assim. Pode ser que a natureza nos permita conversar com nós mesmos para fazer balanço do nosso passo pela terra. Quiçá esse instante final seja o céu ou o inferno do que falam os padres. Eu nunca teve medo á morte. Fui bom com os meus e jamais odiei, assim que agora posso desfrutar do céu e morrer como um bendito. Pergunto-me quanta gente haverá na paróquia que morrera ou vaia morrer no mesmo quarto no que nasceu. No tempo dos meus pais seriam mais dos que agora, isso com certeza. A casa era mais pequena, quando eu nasci. Debaixo deste quarto estavam as cortes. Fizemos a cozinha após a vinda da tropa, a primeira cozinha... Meus pais queriam este quarto porque as janelas davam ao levante. Nós, mudamos para aqui quando os velhos morreram. Rosa morreu aqui e aqui vou morrer eu. O meu filho também nasceu neste quarto mas ele não, ele há morrer na Corunha, no seu andar, num prédio cheio de desconhecidos, ou num hospital, ou dum infarto no meio da rua, ou duma volta qualquer que lhe dê o corpo. A gente de agora não sabe onde vai morrer. Quando era um menino saia todos os dias pela porta da casa, olhava para a santinha do cruzeiro e fazia o sinal da cruz. Ainda ontem fiz o mesmo. Quando foi que deixei de ir à missa? Quando foi que deixei de crer? Seria no 36. Naquele tempo vi como muitos santarrões assassinavam vizinhos com a bênção da igreja. Eu já duvidava, mas daquela deixei de duvidar. Só lamento não ver à santinha uma vez mais. A minha santinha! De criança tinha grande devoção por ela. Pedia-lhe a diário para que curara ao avó; à vaca que tivera mal parto; para que acalmara o vento e papá não correra perigo no mar... Umas vezes a coisa funcionava e outras não. Quando funcionava era a santinha, tão boa; quando não, a culpa era nossa, grandes pecadores; ou minha em exclusiva, que sempre fui um mal cumpridor dos preceitos. Tudo mudou quando fui à tropa. Foi antes da guerra, pouco antes. Estávamos na África Espanhola. Éramos novos, cheios de vida. Fumávamos charutos marroquinos. Eu nunca fora de putas. Não, aquelas moças não eram putas. Tinham fome e nós éramos só um bocado mais ricos do que elas. Foi a minha primeira vez. Aqui deixara uma moça, mas nem um bico lhe dera. A Rosa foi a minha moça desde crianças... a única moça que teve. Quando volvi para a aldeia entrei na casa de madrugada. Minha mãe sentiu-me. Levantou-se da cama, abraçou-me e chorou enquanto me fritava uns ovos e aquecia uma cunca de leite... Meu pai ficou na cama. Quando nos encontramos ao outro dia, jantamos em silêncio e na sobremesa ofereceu-me um pito. Ao sair pela porta olhei mais uma vez para a santinha. Agora já não tinha aquela carinha de menina santa. Agora o seu rostro de mulher semelhava o mais formoso do mundo. Aqueles olhos! Aqueles beiços! Ainda estou vivo. Quanto tempo terei ainda de vida! Na tropa, durante a guerra, tal vez matei a um homem. Estávamos em revista e um sargento dirigia-se a nos a gritos para indicar-nos qualquer incorrecção no nosso aspecto. Havia que contestar –Si, mi sargento. Um basco, alto coma um salgueiro, esqueceu o de mi sargento e só disse -Si. Caiu-lhe uma hóstia que se escutou em tudo o pátio. O basco não o pensou duas vezes e duma porrada deslocou-lhe a mandíbula ao tal sargento. Houve conselho de guerra sumaríssimo. Criou-se um pelotão de voluntários. Como não houve suficiente pessoal escolheram a dedo alguns companheiros do pobrezinho soldado. Tocou-me a mim. Quando se deu a ordem de disparar eu fechei os olhos. Igual não lhe dei. Igual sim. Ao acabar a guerra casei contigo. Ai Rosinha!. O dia que casamos não houve festa. Estavas de luto pelo teu irmão. Era da CNT e ao acabar a guerra escondeu-se nas minas de Sanfins. Quando o prendeu a Guardia Civil estava feito um saco de ossos. Não podes-te visitá-lo. Na noite de bodas vim-te nua por primeira vez. Eras virgem, mas parecias mais experimentada do que eu. Montei-a, e quando a penetrava fechei os olhos. Então eu não estava com a Rosa. Com os olhos fechados podia ver o rostro da santinha, esses olhos, essa boca... Quando rematamos senti remorsos. Fui à igreja, acheguei-me ao confessionário e confessei. Mas só banalidades, como sempre. Na altura, havia que cumprir o trâmite. Cada vez que folhava com a Rosa, era a santinha a que se me oferecia. Uma noite acheguei-me ao cruzeiro, subi ao estrado e estiquei o braço. Com a ponta dos dedos toquei os seus beiços, os seus olhos, as suas bochechas. Toquei as dobras do seu manto, as suas mãos... Olhei ao meu redor para ter certeza de que ninguém me vira. O caminho estava deserto, só quando olhei para a casa é que te vi. Estavas parada na porta. Não disseste nada. Depois de nascer o nosso filho, começas-te a andar mal. Cada vez estava mais cativa, não havia dinheiro para andar em médicos. Manuel acabava de cumprir quatro anos quando morres-te. Nesta mesma cama. Neste mesmo quarto. Quando estavas a agoniar acerquei-me ao teu ouvido e contei-te o da santinha. Não te queria fazer dano, mas queria que souberas o meu secreto antes de nos separar. Sei que não te importou porque olhaste para mim com um sorriso. Esse sorriso transmitiu-me toda a tua compreensão. Não houve outra mulher, só a santinha, sempre no meu desejo e na minha devoção. Já não posso respirar! Alguém virá petar na porta quando vejam que não abri as contras. Vou pensar na santinha! Vou subir ao céu!




©Texto e fotografia: José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres, Rianjo.
Março de 2014.



sexta-feira, 14 de março de 2014

nº 180 XYZ


XYZ
A Marcial e a Alberto, por esta ordem.

Esta história aconteceu a fins da década de 90, uma época da minha vida sonora como uma fanfarra de ciganos romenos. Depois de muitos anos de ausências, X, Y e Z, três amigos da infância, encontram-se no átrio duma igreja. Vemos a cena desde os olhos emocionados de X, um músico hipocondríaco que acaba de descobrir que o seu umbral da dor é baixíssimo. Z é introduzido no templo nos ombros de quatro funcionários duma funerária, num caixão de mogno sobre cuja tampa reluz um crucifixo e um Cristo metalizados. 


Passados uns minutos, o pessoal que fica no átrio esta constituído por ateus, impontuais, tabaquistas e falabaratos, quase que todos homens. X, elemento do primeiro sector, sente-se um bocado incómodo, pois detesta a todos os demais grémios. Do interior da igreja abarrotada de gente brota uma melodia melancólica como trazida por um vento mareiro. A letra da canção é um trilho para este povo de marujos que tanta gentinha perdeu no mar: «Tu, has venido a la orilla / no has buscado, ni a ricos ni a pobre...». X, interessado desde criança pela história das canções, sabe que Pescador de hombres, foi composta por Cesáreo Gabaraín, um padre músico e desportista que mesmo chegou a ganhar um disco de ouro. Quando o coro recita os versos «en la arena he dejado mi barca / junto a ti, buscaré otro mar» as conversas no exterior cessam, as olhadas dirigem-se ao chão, há alguma bágoa nos mais sensíveis...

Num momento em que X faz um varrido de esquerda à direita do seu campo de visão, os seus olhos se cruzam na distância com os de Y, que sorri apercebido da presença do seu velho colega de turma. Y aproxima-se a X. Quando estão a poucos centímetros Y estende a sua mão:

-Venha mais cinco! -disse Y.
-Que caralho faz tu aqui? -contestou X.

Y, que viste um impecável traje preto, acomoda a gravata, move ligeiramente a cabeça e vai-se embora, silencioso, com o rostro contrariado, semi-oculto trás uns óculos de pasta preta. Há movimento no interior do templo. A gente começa a sair; soam os sinos; forma-se o cortejo fúnebre. X integra-se na comitiva e coloca-se de par de Z que agora é sustentado pelos parentes mais próximos. O padre lidera uns cantos ou plegárias acompanhados de sineta que faz pensar a X naquele poema de Alfredo Brañas chamado O avelhão no que se descreve um rito funerário localizado na vizinha Vila Nova. Por um instante, X esquece onde está e se imagina fazendo uma roda que caminha muito de vagar em torno ao catafalco de Z, emitindo os dançantes um zumbido monótono, sinistro... Na realidade, o que acaba de visionar é uma cena dum filme antigo, quiçá uma adaptação cinematográfica dum romance de Valle Inclán. Haverá alguma conexão Branhas↔Valhe Inclán? D. Alfredo esteve na nossa ilha em 1891 no bota-fora do vapor Teresita, propriedade dum industrial da localidade. →José Manuel de la Peña y Oña, bisavó de Valle Inclán, teve de se deslocar desde Vila Nova até a Arousa fugindo das represálias do exercito francês.→ No breve espaço de tempo que José Manuel de la Peña y Oña e a sua mulher Serapia Fernández Cardacid moraram aqui, tiveram uma criança de nome Francisco Peña, avô de Valle Inclán.→Durante os anos que seguiram à derrota dos franceses, os contrabandistas carcamãens assenhorearam-se do Mar da Arousa.→O mais ilustre desta casta de contrabandistas foi o genovês Benito Vicetto Beneto, pai do historiador ferrolano do mesmo nome. Todas estas ideias desordenadas vieram a cabeça de X durante os escassos cem metros que distavam desde a igreja até o campo-santo.

A entrada ao cemitério era ampla, mas ficou pequena ante as presas da multidão desejosa dum bom lugar desde o que contemplar a inumação. X deixou-se levar, mas quando se encontrou diante da boca aberta daquele nicho de formigão, compreendeu que não queria presenciar como esta se devorava ao seu amigo. Aos seus ouvidos, no médio dum silêncio sepulcral, chegaram os lamentos da mãe e das irmãs do defunto cada vez mais desatados. Saiu discretamente. Ao ultrapassar o umbral do recinto, divisou ao longe a figura de Y, que tal vez também não suportou a cena. X teve a impressão melodramática de ter assistido ao enterro duma grande amizade.

Na actualidade, ano 2014, X é um poeta frustrado e uma pessoa razoavelmente feliz. Y tem um largo historial de reclusões em cárceres de todo o estado. Numa delas chegou a coincidir, a típica casualidade galega, com P, outro ex-companheiro de estudos agora funcionário de prisões. Z é um pequeníssimo segmento da coluna azul dum diagrama que X viu recentemente na prensa local e cujo cabeçalho era exactamente este: Percentagem de homens menores de trinta anos falecidos na década dos noventa a consequência do consumo em massa de drogas.