sexta-feira, 23 de agosto de 2013

nº 172 Uma fotografia de Gerda Taro.

Muitas vezes tenho olhado curioso para esta fotografia. Há algo nela que me atrai, que me atrapa, e não tem nada a ver com que os protagonistas sejam músicos, ou tal vez sim.

A fotografia achega-nos uma história dramática. A bordo do acoiraçado da armada espanhola Jaime I, navio que permaneceu fiel a república, um grupo de homens batem palmas e sorriem por enquanto um marinheiro toca um acordeão diatônico de oitenta baixos, Monferrato? e outro uma gaita de foles. A foto está assinada por Gerda Taro, fotografa de prensa companheira do também fotógrafo Robert Capa e datada em Almeria em fevereiro do 1937. 

O Jaime I é bombardeado no porto de Almeria três meses depois de tirada esta instantânea, primeiro por aviões italianos e em dias sucessivos por hidroaviões vindos de Cádiz. Embora com grandes destroços consegue chegar a Cartagena onde tem a sua base. O 17 de junho, quando o barco está a ser reparado, uma explosão no seu interior causa trezentos mortos e o fim definitivo do acoiraçado. É mais que possível que entre os falecidos estejam muitos dos que aparecem na fotografia, quiçá também os músicos.

Um mês mais tarde, em 26 de julho, Gerda Taro morre em plena batalha de Brunete a consequência das feridas provocadas pelo atropelo dum tanque.


                    

segunda-feira, 15 de julho de 2013

nº 171 Armas de destruição massiva.

Já contei neste blogue os meus terrores associados ao uso de armas. Numa família de militares eram frequente as pistolas na casa, como a astra 9 mm corto do meu pai que vi armar e desarmar muitas vezes sobre a pequena mesa da nossa sala de estar. Que nome mais horrível o de sala de estar! Supõe-se que todas as salas são para estar, ainda que bem mirado, a biblioteca e o comedor são mais bem para ser.
Pois bem, nunca fui violento e quando houve de sê-lo preferi os punhos aos artefatos, o mais sofisticado dos quais, a escopeta de ar comprimido. A minha estava quase que sempre atorada já que na troca de balins, havia-os de perdigão e de copa, eu disparava com bolinhas de papel molhadas em cuspe.
Mas igual que o cérebro humano, nomeadamente o infantil, constrói bonecos ou instrumentos musicais pobres, também faz armamento pobre com o que lutar nas, v. gr., encarniçadas batalhas interbairros. Se a escopeta era o aparelho mais elaborado, o menos era sem dúvida o tutelo, esta vez sim, que nome mais formoso!
Os melhores eram os de cana de bambu. Havia quem os queria longos, quase como cerbatanas indígenas. Eu preferia-os curtos (algo a ver com o pene e com Freud?), os quais precisavam de menos folgos para o disparo certeiro. A munição era a base de sementes de hedras, havendo, por sua vez, uma grande variedade de tamanhos e cores. Os do meu bairro íamos a um lugar que ficou com esse nome, Rua das Hedras, e, mais uma vez a madalena de Proust, o sabor de aquelas sementes na boca ficou intimamente ligado aos tempos da minha infância.
Antes de que os contrabandistas se tornaram narcos, a única pistola que havia no meu povo era a do meu pai. Com tudo, as crianças tínhamos os nossos revólveres feitos de pregadores carregados com milhos os quais saiam projectados a uma velocidade considerável. Sempre pensei que aquele artefacto tão engenhoso, a pistola de pregadores, era um invento carcamão. Pois não. Está estendido por todos os lugares onde se usam os aparelhos para assegurar a  roupa com mole de arame, um invento do mexicano Rafael Guillermo Salazar Peña, cuja vida daria para um romance de Bolaño. Este homem natural de Monterrey nasceu em 1918 e o seu invento só se popularizou após a segunda guerra mundial, assim que o nosso brinquedo tem de ser uma coisa relativamente recente.
Lembro que também existia fuzilaria, esta vez com pregadores, uma tábua, uns cravos e uma goma. Com estas espingardas atirava-se mormente às cachas, sendo o belisco uma brincadeira de mau gosto. Sei-no bem, já que eu era mais vítima que franco-atirador.
Na seção de cordas o rei era o arco feito com varetas de guarda-chuva e linha de pescar. As setas eram afiadas contra as pedras dos muros, ficando espetadas nos troncos das árvores com suma facilidade. Um bom arqueiro com varetas dum sete-paróquias podia chegar a matar, isso sim, apenas pequenos animalinhos como ratos ou pardais.
Com tudo, o nosso armamento raiava as vezes com o absurdo. Influenciados pelas películas de Bruce Lee que massivamente projectavam no Capitol começamos a utilizar nunchacos ou lunchacos, para nós unchacos, de fabricação caseira. O uso desta arma das artes marciais chinesa pode explicar muitos dos erros cometidos na vida pelos meus coetâneos. As nossas matracas eram feitas primeiramente com cabos de legonha, ganchos e umas cordas ou inclusive delgadas cadeias de ferro. A incosistência dos ganchos convertia muitas vezes ao nunchaco numa arma de arremesso, sendo frequente o voo pelos ares e sem controlo dum dos seus extremos. Imitando ao tal Bruce Lee fazíamos katas denominadas ventoinhas, moinhos... dando berros agressivos que apenas dissimulavam a dor produzida pelas frequentes autolesões. Mesmo, num alarde de estética ninja, passávamos a matraca por baixo das pernas, recolhendo a cegas um dos cabos pelas costas. Quiçá os meus problemas reprodutivos tenham origem nesta prática circense. 
Dizia ao princípio que a arma mais simples era o tutelo, mas fazendo memória tenho que dizer que estou errado. No campo de batalha, estou a lembrar as atividades extraescolares no Pombal, nada melhor que uma pinha. Se só pretendes brincar, sem causar muitas baixas, o melhor é um pinha aberta, seca, ligeira. Para amolar bem amolado, as úmidas, pinhas ensimesmadas, com pinhões introvertidos e taciturnos.
Eis a panóplia carcamão que ainda lembro. Da minha geração, tem de haver muitas cicatrizes em crânios e quiçá também nas almas, pois as derrotas sempre são dolorosas. Lamento se a descrição dos artefactos não foi de tudo precisa, mas nisso das lutas a vida ou morte, eu sempre preferi o corpo a corpo.

Já não sei cantar canções de crianças...
Manuel Antonio


As ruas todas têm fome de meninos.
Noutros tempo
o eco eram pisadas diminutas
esvaziando as poças a pontapés.
Havia amores diminutos
com custosos presentes aos namorados:
uns brincos de fúchsias
ou um colar de camomila.
Havia diminutos fatos
que nunca passavam desapercebidos,
diminutos lanches
de tijolo e chuchamel,
e um sorriso diminuto
a abrir hospitalário o seu portelo.
Mas hoje as ruas estão fomentas de meninos
quem sabe se fugidos
para um outro território sem infantários-infantívoros.

Poema já publicado neste blogue: postagem nº 09

terça-feira, 9 de julho de 2013

nº 170 Roberto Bolaño e a Galiza I

LOS DETECTIVES SALVAJES

A leitura de Los detectives salvajes LDS Anagrama 1998 permitir-nos-à continuar a reflexionar sobre a relação de Roberto Bolaño com a Galiza e até fazer-nos uma ideia do que o nosso país significava para ele. Sabemos pouco da ascendência galega de Bolaño, só que o avô paterno emigrou a Chile onde casou com uma catalana que lhe deu nove filhos. Um deles foi León Bolaño Carné, morto no 2010 e pai do Roberto.
Postos no caminho de construir um discurso em tom galego sobre o autor chileno, podemos sublinhar as três referências que sobre a Galiza encontramos em LDS.

1. p. 216-220 Fala Amadeo Salvatierra. 

Um livro de Roberto Bolaño e sempre uma espécie de reader de leituras curiosas, um exercício de transtextualidade que funciona a modo de engado para que termines por morder a isca, ou seja, indo a procura do texto citado. Num dos capítulos de LDS que tem como protagonista a Amadeo Salvatierra, cita-se o manifesto do movimento estridentista mexicano, Actual nº 1. Esta brochura foi redigida por Manuel Maples Arce (1898-1981) e resulta um texto delicioso e sem qualquer desperdício. Lendo esta proclama ultra-vanguardista ocorreu-se-me a frase: «eu já era pós-moderno antes de tu nasceres», sobre a que deveriam reflexionar aqueles que, tal como disse Victor Erice referindo-se ao cinema espanhol, chegaram à pós-modernidade sem ter passado pela modernidade (im Relatos Reales de Javier Cercas).
No Actual nº 1 faz-se um uso da linguagem demolidora que mais que ultra, às vezes parece mesmo barroca:

«Al fin, los tranvías, han sido redimidos del dicterio de prosaicos, en que prestigiosamente los habia valorizado la burguesía ventruda con hijas casaderas por tantos anos de retardarismo sucesivo e intransigencia melancólica, de archivos cronológicos». No apartado V afirma-se: «¡Chopín a la silla eléctrica! (M.M.A. [Manuel Maples Arce] trade mark)».

Bolaño deveu gostar muito do discurso iconoclasta estridentista tão em sintonia com os boicotes dos  moços infrarrealistas ou com textos seus como Consejos sobre el arte de escribir cuentos onde diz:

«[...]
4) Hay que leer a Borges. Hay que leer a Rulfo y a Monterroso. Un cuentista que tenga un poco de aprecio por su obra no leerá jamás a Cela ni a Umbral. Sí que leerá a Cortázar y a Bioy Casares, pero en modo alguno a Cela y Umbral.

5)Lo repito una vez más por si no ha quedado claro: a Cela y a Umbral, ni en pintura». Cuentos Anagrama; Barcelona 2010 p. 7

O manifesto estridentísta encerra-se com um Diretorio de Vanguardia que inclui a todos os escritores das vanguardas europeias e americanas que supostamente «no han sido maleados por el oro prebendario de los sinecurismos gobernistas, a los que aún no se han corrompido con los mezquinos elogios de la critica oficial y con los aplausos de un público soez y concupiscente [...]» Actual nº 1. Pois bem, nesse diretório há quatro galegos: Ramón María del Valle Inclán (1866-1936), Vicente Risco (1884-1863), Evaristo Correa-Calderón (1899-1986) e Eugenio Montes (1900-1982). As pergunta fão-se inevitáveis:

1. que levou a Maples Arce a incluir a estes quatro autores galegos de três gerações diferentes?
2. e, nomeadamente, que fazem nesta lista dois moços que andam por volta dos vinte anos de idade e sem apenas obra impressa?

A resposta achega-no-la o professor Carlos Garcia no artículo titulado "Manuel Maples Arce: correspondencia con Guillermo de Torre", 1921-1922 Revista Literatura Mexicana, Vol 15, No 1 (2004) Graças a este trabalho sabemos que Maples Arce conhecia a revista literária Cosmópolis, da que era colaborador de Torre: «A través de las páginas de Cosmópolis, he seguido su interesante labor de propaganda y divulgación de las nuevas tendencias literarias.»  Carta de MMA a GT, México, 8-XII-21
Se fazemos uma busca dos artigos assinados por Guillermo de Torre em Cosmópolis encontrar-nos-emos com um datado em novembro do 1920 titulado "El movimiento ultraísta español" p.91-113. Este longo trabalho é a base do diretório redigido por Maples Arce e a razão única de que elementos tão afastados como Valle Inclán e Montes apareçam juntos.
Resulta fácil de demostrar o que acaba de dizer por quanto a nômina de artistas de Actual nº 1 e "El movimiento ultraísta español" colocaram-se, inclusive, na mesma ordem:

«Mauricio Bacarisse. Rogelio Buendía. Vicente Risco. Pedro Raida. Antonio Espina. Adolfo Salazar. Miguel Romero Martínez. Ciriquiain Caitarro. Antonio M. Cubero. Joaquín Edwards. Pedro Iglesias. Joaquín de Aroca. León Felipe. Eliodoro Puche. Prieto Romero. Correa Calderón. Francisco Vighi. Hugo Mayo. Bartolomé Galíndez. Juan Ramón Jiménez. Ramón del Valle-Inclán. José Ortega y Gasset. Alfonso Reyes. [...] » "Directório de Vanguardia", Actual nº 1

«Mauricio Bacarisse, Rogelio Buendía, Vicente Risco, Pedro Raida, Antonio Espina, Salvat Papasseit; los críticos Adolfo Salazar, Miguel Romero Martínez; los prosistas Ciriquiain-Gaiztarro, Antonio M. Cubero, Juan Héctor Picabia, Joaquín Edwards, Pedro Iglesias, Joaquín de Aroca, y posteriormente, acogiéndose a nuestras pablicaciqnes, León Felipe, Eliodoro Puche, Prieto Romero, Correa-Calderón, Ciria Escalante y Francisco Vighi, y los sud-americanos Hugo Mayo, José-Juan Tablada y Bartolomé Galindez. Cardinalmente los altos espíritus consagrados de Ramón Gómez de la Serna, Valle-Inclán, Juan Ramón Jiménez, José Ortega y Gasset y Gabriel Alomar [...]» "El movimiento ultraísta español"

Eugenio Montes aparece no Directorio... nos primeiros lugares junto a Rafael Cansinos-Asséns, Ramón Gómez de la Serna, Rafael Lasso de la Vega, Guillermo de Torre, Jorge Luis Borges, Cleotilde Luisi, Vicente Ruiz Huidobro, Gerardo Diego ou Pedro Garfias. Isto é importantes pois a mesma lista estabelece uma hierarquia cuja presidéncia há corresponder a Cansinos-Asséns e onde a colocação privilegiada de Montes remete-nos à uma posição fidalga dentro das vanguardas hispano-americanas. Por todo isto resulta um bocado surpreendente a afirmação da professora Eva Valcárcel quando diz: «porque ni Manuel Antonio ni Eugenio Montes, el poeta de Bande, tenían idea de lo que estaba pasando en la vanguardia de París». La Voz de Galicia, 23/05/2009 O poeta de Bande, efectivamente, como se diz neste artigo de La Voz, devia muito a Vicente Risco, mas em 1921, momento no que se publica Actual nº 1, Eugenio Montes tinha uma sólida carreira como colaborador das mais prestigiosas revistas literárias tais como Grecia ou Cervantes e uma grande rede de amigos, conhecidos, colaboradores, até extremos que apenas posso intuir. Quanto mais eu me aprofundo na sua biografia mais convencido estou de que Montes além de poeta, periodista ou diplomata, na realidade era uma aranha a tecer uma grande aranheira da que muitos poucos intelectuais da sua época ficaram a salvo.
Só como exemplo das suas caras amizades dizer que na revista Grecia vão-se publicar nos diferentes números poemas dedicados pelos seus autores a Eugenio Montes, entre os quais, Guillermo de Torre, Gerardo Diego, Ernesto López Parra, Vicente Risco, José de Ciria y Escalante ou Luciano de San-Saor [pseudónimo de Lucia Sánchez Saornil].

Sobre a revista Grecia (50 números entre 1918 e 1920) paga a pena sinalar a participação na mesma de Vicente Risco. O escritor de Ourense era já, na altura, um autor consagrado e com alguma intervenção na atividade cultural da capital do reino. Em 1914 pronunciou uma histórica conferência no Ateneo cujo tema foi a obra de Rabindranath Tagore, que um ano antes fora galardoado com o Nobel de literatura.
Eis uma breve notícia da presença de Risco na revista Grecia:

- Em 20 de maio de 1919, nº XVI, poema de E.M. dedicado a V.R.

- Em 10 de dezembro de 1919, nº XXXV, poema de V.R.

- Em 1 de junho de 1920, nº XLVIII, poema de V.R. dedicado a E.M.

Há que lembrar que é em janeiro do 1920 quando Risco publica na revista Nós o seu poema futurista, em galego, U...ju ju... 

2. p. 427-448 Fala Xosé Lendoiro.

Xosé Lendoiro é um advogado de origem galega que edita uma revista de poesia graças ao dinheiro ganhado defendendo «financieros deshonestos, los banqueros desfalcadores, los narcotraficantes, los asesinos de mujeres y de niños, los que lavan dinero, los políticos corruptos» p.440 Muitas das páginas de LDS estão repletas de referências autobiográficas; poderia haver algo de real na trama de Lendoiro?
Com certeza, não resulta difícil encontrar editores galegos em Catalunha, principalmente estabelecidos em Barcelona. A mim, e assim de memória, ocorrem-se-me os nomes de Gonzálo Canedo [Libros del Silencio], Olegario Sotelo Blanco [Sotelo Blanco ed.], Manuel Moleiro [M. Moleiro] ou Heitor Rodal [Edições da Galiza]. Mas acho que o Lendoiro é uma escusa para expôr o que a Galiza é no imaginário  bolañês.
Xosé Lendoiro viaja numa roullotte por terras galegas, é dizer, «por la umbrosa y elemental Galicia». p. 428 Se a estes dois adjetivos, umbrosa e elemental, acrescentamos primitiva, considero perfeitamente definida a imagem que do nosso país tem Bolaño. Um território anacrônico, como as latinices de Lendoiro.
Neste percurso pela Galiza, o advogado barcelonês instala o seu veículo num camping de Castro Verde, Lugo. Resulta evidente que esta localização de LDS teve muito a ver com que uma das paróquias do concelho luguês de Castro Verde se chame Santa Baia de Bolaño.
Roberto Bolaño põe na boca de Xosé Lendoiro uma definição demolidora da nossa terra: «[...]en una Galicia que toda ella era como el hocico de una fiera salvaje, una boca verde, gigantesca, que se abría hasta una desmesura dolorosa bajo un cielo en llamas, de mundo quemado, calcinado por la Tercera Guerra Mundial que nunca ocurrio [...]» p. 444 Um país onde moram «gallegos asustados ante lo irremediable». p. 445
Como peche do capítulo, Bolaño regala-nos uma última e perfeita definição do Sermos Galegos a modo de piada-filosófica:

«Hasta aquí llega la poesía, esa mala pécora que me ha acompañado a traición durante tantos años. Olet lucernam. Ahora sería conveniente contar dos o tres chistes, pero sólo se me ocurre uno, así, de pronto, sólo uno, y para mayor inri de gallegos. No sé si ustedes lo saben. Va una persona y se pone a caminar por un bosque. Yo mismo, por ejemplo, estoy caminando por un bosque, como el Parco di Traiano o como las Terme di Traiano, pero a lo bestia y sin tanta deforestación. Y va esa persona, voy yo caminando por el bosque y me encuentro a quinientos mil gallegos que van caminando y llorando. Y entonces yo me detengo (gigante gentil, gigante curioso por última vez) y les pregunto por qué lloran. Y uno de los gallegos se detiene y me dice: porque estamos solos y nos hemos perdido». p. 448

3. p. 480 Fala Jaume Planells.

«[...] esa playa en donde en primavera la gente se desnudaba del todo, calas pequeñas y roqueríos, a la vista sólo de los pasajeros del tren de la costa a quienes el espectáculo traía sin cuidado, lo que es la democracia y la civilidad, en Galicia esos mismos pasajeros hubieran detenido el tren y se hubieran bajado a capar nudistas, en fin, yo pensaba en esas coasas cuando decía hola, soy Jaume Planells, el otro padrino». p. 480

Finalmente:

Na postagem nº 142, falava da importância de Rafael Dieste em 2666, não apenas no aspecto mais óbvio, o papel desempenhado pelo Testamento Geométrico, senão na  influência que Dos arquivos do trasno ou Historias e invenciones de Felix Muriel teve na redação do romance de Bolaño. Na minha opinião, o escritor chileno só escreveu uma obra na sua vida, um maravilhoso romance rio que nos foi entregando em pequenas doses, alguma não tão pequena, sendo neste caso metodologicamente recomendável partir do geral para o particular, ler com atenção o canon bolañês e ir, posteriormente, atando fios. Ponhamos um exemplo.

- Em Amuleto Anagrama 1999 3ª ed. de Compactos p. 77, fala-se-nos por primeira vez dum cementério no ano 2666, um título que considero influenciado por "11926" de Os Arquivos do Trasno
- Em Amberes Anagrama 2002 4ª ed., aparece a personagem de Lola Muriel, uma moça que nos oitenta tinha dezoito anos. O apelido Muriel remete-nos a Historias e invenciones de Felix Muriel, mas também ao segundo apelido do pai de Rafael Dieste, Eladio Dieste Muriel e a Felix Muriel, pseudónimo utilizado pelo autor rianjeiro.
-  Por último 2666 Anagrama 2004, é em si mesma uma homenagem a Dieste e o seu Testamento Geométrico.

A hora de procurar uma componente galega na obra de Roberto Bolaño eu distinguiria entre a ascendência biológica, o facto de ser neto de galego, e a ascendência literária, na que Dieste tem um papel preponderante. Mas em LDS tal vez haja um bocado de tudo. O avô galego de Bolaño, o qual morreu como consequência das feridas sofridas ao cair dum cavalo, procede dum país imaginário chamado Galiza, algo assim como a Sonora ibérica. Alguém pode pensar que a descrição que o Roberto faz do nosso país é tópica e cheia de preconceitos; eu, só direi que é pura literatura.




Mais sobre Bolaño e Diente em nº 142

quinta-feira, 4 de julho de 2013

terça-feira, 25 de junho de 2013

nº 168 Um novo livro sobre Faustino Rey Romero.

A sexta, 21 de junho, esteve na presentação do livro Faustino Rey Romero. Obra poética e teolóxica, do professor X. Ricardo Losada. Foi um ato bem produtivo que me permitiu apreender e desaprender alguma coisa, algo habitual quando quem fala é pessoal de superior inteligência. Escutar ao tandem Jesus Santos-X. Ricardo Losada animou-me a arrombar ideias que tinha desordenadas no meu magim e que só agora é que me atrevo a pôr por escrito.

Santos vs Losada

No discurso de ambos os dois biógrafos aprecia-se a importância do matiz. É evidente que Santos fala de Rey Romero desde o espaço emocional, do amigo e camarada galeguista na luta antifranquista.
Losada fá-lo, porém, desde o estranhamento metodológico, desde a distância sempre perseguida  pelo investigador mas quase nunca acadada. Gostei da valentia de Xosé Ricardo para se enfrentar a um personagem, nas suas palavras, com luzes e sombras, que é tanto como dizer dele que foi um homem que viveu. Sei por própria experiência que quando se trata com parentes e amigos da personagem biografiada é muito habitual ficar cativo do contexto, temeroso de incomodar aos que foram os nossos principais informantes. Losada fez um alegado da sua independência e do seu subjetivismo, as maiores virtudes que eu reconheço num bom biógrafo.

As minhas anedotas


Eu, obviamente, não conheci a D. Faustino. Na sua morte tinha três aninhos e nada fazia presagiar que um dia teria uma filha rianjeira. Mas, contudo, também posso contar um par de anedotas sobre o crego-poeta, uma minha e outra de recolecção.

Uma idosa dirigente da Falange rianjeira contou-me, com um gravador de por meio, que nos anos centrais da ditadura foi falar com Rey Romero para lhe pedir oficiara uma missa im memoriam de Primo de Rivera. Intuo que a Sra. fixo o pedido para provocar ao crego-poeta, mas, repito, só intuo. Faustino negou-se rotundamente o que motivou o protesto da dirigente da Sección Femenina que exclamou:

- Como le niega una misa a un cristiano!?

A resposta do padre de Isorna foi que sobravam cregos em Rianjo para missar nesse funeral.

A segunda anedota tem a ver com um artigo que publiquei na revista das festas da Guadalupe. O texto versa sobre um poema faustiniano chamado Canta, passarinho canta. Resulta que há três versões musicadas deste poema da autoria dos maestros Frederico de Freitas, Rogélio Groba e Manuel Vicente "Chapi".
O artigo está ilustrado com um desenho meu representando a um merlo, o pássaro fetiche de Rey Romero.
Um meio-dia, sentei fronte ao computador da biblioteca da minha escola, chamada, para mais aquele, Xosé María Brea Segade. Estava a aproveitar um intervalo sem alunado para fazer as últimas correções do meu artigo quando de súpeto, entre os andeis que custodiam os livros, senti um ligeiro ruidinho que imediatamente associei a um rato de biblioteca, desta vez sem qualquer sentido figurado ou metafórico.
Dada a minha incontrolável musofóbia ergui-me dum pulo e sai correndo cara a porta.
Pois bem, e por incrível que pareça, nesse breve espaço entre a messa do corredor e a saída da biblioteca houve um instantinho em que os meus olhos e o do intruso se cruzaram e soube que podia estar tranquilo; o som que ouvira não fora provocado por nenhum roedor.
Sobre um estante baixo na que temos colocada a banda desenhada estava pousado, observando-me, um merlo. O seu pico laranja apontava-me como a batuta dum diretor de orquestra ou o condão dum mago que com um suave aceno congelara meu movimento. Com a ajuda do zelador logramos liberar ao merlinho que fugiu do cárcere de livros por uma janela aberta ao pátio.
Aos poetas da geração de Rey Romero, dos Álvarez Blázquez, de Baldomero Isorna... chamava-lhes Guerra da Cal os poetas ornitólogos.
Juro por Deus que sou ateu, mas de não sê-lo, pensaria que aquele merlinho aventureiro alojava o espírito de D. Faustino. Que coisas passam!
Ilustração para o livro das Festas da Guadalupe

Outras postagens sobre Faustino Rey Romero:

132
133

Artigo do livro das Festas da Guadalupe:

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domingo, 23 de junho de 2013

nº 167 São João e os dentes

Os etnógrafos e etnomusicólogos do século XIX, como Marcial Valladares ou José Inzenga, consideravam-se conservadores dum conjunto de tradições que logo iam desaparecer com a chegada dos novos tempos. Efetivamente, muito do que eles presenciaram e registraram nos seus cadernos desapareceu para sempre na sua forma e função originária, apenas fossilizadas nalgumas práticas folclorizadas quase que de caracter teatral.
Porém, nem tudo desapareceu, e ainda neste tempo de pós-modernismo cafona e cibercultura avassaladora surpreende-nos o survival de velhos procederes, costumes tão antigas e com raízes tão abastadas de rizomas que desisto de saber qual pode ser a sua origem, os elementos religiosos e/ou antropológicos que lhe deram forma ou o papel a desenvolver na sociedade atual.

Um facto muito interessante na normalização dos costumes no território galego foi a recuperação no eido escolar da festa do samaim e da personagem do Apalpador.
Surpreende a postura contrária face este fenómeno manifestada pelo escritor de ideologia independentista Xosé Luís Méndez Ferrín, por quanto uma e outra celebração são castiçamente galegas e poderiam, de se generalizar, substituir tradições muito mais recentes, como o publicitário Pai Natal ou outras de caracter religioso como Os Reis.
Eu, que sou da Ilha de Arousa, vivi o samaim de jeito natural, sem imposições mediáticas ou escolares. Por defuntos íamos roubar botefas (abóboras) nalguma leira, esvaziávamo-las e colocávamos no seu interior uma mariposa, lamparina que dava uma débil luz trêmula. Estas abóboras eram colocadas nos valos ou nos tornaratos dos espigueiros, a uma altura aproximada da cabeça duma pessoa. Não sei se a esta celebração devêramos chama-la samaim ou de qualquer outro modo, mas eu e os meus vizinhos carcamãos somos a prova vivente de que a festa existe.

Relacionada com o São João há alguma que outra tradição muito formosa que continua a ter uma saúde bem viçosa. É o caso do lume, do rito de saltar as fogueiras, da auga de flores para lavar o rostro na amanhecida, etc. A minha tia Lúcia escachava um ovo e deitava a clara num copo de agua que deixava na janela, ao relento, na noite de São João. Depois observava as figuras que formava o ovo no líquido para saber quem, num futuro próximo, ia ser seu namorado. A minha tia cria ver sempre um barco, pelo que o seu amor seria com certeza um marujo. A pobre, tudo há que o dizer, morreu solteira.

Mas o Rianjo conserva uma tradição que em aparência nada tem a ver com o solstício de verão, mas que sim está relacionado com o São João.
Quando a alguém lhe cai um dente é costume deita-lo na borralha ou pousa-lo no saliente do forno. Jamais o dente deve ser deitado na eira ou diretamente no lixo. Há que dizer que nas casas dos nossos avôs, quando não dos nossos pais, quase que tudo o que ia ao lixo era matéria orgânica que se reciclava como alimento de animais ou adubo no quintal. De deitar o dente na eira ou no lixo havia a provabilidade de que fosse comesto por um animal: v. gr. o porco ou as galinhas. Estes bichos, a sua vez, estavam destinados a ser comidos pelos humanos, pelo que poderia dar-se o caso dum fato de antropofágia indireta aborrecível para o gênero humano. Ai se Levi-Strauss estivesse ciente!
O bom é que no momento de deitar o dente à borralha o pessoal diz uma espécie de ensalmo ou oração tal que assim:


Conheço, pela Concha Roussia, que noutros lugares existe também a tradição da galinha dos dentes. Este costume, ao igual que o da borralha, considero-o melhor que o do Rato Pérez, ainda mais quando quem isto escreve padece de musofóbia. É certo que o costume do rato que se leva os dentes de leite é uma tradição de grande percurso histórico, mas é provável que na Galiza não se conhecera de não ser porque o jesuíta Luís Coloma inventou uma personagem apelidada Pérez, no intento de consolar ao bourbón Afonso XIII quando com oito anos acabava de perder um dentinho.

Mas qual é o motivo de que em Rianjo se associe a oferenda da dentição decídua com a borralha e o santo João? A borralha é um detersivo natural. Misturado com água quente produz uma lexívia ligeira usada tradicionalmente para branquear as prendas delicadas como os lenços de linho. O lume, associado ao São João tem poder profilático, depurador. Quiçá nestas propriedades do lume, do forno e a borralha esteja a chave. Mas o São João é o batista, o mediador que conduze ao pecador ao reino dos filhos de Deus. A queda dos dentes de leite e a aparição dos permanentes não deixa de ser também um transito duma a outra etapa da vida duma pessoa.

Perguntando aos velhos de Rianjo e das vilas e aldeias próximas ao nosso concelho tal vez podamos aprofundar neste costume da oferenda do dente de leite. É uma tradição exclusivamente rianjeira? Exclusivamente do Barbança? Pois, no referente à Galiza, pudera ser, mas, como quase sempre, nada cultural nos pertence em exclusividade. Em O ramo de ouro de James Frazer, aparece a seguinte quadra originária de Ratonga, no Pacífico:

Rata grande,
pequena rata, 
aqui está o meu velho dente
rogo-vos que me tragais outro são.

Num estudo sobre a cultura chiloé podemos ler:

«Una campesina nos decía que no hay que tirar el diente al fuego por que pena el alma si muere el niño. Sin embargo, otro campesino, aseguraba que haciéndolo así viene un diente sano y fuerte.» Renato Cárdenas & Catherine Hall

Bom São João a tod@s.

terça-feira, 28 de maio de 2013

nº 166


texto e desenho: ©rjais 2013