domingo, 17 de março de 2019

nº 231 Menina ou de como nasce uma canção.

De como nasce uma canção.

Menina

Seria o ano 98 ou 99 do século passado. Eram tempos de militância ativa no movimento filomasónico chamado reintegracionismo, de pintadas clandestinas, brochuras ininteligíveis, colantes pitorescos e da crença em que era possível a troca do paradigma. Enfim, éramos mocidade. Como em toda organização, por muito desorganizada que esta esteja, circulavam as leituras obrigadas inapreensíveis em livraria: uma história não editada em Espanha da Opus Dei; as provas provadíssimas de que era um tal Prisciliano o que estava enterrado na Sé compostelana; um anteprojeto para a constituição dum futuro Estado Galego... É dizer, livros todos de autoajuda.
De vez em quando alguém trazia um exemplar ou um simples retalho de algum jornal lusófono. Quase sempre eram notícias sobre o Reino da Espanha desde a perspetiva da imprensa estrangeira, não untada, obviamente, pelos guardiãs das essências borbônicas. Mas outras vezes, os artigos enfrentava-nos a realidade de cidadãs da lusofonia cujo compromisso com a sua cultura e o seu pais fazia insignificante o nosso amplo repertório de gestos heroicos. Um desses artigos abalou tanto o meu espírito que fez nascer uma canção.

Não lembro o título da reportagem que aparecia num suplemento de –tal vez– o Jornal ou o Diário de Notícias, mas sim do que tratava. Os fatos aconteceram um 12 de novembro de 1991, no cemitério de Santa Cruz em Díli, Timor-Leste. Lá concorreram milhares de pessoas para celebrar uma missa em memória de Sebastião Gomes, um mártir da causa independentista timorense. No cemitério, o exército indonésio abriu fogo e matou a cerca de 300 pessoas. 
As fotografias que ilustravam o artigo causavam impacto e se falava de como aquela massacre fez visível o conflito a nível mundial, mais ainda quando o tiroteio foi filmado pelo câmara Max Stahl. Também dava conta dum fato que na altura para mim foi especialmente abalador, e isto era que na retaguarda, as mulheres timorenses eram as encarregadas de levar o armamento e as munições aos homens que lutavam no frente, principalmente no interior montanhoso da Ilha. 

Esta imagem foi a que me inspirou a letra de Menina. Lembro perfeitamente o dia em que a compus. Tero e mais eu vivíamos no andar familiar de Compostela. Acima da cama  estava sempre a viola, aguardando a que pegara nela para cantar repertório do folclore galego-português, repertorio que continuo a utilizar com o meu alunado de primário. Letra e música nasceram juntinhas. Uma noite, Ramom Pinheiro e Ugia Pedreira vieram cear. Cantamos, como sempre, e entre as peças de Vitorino, Zeca e alguma que outra rancheira teve a sua estreia doméstica a Menina do Orjais. A Pedreira gostou de imediato e a fez sua, pelo que deveria aparecer em todos os créditos como coautora. Sem Ugia, Menina seria um canto sem alma.

E sabem o porquê de lembrar agora esta história? Pois porque no auditório de Rianxo há uma magnífica expo titulada Guerrilla Gráfica dunha Gran Burla Negra e porque esta me lembrou que os músicos também fomos parte dessa guerrilha e porque Menina foi na contenda uma bala carregada de futuro. Num disco-livro que todo o mundo deveria revisitar de vez em quando titulado Sempre Mar, cultura contra a burla negra, Menina é a peça que os Marful (Ugia Pedreira, Pedro Pascual, Pablo Pascual e Marcos Teira) achegam ao projeto. Viva! 

Sempre Mar saiu no 2003 quando fazia só três anos que Ugia Pedreira, Ramom Pinheiro e mais eu planejáramos aquela maravilhosa tolice chamada Conservatório Folque de Lalim. A dia de hoje, quando o centro, de sobreviver, seria já maior de idade, associo aquele sonho de juventude com aromas, cores, sabores e também canções. Acho que nos primeiros anos do Conservatório todo estava impregnado de nós-outros, dos três franco-atiradores de cravos e melodias, da Pedreira directora, do Pinheiro relações públicas e de mim, o rarinho. E se tivesse que pôr banda sonora a aqueles wonderful days a canção começaria com este verso: Menina que vendes as ondas do mar.

Acho que Menina deve ser hoje uma cantiga dedicada a todas as mulheres valentes, às heroínas da sororidade, as que na Galiza, como no resto do mundo, fornecem aos homens de armamento e munições de dignidade, a que a elas lhes sobra. Por isso é que sempre quis ser Menina. E tal vez consegui.

MENINA
ouvir
Versão que aparece no disco-livro
Sempre mar, cultura contra a burla negra.

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