domingo, 23 de junho de 2013

nº 167 São João e os dentes

Os etnógrafos e etnomusicólogos do século XIX, como Marcial Valladares ou José Inzenga, consideravam-se conservadores dum conjunto de tradições que logo iam desaparecer com a chegada dos novos tempos. Efetivamente, muito do que eles presenciaram e registraram nos seus cadernos desapareceu para sempre na sua forma e função originária, apenas fossilizadas nalgumas práticas folclorizadas quase que de caracter teatral.
Porém, nem tudo desapareceu, e ainda neste tempo de pós-modernismo cafona e cibercultura avassaladora surpreende-nos o survival de velhos procederes, costumes tão antigas e com raízes tão abastadas de rizomas que desisto de saber qual pode ser a sua origem, os elementos religiosos e/ou antropológicos que lhe deram forma ou o papel a desenvolver na sociedade atual.

Um facto muito interessante na normalização dos costumes no território galego foi a recuperação no eido escolar da festa do samaim e da personagem do Apalpador.
Surpreende a postura contrária face este fenómeno manifestada pelo escritor de ideologia independentista Xosé Luís Méndez Ferrín, por quanto uma e outra celebração são castiçamente galegas e poderiam, de se generalizar, substituir tradições muito mais recentes, como o publicitário Pai Natal ou outras de caracter religioso como Os Reis.
Eu, que sou da Ilha de Arousa, vivi o samaim de jeito natural, sem imposições mediáticas ou escolares. Por defuntos íamos roubar botefas (abóboras) nalguma leira, esvaziávamo-las e colocávamos no seu interior uma mariposa, lamparina que dava uma débil luz trêmula. Estas abóboras eram colocadas nos valos ou nos tornaratos dos espigueiros, a uma altura aproximada da cabeça duma pessoa. Não sei se a esta celebração devêramos chama-la samaim ou de qualquer outro modo, mas eu e os meus vizinhos carcamãos somos a prova vivente de que a festa existe.

Relacionada com o São João há alguma que outra tradição muito formosa que continua a ter uma saúde bem viçosa. É o caso do lume, do rito de saltar as fogueiras, da auga de flores para lavar o rostro na amanhecida, etc. A minha tia Lúcia escachava um ovo e deitava a clara num copo de agua que deixava na janela, ao relento, na noite de São João. Depois observava as figuras que formava o ovo no líquido para saber quem, num futuro próximo, ia ser seu namorado. A minha tia cria ver sempre um barco, pelo que o seu amor seria com certeza um marujo. A pobre, tudo há que o dizer, morreu solteira.

Mas o Rianjo conserva uma tradição que em aparência nada tem a ver com o solstício de verão, mas que sim está relacionado com o São João.
Quando a alguém lhe cai um dente é costume deita-lo na borralha ou pousa-lo no saliente do forno. Jamais o dente deve ser deitado na eira ou diretamente no lixo. Há que dizer que nas casas dos nossos avôs, quando não dos nossos pais, quase que tudo o que ia ao lixo era matéria orgânica que se reciclava como alimento de animais ou adubo no quintal. De deitar o dente na eira ou no lixo havia a provabilidade de que fosse comesto por um animal: v. gr. o porco ou as galinhas. Estes bichos, a sua vez, estavam destinados a ser comidos pelos humanos, pelo que poderia dar-se o caso dum fato de antropofágia indireta aborrecível para o gênero humano. Ai se Levi-Strauss estivesse ciente!
O bom é que no momento de deitar o dente à borralha o pessoal diz uma espécie de ensalmo ou oração tal que assim:


Conheço, pela Concha Roussia, que noutros lugares existe também a tradição da galinha dos dentes. Este costume, ao igual que o da borralha, considero-o melhor que o do Rato Pérez, ainda mais quando quem isto escreve padece de musofóbia. É certo que o costume do rato que se leva os dentes de leite é uma tradição de grande percurso histórico, mas é provável que na Galiza não se conhecera de não ser porque o jesuíta Luís Coloma inventou uma personagem apelidada Pérez, no intento de consolar ao bourbón Afonso XIII quando com oito anos acabava de perder um dentinho.

Mas qual é o motivo de que em Rianjo se associe a oferenda da dentição decídua com a borralha e o santo João? A borralha é um detersivo natural. Misturado com água quente produz uma lexívia ligeira usada tradicionalmente para branquear as prendas delicadas como os lenços de linho. O lume, associado ao São João tem poder profilático, depurador. Quiçá nestas propriedades do lume, do forno e a borralha esteja a chave. Mas o São João é o batista, o mediador que conduze ao pecador ao reino dos filhos de Deus. A queda dos dentes de leite e a aparição dos permanentes não deixa de ser também um transito duma a outra etapa da vida duma pessoa.

Perguntando aos velhos de Rianjo e das vilas e aldeias próximas ao nosso concelho tal vez podamos aprofundar neste costume da oferenda do dente de leite. É uma tradição exclusivamente rianjeira? Exclusivamente do Barbança? Pois, no referente à Galiza, pudera ser, mas, como quase sempre, nada cultural nos pertence em exclusividade. Em O ramo de ouro de James Frazer, aparece a seguinte quadra originária de Ratonga, no Pacífico:

Rata grande,
pequena rata, 
aqui está o meu velho dente
rogo-vos que me tragais outro são.

Num estudo sobre a cultura chiloé podemos ler:

«Una campesina nos decía que no hay que tirar el diente al fuego por que pena el alma si muere el niño. Sin embargo, otro campesino, aseguraba que haciéndolo así viene un diente sano y fuerte.» Renato Cárdenas & Catherine Hall

Bom São João a tod@s.

1 comentário:

pandulleiros.blogspot.om disse...

parabens por este estupendo post, reflexo do noso riquísimo patrimonio cultural.