segunda-feira, 16 de abril de 2012

nº 133 Faustino Rey Romero e os Poetas dos Melros.


Abstract:
Breve relato sobre curiosos encadeamentos históricos que nos levam a crer na existência na Galiza duma geração poética à que poderíamos chamar Ornitólogos sentimentais, ou melhor dizendo, Os poetas dos melros e a sua relação com o Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra.

Eu quisera ser melrinho
e ter o bico encarnado,
para fazer o meu ninho
no teu cabelo doirado.
Quadra Popular.

Tragédia com três personagens

«Amor!» «Amor!»
-assobiava o Melro
Seu assobio
tinha algo quente
que dava frio

«Amor!» «Amor!»
- A Rosa, indiferente
não respondia

«Amor!» «Amor!»
- A Lua filosófica
sorria

«Amor!» «Amor!»
-assobiava o Melro

-A Rosa, cruelmente
não respondia

Enlouquecido
o pobre Melro
botou-se ao rio

De indiferente
a Rosa
passou a presumida

-A Lua
por ser tarde
deitar-se
ia

Ernesto Guerra da Cal Lua de Alem-mar 1959

Este formoso poema de Ernesto Guerra da Cal, dedicado a Fermín Bouza Brey, pertence ao livro Lua de Alem-mar e leva por subtítulo «para ornitólogos sentimentais». Na fina ironia do escritor ferrolano parece esconder-se uma alusão a toda uma geração de poetas herdeiros da poesia de Amado Carvalho e que, por diversos motivos, vão ser protagonistas dum evento pouco ou nada estudado até o momento: o Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra. Este festival celebrou-se entre os anos 1960 e 1967, sendo promotores Antonio Fernández Cid, crítico musical, e Xosé Filgueira Valverde, presidente na altura da câmara pontevedresa.
A mecânica do evento consistia em que compositores espanhóis e portugueses de grande sucesso musicavam um poema dalgum autor galego. Paralelamente, havia um concurso de composição do que saíam partituras premiadas. Durante uns dias, sempre nas datas próximas à festividade de São Bento, pronunciavam-se conferências-concerto, na que se interpretavam as obras encomendadas, as do concurso e outras de carácter histórico como ilustração às palestras.
Ernesto Guerra da Cal foi o autor dalgum desses poemas musicados, sendo a sua participação estudada por mim, em parceria com Isabel Rei e Joám Trillo, em dois trabalhos que sairão do prelo em breve. Mas além do poeta ferrolano, houve outros coetâneos que também participaram com seus versos no festival e aos que poderíamos chamar os Poetas dos Melros, dado que todos eles foram rapsodas deste passarinho de plumagem escura e bico amarelo.
Comecemos pelo próprio Guerra da Cal. O poema acima transcrito e titulado “Tragédia com três personagens” está incluído num grupo de seis poemas cujo título genérico é Cançonetas do Amor em Clave de Lua. Este pequeno conjunto tem muitas das características que Méndez Ferrín atribui à por ele chamada geração do 1936, como o neotrovadorismo, influência de Bouza Brey, ou o hilozoísmo/imaginismo, de Amado Carballo. Tanto Bouza Brey como Amado Carballo foram distintos Ornitólogos Sentimentais, sobrevoando o seu parnaso particular lavandeiras, rouxinóis, pintassilgos e, como não, algum melrinho.

«Fugiram as badaladas
ao acordar a manhã,
entre xílgaros e melros
pelo mato a rebuldar.»

Amado Carballo “Romage” Proel 1927

«Que não fujam os melros que fazem o ninho
no mais mesto curruncho dos teus verdores:
esgarçar-te-ei as polas muito amodinho
p[a]ra fazer um feitiço p[a]ros meus amores»

F. Bouza Brey Nós nº 12, 1922

«Todo o que é lírio, todo o que é melro
esfolar-se-á pelos campos galegos!»

F. Bouza Brey Nau Senlheira 1933

Ambos os dois poetas, Bouza Brey e Amado Carballo, foram musicados pelos compositores do Festival de la Canción Gallega, nomeadamente este último, cujo poema Ponte Vedra tornou-se num autêntico standard. 
Porém, os mais significados melristas pertencem à geração do 36, nascidos por volta do 1910. 
De entre todos eles, Xosé Mª Álvarez Blázquez teve um especial protagonismo no Festival, sendo um palestrante fixo das conferências-concerto. Os seus relatórios versaram sobre temas muito diversos, como as cantigas medievais ou os cantos de natal, estando sempre acompanhados de exemplos musicais. Também considero que deve atribuir-se lhe ser o primeiro em pôr o foco sobre o humilde melro, humanizando-o e vestindo-o com toda a sua roupagem simbólica:

O melro poeta

Da gorja algareira
do melro lançal
fugiam as horas
colhidas das mãos.

Co[m ]as suas moinheiras
e os seus alalás
a todas as melras
ia namorar.

Na pola mais alta
do meu salgueiral
morreu o poeta:
no papo, nem grão!

Ponte Vedra, 7-VI-1932

Ainda maior presença tem o melro na obra de Emilio Álvarez Blázquez, irmão de Xosé Maria e que também estivo muito envolvido na história pública e privada do Festival de la Canción. Ele escreveu coisas tão formosas como estas:

Cantaram os melros
e haverá um arzinho
entre os amieiros.

Emilio Álvarz Blázquez “Bico” Poemas de ti e de mim 1949

Meu reino não é desta árvore,
disse o melro, e pus em cruz
as asas sobre a paisagem...

Emilio Álvarez Blázquez O tempo desancorado 1988

Contudo, o poeta mais devoto dos melros é o Rianjeiro Faustino Rey Romero, o qual mesmo escreveu uma monografia poética sobre este passarinho, Escolania de Melros. O livro consta de vinte sonetos cujo protagonista é sempre a ave de pena negra.

O Melro

Prestidigitador de melodias,
que, sem cânon saber nem seguir pauta,
cantando a reo, nunca te extravias
no ar do rimo, voadora flauta.

Diz, que arame subtil é esse em que enfias
como doas de ouro a nota exata?
De que mestre aprendes-te a que assobias,
melodia lançal, música intacta?

Foste anjo de Deus? Pude ser isso!
Ou pássaro cantor no Paraíso,
onde a dita perfeita o Senhor forja?

Anjo foras, se, em vez de negra pluma,
asas brancas tiveras como a espuma,
pois é de anjo canora a tua gorja.

Faustino Rey Romero Escolania de melros 1959

Resulta evidente a influência de O melro poeta de Xosé Maria Álvarez Blázquez neste soneto do padre nado em Isorna. Mesmo palavras como lançal ou gorja, poderiam ser os restos fósseis que demonstrem tal genealogia.

Desconheço a relação certa entre Faustino Rey Romero e Xosé Maria Álvarez Blázquez, nem sei se esta foi estudada a dia de hoje por algum dos biógrafos de ambos escritores, mas cabe supor que esta existiu e foi intensa. Uma das razões que me levam a pensar assim tem a ver com os próprios biodados do escritor rianjeiro. 
Faustino Rey Romero nasceu o 27 de outubro de 1924, pelo que por idade está algo mais próximo a Emilio Álvarez Blázquez, nado no 1919, que a Xosé María, do 1915. Depois de estudar no convento de Herbão, o seminário de Madrid e o de Ourense, ordena-se padre no de Tui em 1948. Desde esse mesmo momento a sua vida passa a se desenvolver por terras do sul da Galiza, como as freguesias de Cela (Mos), Barcala (Arbo), Tameiga (Mos), A Guia (Tui), São João de Amorim... Vários dos seus livros Doas de vidro 1951 e Quatro sonetos ao destino duma rosa, 1952, foram editados na imprensa Tip. Rexional de Tui.
Uma relação tão intensa dum poeta com a cidade de Tui não deveu ser ignorada por dois dos bates tudenses mais insignes, Xosé Maria e Emilio Álvarez Blázquez.
Algum poema de Rey Romero também foi musicado no Festival de la Canción. Eu tenho localizados duas partituras, uma do compositor português Frederico de Freitas e outra do galego Groba.
A de Frederico de Freitas faz parte dum álbum titulado 10 canções galegas, do que já falei na postagem anterior. A inclusão dum poema do Rey Romero de lado de outros de Amado Carballo, Bouza Brey, Xosé Maria Álvarez Blázquez e do seu irmão Emilio põe um trilho musical inigualável a geração dos ornitólogos sentimentais.  

Por último e como colofão a esta postagem, mais uma cadeia de casualidades melricas. Faustino Rey Romero tem um soneto titulado:

O melro que lhe cantou a eternidade a São Ero de Armenteira.

Por acalmar uma amorosa queixa,
por adoçar de fera ausência o agre,
apreixaste o tempo na madeixa
do teu canto uma noite de milagre.

Não renderam três séculos um segundo.
Tao prodigioso foi teu rechouchio,
que às ditosas estâncias do trasmundo
daquele Santo subiste o alvedrio.

Foste em comparação como a escada
que véu Jacob unindo terra e céu,
mas, em vez de anjos, de música baixada.

Tu semeavas eternal semente,
e o Santo estava de si mesmo alheio,
enquanto cantavas milagrosamente.

O logótipo do Festival de la Canción Gallega foi feito por Agustín Portela Paz, ilustrador do Museu de Ponte Vedra e pai do famoso arquiteto César Portela e nele pode ver-se ao Santo Ero de lado do pássaro cantor.



Este mesmo desenhador fez as capas do livro de Xosé Maria e Emilio Álvarez Blázquez Poemas de ti e de mim, 1949, da Editorial Benito Soto. Por sua vez, Emilio, também fez um poeminha sobre o santo durmichão da Armenteira.

Santo Ero

Louvado seja o Santo
que está no Paraíso
e não queria tanto.

Louvada seja a hora
de Armenteira, que foi
trezentos anos glória.

Louvado o passarinho,
de quem ninguém se lembra
e está no Paraíso....

Emilio Álvarez Blázquez “Tríade de Três Santos” Lar 1953

Por certo, na revista Lar, do Hospital Galego de Bos Aires, também publicou Faustino Rey Romero em 1952 os seus Quatro sonetos ao destino duma rosa.

Enfim...

Orjais ©

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