terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

nº 207 O duro avecrêmico.


Poderia construir o relato da minha vida utilizando como fio condutor as sucessivas obsessões bibliófilas que fui padecendo ao longo dos anos. Em realidade, o meu interesse não é tanto pelos volumes quanto pelos textos e dados que eles contêm. E dizer, careço de qualquer indício de fetichismo livrófago, um vício que contribuiu em grande medida à formação do universo criativo de autores tais como Borges, que como é sabido foi um autêntico pirado da bibliofilia. Ele, por exemplo, adorava um exemplar da primeira tradução ao inglês, 1840, de As mil e uma noite de E. W. Lane, citado em vários dos seus contos. A mim valeria-me uma edição cubana –dessas que parecem feitas em papel comestível– com tal de que a tradução fosse especialmente brilhante ou as notas a rodapé estivessem iluminadas por uma erudição irrebatível.

A minha atual obsessão chama-se Daniel Sueiro (1931-1981). Estou comprando os seus livros por todo o Estado Espanhol a preços mesmo inferiores aos dos gastos de envio. Tudo começou com a leitura dum conto: El regreso de Frank Loureiro e aí continuo, lendo e gozando dum sincero cronista da derrota.
Suponho que em breve publicarei algo mais elaborado, mas, por enquanto, limito-me a comentar uma anedota curiosa. La Criba foi publicado em 1961 por Seix Barral e conta a história de «un pobre diablo al que atenazan las circunstancias». Quase no final do livro, o protagonista encontra-se acurralado pelos gastos sanitários que durante o embaraço e posterior nascimento do seu primeiro filho foi acumulando. No médio do seu desespero compra um jornal no que lê a seguinte notícia:

«Sacó unas monedas del bolsillo y compró un periódico. Lo fue leyendo, andando, por la acera, ojeándolo, leyendo los titulares. […]
Un anuncio que venía en el periódico, perdido en el fondo de una página, le llamó la atención. Lo había visto ya, pero sólo ahora se detuvo y lo leyó detenidamente. “El duro avecrémico vale ahora 80.000 pesetas”, comenzaba. “Es de la serie “F”, de mucha circulación”.» p.155

O duro avecrêmico tinha o valor trocável de muitos duros, 80.000 pesetas da Espanha autárquica na que um quilograma de pão custava 7,50 pts e umas 4 pts um litro de leite. Mas como o bilhete com o número de série exato não era fácil de encontrar, o prémio aumentava e em janeiro do 57 já andava por cento vinte mil rúbias.
Gallina Blanca, a empresa promotora do concurso, nascera em Catalunha em plena Guerra Civil. O seu invento consistente em cubos de caldo concentrado a base de carne argentina e extrato variado de legumes e hortaliças converte-se num produto básico na população faminta da pós-guerra. É paradoxal, e suponho que casual, que o condutor do programa da emissora da S.E.R. onde se desenvolvia o concurso «Duro com el duro», Juan Carlos Thorry (28 de junho de 1908, Coronel Pringles,  Argentina - 12 de fevereiro de 2000, San Antonio de Padua, Merlo, Argentina) tivesse a mesma origem que a carne dos cubos concentrados.

Desconheço –e olhem que procurei por toda a rede!– se alguma vez alguém se levou o prémio, mas o duro avecrêmico é, sem dúvida, uma magnífica ilustração para a literatura de Sueiro, cujo fundamento não é outro que a descrição minuciosa dos sonhos irrealizados.


Daniel Sueiro

3 comentários:

Anónimo disse...

É o mesmo autor (co-autor) de Historia del franquismo ? interessantes sempre estas marginálias ;)

Apertas,

Ernesto

José Luís do Pico Orjais disse...

O mesmo, a minha nova obsessão. O conto sobre Frank Loureiro é um dos textos sobre perdedores mais alucinante que tenho escutado. Qual é o motivo de que seja tão pouco conhecido? Também escreveu sobre a pena de morte. Tenho quase tudo dele. Que ganas de te ver, meu irmão. A loja bota-te de menos!

Anónimo disse...

Pois eu não o controlo como narrador, mas já me entrou a curiosidade... ;) apertas