quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

nº 179 Tetos

Tetos
Micro-novela erótica

C. I

Começou sendo apenas um ruidinho semelhante a uma pingueira a bater no parapeito da janela, fácil de ignorar ou de acomodar aos pensamentos. Mas na meia-noite os sons vão-se singularizando, fazendo-se grandes até atrair toda a tua atenção, ensimesmando-te. Agora percebia um ritmo de cadência lenta, monótona, ligeiramente sincopado. Percebia um tempo accelerando que me levou a pensar que no andar superior alguém praticava sexo sobre uma cama indiscreta. Incomodou-me. Por um instante senti que se estava a invadir a minha solidão, como se na distância alguém acertasse a meter-me o dedo na chaga. Mas a minha paranoia esvaeceu-se quando escutei a sua voz. Foi nascendo, ao igual que aquele ruidinho primigénio, um chio cadencioso ao pouco convertido em grito apenas dissimulado. Reconheci a voz duma mulher em pleno gozo, sentindo-me, hei de confessa-lo, moderadamente excitado. Mas, trás a aparição da Prima Donna, o ato correu com brevidade, ficando eu dormido quase que no instante em que caia o telão.

C.II

Ao outro dia deitei-me cedo. Não eram mais das dez quando pousava o livro sobre a mesinha e apagava a lâmpada, na esperança de que as horas ganhadas à noite haviam-me ajudar a sobreviver. Vã ilusão! Às doze da noite em ponto, novamente o ruidinho começou a invadir o meu quarto. Tão diminuto como era e tinha o poder de me acordar dum sono aparentemente profundo. Não pude evitar olhar o relógio de números luminosos. Não pude evitar escutar com atenção. Não pude evitar uma alegria súbita quando a voz feminina proclamou, urbe et orbi, o seu júbilo.  

C.III

Passaram quatro ou cinco dias nos que ao dar as doze começavam os ruídos, os gritos, sempre o mesmo protocolo; um mesmo início e um mesmo final. Para então, eu já não podia dormir sem presenciar o espetáculo que se desenvolvia no andar de acima. As minhas fortes enxaquecas  acostumaram-me a deitar  cedo, a levantar cedo, a levar uma rotineira vida de frade bento. A meia-noite era para mim um tempo proibido. Até a hora de começo da função lia passando, despreocupado, as folhas, sabendo que os de acima seriam pontuais. Alguma vez, cônscio desta pontualidade inexplicável, pôs o despertador na esperança de dormir umas horinhas, mas de nada serviu. Só com o grito final da rapariga o meu corpo se entregava, ficando dormido até a manhã seguinte.

C.IV

Um dia escutei uns tacões a bater no chão. Normalmente, antes de começar o ato, uma porta se abria; sentia-se algum deambular pelo andar; às vezes alguma urgência para estar na hora no lugar adequado. Mas só foi ao escutar os tacões que cai na conta de que durante todo este tempo os únicos ruídos humanos identificados por mim eram de mulher. Essa noite esteve mais atento ainda. Agora é que tinha a certeza: toda a atividade do andar superior era provocada por uma única dama a qual eu escutava enquanto ela se masturbava. As minhas sensações então foram contraditórias. Por uma parte senti por vez primeira que estava a violar a intimidade de alguém. Isto só o senti uns segundos.  O sentimento mais potente foi o de solidariedade ou mais bem admiração por uma mulher autossuficiente, liberada dos caprichos do sexo contrário.

C.V

Os dias a seguir não fizeram mais que confirmar as minhas suspeitas sobre a pontualidade onanista da vizinha de acima, além de fazer medrar a minha admiração por um ser tão motivado em dar-se prazer. A mim sempre me deu tanta preguiça!

C.VI

O prédio onde ambos morávamos era um lugar desolador em inverno. Das numerosas vivendas, apenas estavam ocupadas três ou quatro, sendo imperceptível o trânsito pelos espaços comuns: os patamares, os elevadores ou a garagem. Premi o botão e as portas metálicas abriram-se para mostrar o meu rosto avelhentado no espelho do fundo. Penetrei no habitáculo justo no momento em que batia a porta da rua. Coloquei a mão na célula fotoelétrica para evitar que se fecharam as portas. Quando aquela rapariga véu que ia partilhar o elevador surpreendeu-se tanto coma mim, colorando-lhe as suas façulas um assomo de rubor. Vestia um uniforme que reconheci ao momento e foi então que lembrei a sua presença junto ao posto de frutas do supermercado da esquina. Eu sou alérgico a numerosas frutas, nomeadamente aquelas que têm pelo, às tropicais e alguma mais que nem sei, assim que procuro não me acercar demasiado. Só compro maçãs que ela, em várias ocasiões, me pesou amavelmente. Tenho observado que quando a bicha e muito comprida, reclamam a fruteira pelo alto-falante, incorporando-se à linha de caixas e deixando o seu posto vago até que só ficam umas poucas pessoas a espera.

C.VII

Como poderia explicar-vos o momento em que o seu dedo pecador premeu o número de andar acima do meu. O ruborizado então fui eu. Sai do elevador e abri a porta, mas no canto de entrar, fiquei na espera de verificar que a fruteira abria, por sua vez, a porta correta. Todo correu como estava previsto. Passaram as horas. Aguardei a que o duplo zero substituíra ao 59. Novamente o ruidinho. Começava o espetáculo. Então senti vergonha. Lembrei a cara da rapariga das maçãs. Pensei que podia ser seu pai. Pensei na sua vontade de estar soa, de gozar ensimesmada. Pensei em Foucault e nos problemas de comunidade de  Schopenhauer: o velho professor atirou a sua vizinha Caroline Marquet  pelas escadas. Tudo aconteceu subitamente. Levantei-me e fui para o quarto do lado contrário. Durante os poucos meses que continuei a morar naquele andar, jamais volvi à minha antiga cama.

C. FINAL

Segui comprando-lhe maçãs. Paulatinamente melhorei muito das minhas dores de cabeça.

© José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres. Rianjo. 
Fevereiro de 2014.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

nº 178 No cabo de ano de Manuel Antonio.


O 28 de Janeiro de 1930 morria em Asados o poeta Manuel Antonio. Resulta um bom exercício historiográfico ver a recepção que tal sucesso teve nas páginas do jornal El pueblo gallego, onde ele colaborara, assim como a relevância das pessoas que assinavam os artigos. Só um dia depois da morte do poeta, Johan Carballeira publicava um panegírico titulado "El viaje sin regreso", uma viaje que o próprio Carballeira percorreria só sete anos depois, vítima das balas fascistas. 

El viaje sin regreso
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Murio Manuel Antonio, hombre y poeta.

Frente al despierto mar del atlántico enero, alargando en crudos horizontes se hizo el día de ayer un cadaleito-velero para llevar a navegar en la eternidad a Manuel Antonio.
Desnudo y puesto "como los hijos de la mar", del verso de Machado, esperó ese viaje sin regreso. Todo el mar celta del mozo poeta, hizo una cruz de silencio y sangró con los ramos desnudos y luminosos de sus versos de piedra madura.
El cósmico acento del poeta partió para las lejanías. Su voz marinera verde y vital como el viento se fué en ondas hertzianas a hacer fiesta de belleza fuera de la rueda del mundo. 
Manuel Antonio: "estás juntando soledades". Y he aquí que tu responso te lo rezan tus versos:

Xa che levaron os ollos
relingadores de lonxanías
e pescadores de profondidades.
Xa che levaron a voz
asolagada na furna xiróvaga
por onde escoan as tempestades.

***

A esta hora en que cierra los ojos Manuel Antonio, Galicia pierde a su poeta más perfilado, mas denso, más universal.
Su poesía está ahí ya categorizada en esqueleto, resistiendo el embate del tiempo, porque sus versos, no son versos inconsútiles, blanduchos y sonorizantes y tiernos como de carne. Son enjutos. De hombre. Sus versos son de hueso. Los que tienen más hueso de todos los que se fundieron en verba gallega. Su poesía tiene dentro sustancia, materia de eternidad desinfectada, clara y perenne. A esta elaboración llegó por recursos de amor, de pensamiento, de caminar con hundidos pasos de hombre y aire de arcángel.
Los poemas de Manuel Antonio se parten a cada contacto en seguros voladores caminos como el diamante se deshace en rosas interiores de luz.
Paul Valery, cae catedrático hondo de poesía por ejemplo, al contrastar el valor poético de Manuel Antonio le grabaría encendidamente el juicio de los 18 quilates supremos.
Manuel Antonio, como ese otro gran poeta Amado Carballo, muere antes de cumplir los treinta años. Como Carballo, su escuela es netamente moderna. Está dentro de la más pura escuela novecentísta. Su libro "De catro a catro" es un libro de versos que se sostienen por sí solos, valientemente y se hacen un sitio de honor al lado de la lírica española, mejor formada de últmima hora. Con Antonio Machado, con Juan Ramón Jiménez, con Jorge Guillén, con Pedro Salinas, con Juan Larrea, con Gerardo Diego.
Pero hay algo más que un finísimo esteta en el poeta "De catro a catro". Hay un valor humano verticalísimo. Hay una hombría, un civismo, una rigurosa ética haciendo ámbito a su juego lírico.
Porque este mozo que nació en Rianjo e hizo un mapa de ronseles en el mar cantó con la mas honda voz de hombre cara a Dios.
Se fué Manuel Antonio y en este enero de 1930 pierde Galicia a su poeta mas hecho y derecho.
Una gavilla de fervores internos, del pensamiento al corazón hondos como su muerte, serán su eviterno cortejo.

Juan Carballeira, El pueblo gallego (31/01/1930)

O dois de fevereiro aparece no mesmo jornal uma pequena nota de Manuel Pazos Jiménez, autor do que desconheço qualquer dado bio-bibliográfico. Com o artigo, inclui-se um poema, Lied ohne worte, publicado originariamente em De Catro a Catro e uma fotografia que parece ser do poeta de Assados. No pdf consultado [Galiciana], a qualidade da fotografia é péssima, mas acho que o documento resulta muito interessante.

Manuel Antonio, al otro lado 


Manuel Antonio, el fuerte cantor del mar, de ese mar desvelado de espumas y brisas, se ha esfumado. En su pipa marinera consumió el tabaco del recuerdo pleno de eternidades.
No es ahora momento propicio para desempapelar el elogio. Su solo nombre, pleno de sugerencias renovadoras plasmadas en su libro "De catro a catro", manual de mares cosmopolitas y punto de apoyo del creacionismo gallego es más que suficiente para descubrir su fuerte personalidad.
 Ha caido no con un verso en la boca, sino hastiado de horizontes que hoy nos hacen pulsar en su exaltación un treno lúgubre y fatal.
Y así, pues, en Asados, frente al mar -su mar celta- cayó envuelto en promesas deshojando el almanaque. Manuel Antonio atravesó en la barca de Caronte. En la boca llevaba la moneda poética de su creacionismo.

Manuel Pazos Jiménez, El pueblo gallego (02, 02, 1930)

Quiçá o mais emotivo de todos os artigos é o escrito por Antón Vilar Ponte, já que desprende um apreço sincero não só pelo poeta, senão também pelo ser humano. Em 1921, Manuel Antonio pede a Vilar Ponte que lhe publique um poema no jornal A Nosa Terra, do que era director. Nesse mesmo ano celebrara-se em Vigo a III assembleia nacionalista. 

 Exemplos
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O noso poeta do mar

Eu sabía que Manuel Antonio hachábase apreixado por unha grave doenza, mais iñoraba que ista doenza poidese arrincalo tan axiña da terra. O lér a nova da sua morte sintín com'a friaxe d'un coitelo no mais fondo do meu ser, mentres d'orvallo queimante enchíanse os ollos...
E penso agora, como pensei cand'o Amado Carballo ceibou o derradeiro salaio, nos predileitos dos deuses, dos que dixo Plauto:
"Quem dií diligunt, adolescens moritur." [Frase das Bacanas que vem a dizer: "Quem vive bem, vê a morte antes de tempo."] Nota de Ilha de Orjais.
E lembro ô pálido e doente tísico aleman, pai espiritoal do "naladif" Laforgue, que se chamava Novalís e que morreu novo, com'o mesmo Laforgue, como Guyan, como Wateau, como Rodembach, como Becquer, como Julián Casal, como Gutiérrez Nájera, como tódol-os grandes predestinados, com'os eleitos do ceo do Arte, que nasceron con esceso dàmor e dèsprito.

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D'aquela, xa fai d'isto moitos anos, dirixía eu a revista "A Nosa Terra". Recibín pol-o correio unha cuartilliña c'unhos versos estranos na compaña d'unha carta moi soberbia no que pouco mais ou menos puiden ler: "Supoño que non publicarán este poema que mando e que coido que non está mal feito". Firmaba: Manuel Anonio. Nunca, en ningures, tiña ouvido tal nome. Pro os versos agradáronme, e viron a lus de contado, c'unhas liñas ô pé escribidas da miña mán a xeito sinceiro de alusa loubanza. Aqueles versos foron os primeiros do egrexo autor de "Catro a catro" que da forma manuscrita pasaron â forma impresa. Asín nasceu a miña amistade estreita e íntima con Manuel Antonio. Asín foi dend'entón o probe poeta agora finado, cada vez que viña â Cruña, un bô irmán no meu fogar, que inda sendo pequeno puidera dicir con frase de Gauthier, que se non veu nunca cheio de verdadeiros amigos. ¡O meu fogar, hoxe de loito, de loito para sempre, pol-a perda da boa muller, dina compañeira d'un home de combate que o alegraba, onde c'os brazos abertos tiveron acollida garimosa cantos pelingrinos do Ideal, alcesos no amor â terra a él chegaron!...

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Manuel Antonio, outo e magro, co'as meixelas tinguidas da coor rousada da tisis, c'o corpo esquélico, sempre levando a cachimba mariñeira nos labios finos e pálidos, tocado de chapeu bohemio e de chalina d'artista oitocentista, soñaba a toda hora con aventuras esóticas. "Vostede nasceu -dicíalle o noso filósofo Xohan Viqueira, outro malogrado do galeguismo, como Porteiro, como Losada Diéguez- para ser o enxebre poeta do mar". E isto foi, sinxelamente. A sua musa creacionista zugou a calma dos "camiños innumerabres", de que falara Esquilo, para eternizar no arte lírico impresións belidas e requintadas do océano, que teñen un senso inmurchabre de universalidade.
Pola patriótica editorial "Nós" os poemas "De catro a catro" sairon do ineditismo para se cinguiren de loureiros sempre vizosos. E con eses loureiros o nome de Manuel Antonio -o galeguista radical que arelaba a rexa acción- terá un posto d'honor nas nosas antoloxías líricas. No cimeterio de Asados o merlo xovial e luzivio de Guerra Xunqueiro, todo en loito de plumaxe negra e de peteiro de cera marela, eu ben sei que ha de lle facer exequias de cristal ôs restos apodrecidos do probe poeta mariñán, sobre dos que chora bágoas amargas a nova Galicia. 

P.S. -Manuel Antonio, en colaboración con Alvaro Cebreiro, o dibuxante, publicou fai anos, cando poucos o coñecían ainda, un manifesto de vanguardia, en galego, que era un verdadeiro panfleto iconoclasta. 

A. Villar Ponte El pueblo gallego (05, 02, 1930)

No museu de Manuel Antonio em Rianjo, há uma formosa fotografia na que podemos ver a Bal y Gay compartindo taças com ilustres rianjeiros. O compositor lucense era uma assinatura habitual de El pueblo gallego. Em 1930 data Bal y Gay Seis pezas para Canto e piano encol de verbas de Amado Carballo, composição que felizmente podemos escutar no som ambiente cada vez que visitamos o museu de Manuel Antonio.

S.O.S.
"Peace, peace! he is not dead, he doth not sleep
He hath awakened from the dream of life"
[Paz, paz! Ele não está morto, não está dormindo, 
apenas acordou do sonho da vida] Nota: Tradução Ilha de Orjais
Shelly: Elegía en la muerte de Kents.

"S.O.S." Así se titula un poema de este Manuel Anonio, marinero que acaba de emprender el viaje sin retorno. Y "Sós" tituló él otro de sus poemas. Curiosa coincidencia, ésta, del idoma gallego con la internacional telegrafía de los navegantes. Grito de angustia, señal de peligro, ancia de auxilio, ese S.O.S. deviene, no sé por qué extraños designios, la exacta grafía de la verba con que nosotros expresamos nuestra plural soledad.
Símbolo cristalino esta coincidencia en Manuel Antonio, poeta gallego, surcador de todos los mares, hombre que acuñó paisajes lejanos con su insobornable troquel gallego y que dió al ruiseñor aldeano un acento vibrante de pájaro marino. Poeta ejemplar en esta hora gallega, afincado en la tierra y su mirada a navegar, unido al destino de nuestra cultura y, por eso, conscientemente, incansable peregrino. Poesía, la suya, universal y gallega. Comunión estrecha de nuestro idioma con el más puro lenguaje internacional.
¡Sós! ¡S.O.S.! ¡Solos! ¡Auxilio!, quiero gritar yo hoy en la muerte de Manuel Antonio. Tras Amado Carballo, cuyo tránsito quebrantó radicalmente a nuestra lírica, perdemos ahora a este nuestro primer poeta. Ambos, desaparecidos en el umbral de los treinta años. "Los amados de los diosos mueren jóvenes". Tal vez. Y es tremendo que a Galicia corresponda el dar crédito a esa frase. Pero tal parece su destino.
¿A dónde dirigir ahora nuestra vista que no encontremos soledad?

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Con esta muerte, y a costa de todas nuestras esperanzas, ese libro singular que se llama "De catro a catro" penetra hoy en la inmortalidad. Manuel Antonio y su obra alcanzan -prematuramente, sí, pero para siempre- esa madurez que sólo se logra en la muerte. Manuel Antonio, a quien yo he visto atravesar las rúas compostelanas con su aire de sonámbulo, la mirada perdida en invisibles horizontes, ha despertado al fin. Desde ahora es una figura concreta, perfilada, cerrada y persistente. Figura, ya, del Pórtico de la Gloria de nuestra cultura. Definitivamente rodada su obra de imposibilidades, notaremos ahora toda su fuerza -"enorme y delicada".
Y sabremos, también, cuánto el futuro de nuestra lírica ha perdido en este definitivo despertar de Manuel Antonio.

Jesus Bal y Gay El pueblo gallego (06, 02, 1930)

Não conheço muitos mais artigos publicados imediatamente depois da morte de Manuel Antonio, fora destes de El Pueblo gallego. Há mais um de Otero Espasandín sobre o seu amigo em Nueva Espanha mas espanta-me, ou quiçá não tanto, a ausência de penas ilustres do nacionalismo galego.

Como esta postagem está a sair um bocadinho trágica, e só para descontrair, achego uma cantiga com uma história curiosa. Ao lado do meu computador tenho um teclado Yamaha, dotação da Xunta para as aulas de música em primária. Soa horrível, mas é muito útil para fazer harmonizações e arranjos para a escola. Quando lia os artigos sobre o passamento de Manuel Antonio comecei a perguntar-me como seria o enterro em Assados. Teriam ido vultos do galeguismo? A intelectualidade rianjeira?
Não faço a menor ideia, nem sei se alguém me saberá contestar a estas perguntinhas. Mas na minha cabeça começaram a sonar os sinos da igreja de Assados. Os sinos converteram-se numa melodia que levei ao teclado escolar, conhecido familiarmente como «o matraquilho». 
Eu não toco piano, apenas pouso os dedos para juntar sons e fazer acordes, mas o resultado da minha ensonhação manuelantoniana foi uma humorada que titulei Sinos para um poeta defunto. Canção para piano escolar e soprano prescindível.
Não mo levem a mal.


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sábado, 28 de dezembro de 2013

nº 177 Uma foliada rianjeira de 1955.

Na página web http://www.musicatradicional.eu estão-se a colocar digitalizadas, as transcrições do trabalho de campo realizado pelas missões folclóricas do CSIC entre 1944 e 1960. Fazia anos que vinha reclamando que a parte galega deste material, milheiros de fichas com partituras e anotações, viera para a Galiza. Se como parece este fundo estará disponível em breve para todo o mundo, poderemos gozar dum material de indubitável valor histórico, documental e, obviamente, também artístico, que nos vai permitir aos músicos contar com uma quantiosa base de melodias e de letras para futuras actualizações.
Entre o ramalhinho de registos galegos digitalizados, ainda escasso, eu encontrei uma delicatessen que, além disso, tem relação direita com a vila na que moro, Rianjo.

A história é esta:

Em 1943 o Padre Higínio Anglés começa a dirigir o Instituto Español de Musicologia dependente do CSIC. Os trabalhos de etnomusicologia correram por conta da Sección del Folklore, dirigida desde o 1944 até o 1955 por Marius Scheneider (1903-1982). A Sección de Folklore vai realizar 68 missões por todo o Estado Espanhol, recolhendo-se, como já disse, milheiros de cantigas transcritas com notação musical. 
Em 1955, o músico Pedro Echevarria Bravo (1905-1990) vem a Rianjo na sequência do que será a missão 46 e recolherá umas cantigas a Ramón Rodríguez Alcalde, marinheiro rianjeiro de 67 anos de idade. O tal Pedro Echevarria Bravo era natural de Villalmanzo, Burgos, mas desde o 1953 dirige a banda de música da Deputação da Corunha e desde o 1955 a de Compostela. Esta recolha tem um valor ainda maior se pensamos na escassíssima historiografia musical com a que conta o nosso concelho. Por exemplo, Rianjo não aparece no cancioneiro de Casto Sampedro, ainda que sim nos fundos recentemente publicados pelo Dr. Xavier Groba. Também não aparece nenhuma entrada na magna colecção de canto antigo galego da Dra. Dorothe Schubarth. Só Bal y Gay e Torner se acordaram de Rianjo no seu cancioneiro. 

Transcrição de Pedro Echevarria Bravo da cantiga Se chove, deixa chovere.


Edição com musescore (pdf)

Tal vez seja um erro irreparável pela minha parte, mas não me resisto a oferecer-vos uma actualização deste tema que fiz com minha sanfona. Eu não sou um bom sanfoneiro, nem o instrumento estava em uso, já que faz algum tempo que apenas toco. Mas hoje fui ao colégio onde trabalho e onde por acaso estava a sanfona. Tinha uma câmara a mão e sem muita preparação volveu a sonar em Rianjo, neste caso Taragonha, a velha foliada do senhor Ramón Rodríguez Alcalde. No vídeo, ao meu lado, vê-se uma maqueta da motora dos Cambeses feita pelo nosso alunado. Bom, aguardo que me desculpem o atrevimento.


sábado, 30 de novembro de 2013

nº 176 Um gaiteiro anônimo de Rianjo.

No museu Manuel Antonio de Rianjo há uma fotografia atribuída a Xosé Pérez, primo do poeta do mar, na que aparece um gaiteiro acompanhado de tambor e bombo. A foto é curiosíssima, com os homens em primeiro plano e as mulheres, muito novas, detrás. Gostaria imenso de saber quem é esta pessoa. Com seu traje e seu chapéu semelha um burguês da vila, tal vez um músico de banda, requinto ou clarinete metido a gaiteiro.

f.1

Quando vi esta imagem pensei noutra que temos no museu do meu cole, o C.E.P. Xosé María Brea Segade. Trata-se duma celebração, tal vez em homenagem a Castelao, o qual aparece no centro da fotografia justo debaixo do gaiteiro e dum padre com charuto.


f. 2


Não lembro quem nos cedeu esta fotografia, mas acho que foi Miguel Somoza e que procede das suas investigações em Bos Aires. O gaiteiro, também trajado e com chapéu, tem muito parecido com o do Museu de Manuel Antonio, mas a colocação do ronco no ombro contrário parece descartar que se trate da mesma pessoa.  

Por último, também entre as fotografias atribuídas a Xosé Pérez, há uma da banda de Piñeiro. Ao fundo vê-se o escudo da casa da Rua de Abaixo, pelo que a foto foi tirada colocando-se entre o que hoje são os estabelecimentos de congelados  Neixón e pescados Curota.

f. 3
 
No lado direito, debaixo da palavra TENDA, há um homem com barba e chapéu. Estou convencido de que  éo gaiteiro da f. 1 e que quiçá não é casual a sua presença junto aos músicos da banda.
Alguem conhece a este gaiteiro?

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

nº 175 Uma sanfona da goiva de Urbano Anido.


D. Urbano Anido (Mondonhedo,1834; Compostela, 9 de setembro 1930) foi um muito importante ebanista com oficina na rua compostelana do Hórreo. A primeira notícia que teve dele foi graças a um documento já publicado neste blogue. Segundo os dados que ele oferece, o mestre Anido construiu um «Organillo de cilindro» para ser exibido na Exposición agricola industrial y artística de Santiago de Compostela celebrada em 1858. 


Na altura, documentando-me sobre o artesão, encontrei-me com a surpreendente notícia de que uma secretária fabricada por Anido viajara a EE.UU em 1892, por iniciativa do banqueiro galego residente em Nova Iorque, Manuel García. Segundo o artigo de José Tarrío García publicado na Gaceta de Galicia, o móvel ia fazer parte da World's Columbian Exposition de Chicago a acontecer em 1893. Não dei confirmado se foi finalmente exposto.


O artigo em questão foi ficando oculto numa pasta do meu computador, junto com muitos outros documentos curiosos dos que apenas posso comentar nada. Mas, por vezes, a fortuna alia-se da nossa parte e, como por acaso, aparecem novos documentos, dados, comentários que deitam um bocado de luz sobre as velhas histórias já quase esquecidas.
O caso é que a secretária de Urbano Anido tem profusas talhas nas que se amostram cenas próprias de romarias galegas, paisagens camponesas com músicos e bailadores vestidos com o fato tradicional. Não vou descrever pormenorizadamente cada cena, tão bem descritas por José Tarrio, só vou falar daquela que me levou, na altura, a guardar este artigo. Trata-se duma tábua que pecha o corpo inferior do móvel, por trás dumas pilastras que sustêm cinco arcos de meio ponto. Talhada pela goiva de Anido, podemos ver, junto com outros instrumentos musicais do folclore galego, uma sanfona. 
Esta semana, na sequência de uma outra investigação que nada tem a ver com esta, dei com uma página de subastas http://www.liveauctioneers.com na que fora posta a leilão o móvel de Urbano Anido. Graças às imagens que aparecem na mesma podemos saber como eram as cenas e os instrumentos talhados pelo artista da rua do Hórreo.


Existem muitos pontos de contacto entre os artistas e intelectuais da Compostela de entre séculos e a sanfona, instrumento, na altura, decadente, evocatório duma época que termina. Já neste blogue dava conta de como Cándido Castro López, vizinho da rua de Pitelos, expunha em 1909, também em Compostela, uma sanfona feita por ele mesmo. Isidoro Brocos, Manuel Vidal, o próprio Castelao... nomes unidos à sanfona como símbolo, tal ve,z do saudosismo de toda uma geração.











sexta-feira, 27 de setembro de 2013

nº 174 Um duo de sanfona e frauta.

A primeira vez que vi referenciado este conto foi no histórico artigo de Julio García Bilbao, Averiguaciones sobre la zanfona de Faustino Santalices. Recentemente, Pablo Quintana cita-lo-à na palestra apresentada em Ponte Vedra para a SAGA, que já podemos ver na rede os que na altura, infelizmente, não demos assistido. [ver aqui]
O autor do relato é Manuel Vidal (Maceda, 1871-Compostela, 1941) um padre, militante agrarista primeiro e  autonomista depois, possuidor duma extensa obra narrativa, teatral e ensaística. 
Acostuma-se a citar O derradeiro xuglar de viola pelos valiosos dados que achega referente à sanfona, dados que não procedem do estudo minucioso, como no caso de Isidoro Brocos ou Casto Sampedro, senão da simples observação dum intelectual curioso. 

Num plano puramente pessoal, fiquei impressionado pela cena na que Manuel Vidal relata um concerto realizado num paço de Lalim a cargo do duo formado por dois senhoritos, um moço desconhecido de Bergondo na sanfona e Jorge Quiroga na frauta. Este concerto evocou-me muitas coisas, velhas lembranças e alguma hipótese que apenas me atrevo a esboçar. Contudo, vou expor as minhas ideias com vontade de que na rede alguém as leia e até mesmo lhes acrescente ou refute alguma coisa.

Que eu saiba, O derradeiro xuglar de viola foi publicado por vez primeira na revista Ultreia nº 4 (15/07/1919). No texto há duas cenas contrapostas que ilustram muito bem a belle epoque da cultura tradicional galega, um intre de descobrimento definitivo do folclore pelas elites culturais e abandono paulatino de certos usos e costumes pelas populares. Assim, no mesmo conto no que se nos fala do último cego compostelano, um velhote canso das misérias do seu ofício, também se descreve um concerto numa Casa Grande, evocador das soirées do século XIX como a que tivemos o privilégio de reviver em Vilancosta.
Desta cena, na que se executa um duo de sanfona e frauta, é da hoje quisera falar.

Em primeiro lugar, devemos fixar-nos no cenário, o espaço no que está a acontecer o concerto. O paço de Quintela é uma propriedade situada na paróquia de Catasós no concelho pontevedrês de Lalim. Pertencia à família de Xorxe, o frautista, cujo nome completo é Jorge Quiroga García (Banga, O Carvalhinho, ? ; Madrid, 03/02/1953),  proprietário, desde 1935, do balneário de Carvalhinho. Jorge Quiroga era filho de Eduardo Quiroga e sobrinho de José Quiroga, o marido da Pardo Bazán. Este dado é interessante já que o padre Manuel Vidal foi capelão no Paço de Meirás, propriedade da condessa, entre os anos 1914-1918, rematando este serviço um ano antes da publicação de O derradeiro xuglar da viola.
Por certo, a Pardo Bazán também retratou num conto a um sanfonista, esta vez ao Tio Amaro de Espadanela e a sua acompanhante às conchas Sidorinha Finafrol.

Mas, chegados a este ponto, sabemos ou quando menos intuímos a identidade do sanfonista?
Pois pelo que a mim respeita, não faço a menor ideia. Quando li que era um músico multi-instrumentista e espontâneo, palavra que tal vez queira significar autodidata, pensei em João Vicente Viqueira. Tudo parecia calhar bem. O Viqueira era um corunhês de Bergondo, concretamente radicado em Vixoi, na Quinta dos Cortão. Por outra banda, o Jorge Quiroga tinha relação com Paderne, nomeadamente com o Paço dos Montecelo, herdança familiar da sua mulher Amparo Quiroga Navia. Mas resulta pouco crível que de ser Viqueira, Manuel Vidal ignorara o seu nome ou o esquecera, a não ser que se trate dum "de cuyo nombre no quiero acordarme...". Também é difícil associar, mesmo para um único concerto de música, a duas pessoalidades tão dispares, a do filósofo da I.L.E. com a do sportman filhote dos Quiroga.

Bom, fique aqui o texto com a ilustração original da capa para um leitura atenta e gozosa. O desenho de Castelao amostra a um cego com os atributos próprios do seu ofício, o de músico de la legua, chapéu de aba ancha e capote, com uma sanfona ligeiramente desproporcionada para a figura do tangedor. 

Retomarei diversos aspectos de O derradeiro xuglar de viola noutras postagens quando tenha mais vagar, mas por enquanto, desfrutem do texto1.

1. Embora, o texto esteja escrito com numerosos e grosseiros erros, decidi, como sempre faço, presenta-lo na sua versão original.



O derradeiro xuglar de viola
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A viola, conocida co nome onomatopéyico de zanfona, no nosa terra, e o instrumento de mais groriosa hestoria da civilización española, o símbolo venerable da nosa musa popular, a maiestra musical da lingua de Castela e da lingua galaica, desde fís do sécolo doce, en que deron os primeiros vaxidos poéticos as doces vibracións das suas cordas sonoras.
Acompañados da viola entonaron os xuglares castelans e os xuglares galaicos os cantares de jesta, que ensalzaban as proezas e caudillos da Reconquista, espertando e alentando nos espritos os grandes sentimentos da gran raza ibérica.
Acompañados da viola cantáronse dispoixas os romances que sucederon as jestas, estendéndose os asuntos d’ amor, de costumes e outros mais, todos eles cheos de gracia e de inxenio, de naturalidade, de frescura e de poesía.
 Os dôces acordes da viola latexaron de alegría, moitas veces, os curazóns dos nosos antepasados, cando cáxeque non había mais medios de counicación espiritual que os sempáticos xuglares, e forxáronse as virtudes românticas da y-alma española que levou a cabo empresas cen veces mais grandes que as homéricas que cantaran os xuglares da famosa Grecia.
Os melancólicos e misteriosos acordes da viola derramaron na fala gallega esa suavidade e melosidade qu’ a distingue, e lle deu a excrusiva da lírica, na mesma Castela, en todo o sécolo trece e parde do sécolo catorce.
Unha das razós con que probarse pudera a influencia da viola na fala da nos terra é a sua supervivencia nas nosas costumes populares, sendo quizáis Galicia a últema rexión de España en que inda se toca, ou que o menos se tocou polos cegos nas nosas feiras e romeirías hastra fai moi poucos anos. Eu oína moitas veces na famosa romeiría de Sainza, non lonxe de Xinxo de Limia; na festa de Don Fanque, xunto a Maceda, e na de Nosa Señora dos milagres; e non fai moitos meses inda oína on distinguido mozo coruñés, de Bergondo, múseco xenial e espontâneo que toca toda clás d’ instrumentos –sinto non recordar o nome- na casa que n’ aldea de Quintela ten o nobre patrício don Eduardo Quiroga, meu respetable amigo e compañeiro de caza.
N’ aquela casa solariega agasalloume o xenial múseco bergondense con tres concertos de viola acompañada a frauta polo sempáteco Xorxe, fillo do señor Quiroga, e xuro polo nome da miña nai, que en toda a miña vida non sentín o misterioso escalofrío da emoción da múseca, como n’ aqueles inolvidabres concertos de Quintela ¡nin cando oín tocar o violín a Sarasate e a Manolo Quiroga!
¿Qué digo violín? Nin cando oín tocar a nosa docísima e garimosa gaita galega os Trintas de Trives, a Modesto Sánchez de Rivadavia, a Elices de Celanova, a Tomás da Ponte de don Alonso, se me escaparon bágoas tan fondas, mornas e xinselas, nin me fixo sentir e querer tanto a Galicia como cando gocei dos sentimentás, melodiosos e misteriosos acordes d’ aquela meiga viola.
Non me preguntedes que tonadas tocou que non o sei; somente sei que moitas d’ elas parescían talmente ecos cercanos das melopeas meioevás con que se cantaron as jestas e as Cantigas de Sta. María do Rey Sabio, dend’ os tempos de Xelmírez hastra Xan de Padrón e Macías o Enamorado, e dospoixas os romances populares.
Un poeta castelan a quen, sen sabere por qué, faguía chorar a gaita galega, adicoulle unha trova, na que non sabe decir se canta ou chora. A cantora do Sar e de Follas Novas repricoulle com outra dicindo: Non canta, que chora. A mín pareceu-me nos concertos aqueles que a viola canta e chora.
Nos comenzos e prelúdios, coma alma atormentada por unha cuita negra e amarga, que a espertan do noso, alivio dos tristes, espertaba tamén a viola fosca e mal-humorada, renxendo dooridamente, como os chideiros dos carros da nosa terra renxen cando van cargados polas corredoiras nas noitas sereas do vran; logo iba trocando aqueles tristes queixumes en notas e acordes de suavísema armonía, hastra que olvidando as suas cuitas e tristuras, cantaba alborozada. ¡Quén poidera decir como cantaba e como choraba!
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N’ este Santiago de Compostela, relicário de preciosas antigüedás, vive, no Carme d’ Abaixo, o últemo descendente d’ aquela ilustre xeneración de xuglares de viola, mensaxeiros entusiasiastas e ben amados do arte e da poesia, das lendas, costumes e sentimentos da nosa Patria grande e da nosa Patria feiticeira e pequeniña.
Vive inda na groriosa Compostela o últemo xuglar de viola, aunque xa non tocará mais, pois está triste, cego, cargado de anos e ulvidado, coa sua sanfona enfundada, doéndose das tristes mudanzas dos tempos, en que xa non se lle fai ningún caso, e añorando os anos felices en que era o encanto dos pelegrinos nas foliadas do Santo Apóstol, e rrecorría alegremente as feiras e as romerías de Galicia.
Non hai moito qu’ o vin pasar, cabizbaixo, co seu carís hierático, coas suas antiparras milenarias, co seu chaquetón todo remendado, sen mais guía que un can vello pola rúa do Pombal abaixo.
Levaba a zanfona colgada as costas por unha baraza averdosada, e corrín tras dél pra lle preguntar onde vivía e se podia faguerme o favor de tocarme un pouco, aunque fose na sua casa; mais contívenme pois pareceume unha sombra ancestral d’ aqueles tempos d’ amor e de relixiosidode, de patriotismo e de poesía, que pasaron pra non velveren, e que se debía respetare como se respeta unha cousa misteriosa e sagrada.
Aunque vive inda hoxe, según me dicen, como se non vivira. ¡Non volverá a tocar máis o derradeiro xuglar de viola!
Despóis que él cerre os ollos xa non nos quedará mais recordo do venerabre instrumento da nosa poesia popular que o organistrum, pai da viola, que teñen nas maus os músicos anxélicos do noso Pórtico da Groria.

Vidal Rodríguez, Manuel (1871-1941) Contos galegos d’antano e d’hogano Santiago de compostela: [s.n.], 1920 (El Eco Franciscano)

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

nº 173 Policromia no cruzeiro de As Mirães, o Aranho.

Sempre me fascinou o uso da cor nos cruzeiros e petos de ânimas e não compreendo como carecemos de uma tese de doutoramento ou algum trabalho sério que fale deste tipo de policromia ou quando menos eu não a conheço. Afortunadamente, ainda que escassos, conservamos alguma obra que nos permite saber como seriam as coisas quando cruzeiros e petos luziam suas cores em todo o seu explendor. Um dos exemplos mais formosos é o de Marrúbio, em Moimenta, bem conservado graças a estar coberto por um alpendre. Nele podemos ver e imaginar pigmentos vermelhos ou telha, cobalto, preto, como no hábito do Santo Antão, verde...

Na paróquia de Rianjo há dois cruzeiros extraordinariamente parecidos ao de Marrúbio e que ainda conservam traças da policromia original. São o cruzeiro da praça de Dieste e outro no Rianjinho, próximo ao paço de Viturro. Coloco as fotografias dos três com as suas datações:

Marrúbio. Fonte: diazelvis 1778


Praça de Dieste 1791

Rianxinho. Fonte: Fotos de Rianxo 179?

Como se pode apreciar nas fotografias o modelo compositivo é o mesmo nos três, sendo os de Rianjo praticamente gémeos. O do Rianjinho presenta entre o capitel e a cruz um prisma rectangular, antiestético e acho que desnecessário, fruto duma restauração do 1994, como consta na rudimentar inscrição.

Rianjinho. Detalhe.

Para outra ocasião deixo alguma reflexão mais sobre o modelo destes cruzeiros onde os paus da cruz presentam os nós dos ramos cortadas e as virgens são especialmente formosas, como neste outro exemplo taragonhês do que já tenho falado.

Coincido com Castelao quando afirma: «Podemos decir que non hai cruceiro que non fose pintado algunha vez - pol-o menos cando se fixo- [...]» As cruces de pedra na Galiza p. 129 Se isto é assim, o escultor devia conceber o seu trabalho para ser iluminado e só consideraria rematada a sua obra quando os drapeados, os mantos, os rostros colheram cor. Nos cruzeiros acima citados resulta evidente. As partes luminosas do fato da virgem pintavam-se de vermelho e as escuras, ocultas pelas dobras, de preto.

Mas que acontecia com os cruzeiros de capela ou Loreto? Como eram pintados? Eu faço a ideia de que o basamento, o varal e a capela eram-no de branco. Obviamente é só uma impressão motivada por fotografias e por restos de pintura que tenho observado neste tipo de cruzeiros. De ser isto certo, quiçá esta prática tenha a ver com a própria natureza do monumento, simular uma capela ou mesmo a Santa Casa da virgem de Loreto. Mas a cruz, as imagens e o interior do nicho sim eram profusamente policromadas.

Numa brochura muito interessante titulada Petroglifos cruciformes, cruceros y petos de animas dirigida por Domingo Regueira González, autor da web Petroglifos cruciformes, podemos ver o estado do cruzeiro de Santa Clara no Deão Grande ca. de 1986 [ano de publicação].


Hoje, apenas 27 anos depois, o cruzeiro de Santa Clara sofreu o ataque dos cromofóbicos, estando na atualidade em pedra viva. A maioria dos monumentos perderam as suas cores pelo efeito do passo do tempo, mas outros foram maltratados, tirando-lhes de mala maneira a sua iluminação. O exemplo de Santa Clara em Riveira é significativo. Alguém pode dizer que a pintura já não era a original, que fora repintado pelos vizinhos, que a imagem da virgem com o neno resulta grotesca. É possível. Mas também é possível que a limpeza fora feita, neste ou em tantos outros casos, por funcionários municipais sem qualquer responsabilidade, mas também sem qualquer preparação. Quem sabe o dano que puderam provocar com os seus atos!


Mas agora interessa um cruzeiro dos nossos, um que se encontra nas Mirães, paróquia do Aranho.
O do Campo do Rio é um cruzeiro de capela, em cujo interior houve outrora a imagem duma virgem orante, hoje desaparecida, como podemos observar no desenho de Castelao.

É no interior deste nicho que encontramos restos de pintura de cor vermelha sobre um revocado branco.




Uma possível interpretação da trama desenhada nas paredes interiores poderia ser esta:


Em definitiva, um cruzeiro é uma obra escultórica em pedra policromada. A razão de que na atualidade vejamos estes monumentos desprovidos de cor tem diversas explicações, resulta um tema complexo e merece da atenção de especialistas. Mas nós, o zê povinho, temos de perceber a importância que tem conservar os escassos restos de policromia na esperança de que no futuro esta pintura esvaída, fragmentada, nos permita reconstruir, mesmo que só de modo virtual, o explendor cromático original.