segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

nº 213 Expediente de limpeza de sangue de Martín Torrado da Figueira, 1645.


Na anterior postagem falava da tese judia a propósito das cruzes gravadas nas jambas das casas, a qual pode ser resumida em função de como estes sinais seriam uma estratégia dos cristãos novos para ocultar a sua velha religião.

Obviamente, este ocultamento teria a ver com a pressão que os judeus sofriam para que abandonassem o país ou se convertessem ao cristianismo. Quantas destas conversões foram sinceras e quantas meras estratégias para a supervivência é algo difícil de saber. O curioso é que nos últimos tempos esta-se a pôr em questão a verdadeira dureza da Inquisição, relativizando a persecução que esta fez sobre os que professavam religiões diferentes à católica. Mesmo estão a aparecer livros que esgotam sucessivas edições negando o etnicídio espanhol nas colónias americanas e o papel exercido pela Inquisição Espanhola ao respeito. Pavero!
Os mecanismos de repressão são tão diversos -e às vezes tão subtis- que não devemos limitar as consequências do apartheid católico sobre os judeus ou muçulmanos a uma lista de executados ou expulsos. Um destes mecanismos repressores são os chamados Expedientes de limpeza de sangue, como o redigido a Martín Torrado da Figueira, padre rianxeiro nascido na paróquia de Leiro em 1621, e autor das Décimas ao Apóstolo, uma das joias literárias galegas da etapa dos mal chamados séculos escuros. Este expediente encontra-se no arquivo histórico da U.S.C. e pode ser consultado a través da sua página web.
Os estatutos de limpeza de sangre eram mecanismos de discriminação legal, já que sem um expediente favorável um não podia exercer cargos na inquisição, nem ingressar na universidade, colégios ou simplesmente ser militar ou crego. Na atualidade estes expedientes são muito valiosos à hora de traçar genealogias já que se remontam a várias gerações atrás para demonstrar que o candidato provem duma família sem nódoa hebraica, ou seja, o expedientado é cristão velho.
Graças ao documento guardado no arquivo histórico sabemos que Martín Torrado tinha a seguinte ascendência e, o que ainda resulta mais interessante, a localidade onde nasceram ditos parentes:

Linha paterna:
Bisavôs
-Pedro da Figueira (Isorna) e Elvira de Ribela (Castelo, Isorna) / Pedro Torrado (Assados) e Theressa Alonso Marinho (Paço de Vimieiro, Boiro) Theressa Alonso Mariño era filha de Fernán Marinho, senhor do Paço de Vimiero.
Avôs
- Rodrigo da Figueira (Isorna) e Mayor Torrado (Assados)
Pai
Juan da Figueira Torrado (Isorna)

Linha materna:
Triavôs
-Domingo de Tarrio (Tarrio, Lainho)
Bisavôs
-Martín Tarrío (Abuim, Leiro) e Catalina de Rial (Abuim, Leiro) / Antón de Somoça (Rianxinho, Rianxo) Francisca Rodriguez (Brião, Leiro)
Avôs
- Juan de Tarrio (Abuim, Leiro) e Dominga Rodríguez (Brião, Leiro)
Mãe
-María de Rial Somoça (Brião, Leiro)

No expediente achega-se uma transcrição literal da partida de batismo que diz:

«A dos de diziembre de seicientos y veinte y uno bautize un niño que se llama Martín hijo de Juan da Figeyra y de Mª do Rial su mujer y fueron compadres Alonso de Abuín y la mujer de Muniz de Buya que se llama Dominga de [A]buín [,,,] »

Por último, afirma-se no documento que «ni sus padres, abuelos ni visabuelos assi paternos como maternos […] jamas fueron ni han sido presos ni condenados por la Santa Inquisicion ni por otro juez por delito de herejia o judeismo […] y sabe que dicho opositor ni ascendientes arriba dichos todos juntos ni ninguno dellos en particular no son ni han sido moros ni rezien convertidos a la fé ni judios ni quemados ni reconciliados ni finalmente de ningun genero de judaismo ni de otra qualquier seta reprobada ni dellos son ni han sido informados ni en publico ni en secreto antes son y an sido buenos y chatolicos xpianos limpios de toda mala raza de moros judios confessos y marranos [,,,]»

À vista da relação de localidades e parentes de Martín Torrado podemos tirar a conclusão da importância que tem, na altura, a vizinhança e a terra nos matrimónios. Praticamente todos os cruzamentos entre diferentes famílias são feitos entre sujeitos que moram no que hoje são os limites do atual Rianxo, a uma distância a pé nunca maior a meio dia de caminhada. Polo lado materno quase que todos os parentes são da paróquia de Leiro e na paterna de Isorna. O lugar mais afastado é Vimieiro, em Boiro, casa grande de Fernán Marinho e Tarrio em Laínho, de onde viria o antropónimo Tarrio. Também sabemos que a conexão com os Torrado de Assados vem pelo matrimónio do seu pai com Mayor Torrado, do que se conclui que o crego Martín escolheu os apelidos da avó paterna de linhagem fidalga, emparentada com os senhorios de Marinho e Torrado, e ignorou os da linha materna, apenas de labradores.

O expediente do padre Martín Torrado é muito minucioso. O informante visita todos os lugares de onde procedem os devanceiros, consulta os livros de batismo e se entrevista com a gente mais idosa que todavia pode lembrar a algum destes parentes. O informe vai valer para que a Martín Torrado lhe outorguem uma bolsa de estudos, já que segundo informa a sua mãe Mayor Torrado, costear a matrícula de seminarista em Compostela acarretaria uma grande carga para a economia familiar. Obviamente que estes informes podiam estar falsificados, ou o informante subornado, mas, neste caso, a leitura  do documento faz-nos pensar que estamos ante um documento veraz.

Deixo aqui a ligação às Décimas ao Apóstolo Santiago, na versão de Romero Lema. Por certo, uma composição onde Martín Torrado faz referência numerosas vezes aos judeus, combatidos sem piedade pelo Apóstolo Santiago e a seu avô, quem lhe transmitiu o seu amor pelo santo mata-mouros. O que não aclara e se este avô foi o da casa Juan de Tarrio ou o de Isorna, Rodrigo da Figueira.
Na próxima postagem visitaremos o lugar de Ranho, em Leiro, um lugar inzado de cruzes muito interessantes, algumas em lugares bem curiosos. Tal vez alguma de conversos?

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