segunda-feira, 23 de julho de 2012

nº 139 A sanfona de J. M. Pintos e uma ilustração de Francisco Herrera.

Quando dava aulas no Conservatório de Música Tradicional e Folque de Lalim, trabalhei com meus/minhas alun@s o famoso texto de J. M. Pintos, dado a conhecer por Casto Sampedro, no que se recolhe um pequeno catálogo de vocábulos referentes às partes da sanfona. O léxico do Pintos resulta muito valiosa, por quanto além de lexicógrafo era músico, violinista, sendo uma voz, por tanto, muito acreditada.

Estes termos não vêm acompanhadas das respectivas definições que o Casto Sampedro considerava óbvias e eu não tanto. Por mais que procurei o original utilizado pelo antiquário pontevedrês, não dei com ele, nem sei se ainda existe. Num intento de criar a polémica necessária que nos leve ao conhecimento do significado real de cada item proponho as que seguem, fruto mais da intuição que de qualquer método científico.

Convido-vos a que participeis com as vossas sugestões.

ASAS ALZAS: Alça é sinónimo de presilha como a que serve para passar o cinturão nas calças em redor da cintura. Asas são a parte pela que se pega nalguns utensílios, assim que asas alças, acho que fez referência aos apêndices da sanfona as que se amarra a correia ou correão.

BORDÓN: Bordão: "Corda grossa que nalguns instrumentos musicais, produz sons graves" (P.E.) Em Coromines podemos ler: 1463, "del fr. Faux-bourdon id., compuesto de faux "falso" y bourdon tono bajo en ciertos instumentos musicales, propte. Abejorro, zángano (por el zumbido de estos insectos), voz onomatopéyica. Origen parecido tiene bordona "cuerda de la guitarra". Nas sanfonas em G fundamental do teclado produziria um som contínuo em C.

BORDONETA OU QUINTILLA: O sufixo -eta provem do latim -itta, vivo em palavras como pandeireta. Com tudo hoje está em uso bordoncinho. Esta corda fez uma quinta do bordão, origem da segunda acepção. Quintilha, usa-se para a forma poética de cinco versos, pelo que de empregar esta acepção e por correspondência com prima e terceira preferimos quinta.

CAIXONCIÑO OU SECRETIÑA: Compartimento pequeno situado na parte que toca ao músico entre o cravelhame e a tampa traseira.

CASTILLETE: Parece referir-se ao compartimento provido de tampa com dobradiças que protegem as cordas desde o cravelhame até a roda, cujas paredes laterais estão furadas transversalmente para ser atravessadas pelos barrotes das teclas. É uma palavra castelhana que significa "s.m. Armazón de materiales y formas diversas que sirve como soporte de algo". Também dim. de castillo. Dado que não é palavra galega pode ser substituída por castelinho ou castelejo. Por similitude preferimos a mais comum estojo.

CHAVE: Esta palavra refere-se entre outras acepções aos pistões de alguns instrumentos de metal que ao preme-los permitem dar a nota desejada. Acho que na sanfona se refere as teclas que para o mesmo fim preme a mão esquerda do executante.

CORDAS: "s.f. Fio de tripa ou de metal para produzir sons em alguns instrumentos" (P.E.)

CORDEEIRO: Pintos (D.D.) no seu dicionário recolhe esta palavra: "Cordelero, tirante en instrumentos de cuerda". A tradução ao castelhano mais correcta seria cordal. Em galego podemos usar a palavra estandarte, que é o nome empregado para o elemento similar na família dos violinos.

CORREDORES: Em quanto que corredor pode ser uma viela estreita ou um carreiro, possa que esta palavra faça referência a o espaço pelo que transitam as cordas entre os tempereiros.

CORREÓN: Correão: "Correia larga e grossa" (P.E.)

CRAVIXAS: Cravelha: "s.f. Peça com que se retesam as cordas de certos instrumentos musicais para afinação" (P.E.)

CRAVIXEIRO: Cravelhame: "s.m. O conjunto das cravelhas; a parte onde estão as cravelhas". (P.E)

ESPECAS: Em (E) Espeque: "s.m. 1º Estaca ou pau com que se estea algunha cousa. 2º Pau que manten erguida a cabezalla do carro." Parece fazer referência as almas e passaria a denominar a estas especificamente na sanfona.

FERRO DO CORDEEIRO: Nos instrumentos de corda friccionada como a sanfona ou o violino, botão ou saliente a que vai fixada por duas finas cordas o estandarte ou cordoeiro e que na sanfona forma parte do veio.

FOLLA DE DIAPASÓN: O diapasão no violino é uma peça, geralmente de ébano, sobre a que dedilha a mão esquerda através da que se pode desenvolver a gama completa da voz do instrumento. Na sanfona o diapasão viria dado pelo tamanho do estojo e o número de teclas que este suportara. Sobre folha lemos em (E): "s.f. (13) Cada unha das palletas, lascas ou partes delgadas en que se divide un todo. (16) Cada unha das partes que se abren e fechan nas portas, xanelas ou biombos." Acho que a folha do diapasão pode ser a tábua do estojo, furada com o fim de que ao seu través passem as chaves.

GARDAPOLVOS: Guarda-pó: Forro de madeira que se põe sobre a roda para a proteger do pó.

PIA: O vocábulo pia é utilizado em náutica como sinónimo de carlinga, " Encaixe na sobrequilha para receber a extremidade do mastro." (P.E.) No caso da sanfona poderia tratar-se dalguma das peças que recebem o eixo, quiçá a entrada a caixa sonora onde se situa o veio.

PONTE: Para a palavra ponte, preferimos a galego-potuguesa cavalete, que é a peça que separa o tampo superior das cordas, transmitindo o som do primeiro ao segundo para que o amplifique. Esta ponte, nas sanfonas clássicas ia sobre uma peça de madeira que impedia que fosse directamente sobre o tampo.
PORTA: Quiçá a tampa do estojo ou castillete.
PRIMAS: As duas cordas cantantes, afinadas ao uníssono e na mesma oitava.

PUNTOS: Pontos, pensamos que podem ser uns ouvidos abertos nos aros da sanfona cujo uso é ainda de difícil interpretação.

RECINA: Resina: "s.f. Producto natural, viscoso, que se extrai de alguns vegetais (especialmente coníferas), de alto valor industrial." (P.E.) A resina utilizada pelos músicos de instrumentos de corda friccionada tira-se do aceite de trementina e serve para oferecer resistência na fruição do arco ou roda sobre a corda.

RODA: Objecto circular, geralmente de nogueira, comunicada através dum eixo metálico ao veio que ao ser accionado fez mover a esta. Tem a função do arco nos instrumentos da família do violino.

SEGUNDA PONTE: Acaso um barrotinho de madeira que vai próximo aos primeiros tempereiros e logo da ponte principal.

TAMPO DE DIANTE: Tampo sobre o que vai situado o estojo e o cavalete, e menos próximo ao executante.

TAMPO DE TRAS: Tampo mais próximo ao executante.

VEO OU AGULLA: A agulha é o objecto metálico que usamos para coser e parece fazer referência ao eixo. Veio e a manivela com a que transmitimos movimento à roda, através do eixo.

TECLAS OU TÉCOLAS: "s.m. Peças de madeira sobre as que se pulsa para que os tempereiros cheguem a encurtar a corda."

TEMPEREIROS: Cada uma das pecinhas de madeira que a forma de tangente pulsam a corda, encurtando a longitude da mesma a diferentes alturas.

TERCEIRA: Corda cantante que acompanha às primas, em uníssono com esta na oitava inferior.

ZAPATILLA: Sapatilha: Camurça de alguns instrumentos de vento para que nas chaves não escape o sopro. É de supor que na sanfona servira para aperfeiçoar o som no roce dos tempereiros com as cordas, podendo ser neste caso de borracha.

(D.D.) 2003 SANTAMARINA, ANTÓN ed. Dicionario dos dicionários.
(P.E): 1990 Dicionário da Língua Portuguesa. (Porto; Porto Editora).
(E): 1995 ALONSO ESTRAVIS, ISAAC Dicionário Sotelo Blanco da língua galega. (Compostela; Sotelo Blanco)

Outro tema, que deixarei para mais adiante, é o do vocábulo veio: manivela com a que se acciona a roda da sanfona. Dará para muito.

Por último, e como ilustração a este artigo, uma reprodução dum quadro de Francisco Herrera (Sevilha, c. 1590 - Madrid, c. 1656).


É uma das representações de cego com lazarilho menos conhecidas das pintadas por artistas da península Ibérica. Pertence ao Kunsthistorisches Museum Wien, que achega a data  de c.1640. Ficha.
O que resulta mais curioso e o próprio instrumento. Parece ter um teclado diatónico e as cravelhas dispostas na parte superior do cravelhame, e não lateralmente como na sanfona ibérica. As ilhargas tendem a ser rectas, com uma pequena curvatura muito afastada da sanfona em forma de guitarra. Eu diria que é um instrumento muito semelhante ao do cego de La Tour, que foi pintado só uns trinta anos antes que o de Herrera. Também é de destacar os pregos cravados na tampa e a postura tão sanfonística das mãos do músico.
Uma beleza.

Para mais referências iconográficas da sanfona ver neste blogue a etiqueta sanfona e a nossa revista digital Opúsculos das Artes.

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