segunda-feira, 28 de outubro de 2019

nº 239 Por que ninguém fala de Daniel Sueiro?


Para Alejo Amoedo,
com  abraço fraterno.

No ano 17 publiquei um artigo sobre Daniel Sueiro e um conto seu baseado no surrealista prémio chamado o «duro avecrénico». Falo com muitas pessoas de grandes conhecimentos literários e, consequentemente, ampla cultura geral. Porem, apenas encontro a ninguém que conheça a obra deste fabuloso contista e romancistas corunhês. Com a feira montada arredor da exumação dos restos do ditador Francisco Franco achei que o seu nome estaria quotidianamente na boca de repórteres, tertulianos e demais agentes mediáticos, mas nem assim. Resulta incrível que com tanta exibição de citas, ditos e disques, ninguém –ou quando menos a mim não me chegou– lembrara a ampla bibliografia do Daniel, escrita quando não só se precisava para publicar dum editor com dinheiros, também era preciso muito valor, ou como diriam na altura aqueles hominhos de bigodinho e óculos escuros , «tenerlos bien puestos».
Pois bem, ainda que só seja para presumir de biblioteca coloco aqui alguns dos meus imprescindíveis sueiros.

Os meus sueiros.

Sobre Franco, o Valle e o statu quo franquista.

La verdadera historia del Valle de los Caidos. Sedmay ed; Madrid, 1976

Eis uma leitura imprescindível antes de falar sobre o que a construção do Valle supus de projecto magalômano, delírio de ditador complexado, cumplicidade da igreja... Tem a virtude, ademais, de ir colocando no seu sítio todas as lendas, rumores, diferentes opiniões sobre algumas boas coisas que teve a construção, como a remissão de dias de cárcere aos presos que lá "livremente" acudiram a trabalhar. O livro termina com o relato dum incidente que houve na basílica, quando um moço falangista chama de traidor a Franco e também do único atentado que na altura sofrera o monumento. Certamente, a última frase –lida na distância parece premonitória– da ultima página do livro de Sueiro foi tirada duma brochura distribuída pela Defensa Interior, grupo que reivindica o atentado: «Franco, ni en tu tumba te dejaremos descansar tranquilo». Quiçá, diria eu, porque a tumba onde o deitaram não era sua.

1ª ed. História del  Franquismo Argos Vergara; Madrid 1978

Os quatro tomos da História del Franquismo de Sueiro e Diaz Nosty deveram ser, na altura, um impacto para muitas pessoas que mesmo sendo antifranquistas, foram educadas no culto ao ditador, com todos os tópicos que dele se diziam. Nada mais contraditório que essa imagem do homem austero combinada com a do grande espoliador do património nacional. Espanha era sua, continente e contido. Imprescindível a este respeito o artigo titulado "El gran espólio":

«La orden creadora del Consejo de Administración del Patrimonio Nacional (4 de abril de 1942), organismo autónomo con plena personalidad jurídica dependiente directamente de la jefatura del Estado, insistía reiteradamente en las facultades personales y omnímodas del mismo Jefe del Estado, don Francisco Franco, sobre todos esos bienes. Este Patrimonio nacional, que se convertiría durante un tiempo en coto privado o feudal familiar de Franco y sus allegados, secular Patrimonio de la Corona con anterioridad, sólo muy pocos años había podido mantenerse como Patrimonio de la República». p. 225-226.

Que dom Francisco se conformava com pouca coisa para viver fica claro noutro parágrafo da Historia do Franquismo:

«Uno de los bienes comunes –bien que adscrito al Patrimonio Nacional– más directa y personalmente puestos "al uso y servicio del Jefe del Estado" fue el Monte de El Pardo, un propiedad de diecisiete mil hectáreas que Franco convirtió en el más cerrado de sus cotos privados, después de que la República lo hubiera abierto, por el tiempo que pudo, al uso y disfrute del pueblo. no sólo estaba dedicada tan extensa finca a las diarias batidas cinegéticas de Franco y sus allegados o colaboradores más fieles –más de un centenar de puestos fijos de tiro quedaban allí a su muerte, amén de un Pabellón de Caza levantado en 1973 y que casi no llegó a estrenar–, sino que en sucesivas etapas fueron segregadas de ella enormes parcelas de terreno que iban a dedicarse a lujosa zona residencial de las clases dominantes y a instalaciones de lúdica expansión para las mismas».

Estos son tus hermanos Ed. Zero S.A.; Madrid, 1977

Na página que normalmente ocupam as dedicatórias dos livros, uma nota informa ao leitor das vicissitudes do, na minha opinião, melhor romance de Sueiro:

«Esta novela fue escrita en España en el año 1960. Se publicó en México, en Ediciones Era, en 1965. Y ahora [1977] aparece por vez primera en edición española».

É claro por que foi proibida uma obrinha que fala do regresso dum exilado à sua terra e da acolhida fria, quando não hostil, que recebe dos que aqui ficaram e usurparam os direitos dos vencidos. Na segunda edição espanhola de Estos son tus hermanos, o próprio Sueiro faz no prólogo uma acertada reflexão:

«Pues bien: los censores, incluso los de más alto nivel ministerial –en la época en que el paternal consejo quiso enmascarar el "cerco por hambre" a que también quiso condenársenos–, me decían que esta novela atentaba contra la convivencia de los españoles. Tuvo que ser leída inicialmente por los propios exiliados, en Máxico; no eran ellos ni era yo los que atentábamos contra la convivencia nacional: ni ellos con su legítimo y largamente insatisfecho derecho de regresar a llas raíces, ni yo denunciando los hipócritas cuando no alevosos recibimientos que los paladines de la convivencia estaban dispuestos a dispensarles parapetados tras sus "bunkers", o el que podían darles esas otrs criaturas del egoísmo y el odio, también del temor, que cruzan por las páginas de sta historia sin que siquiera corresponda a su autor el mérito de haberlas inventado. Ni ningún otro, tal vez». p. 13

A história que se conta no romance é como a de tantos outros: Antonio Medina, um moço conquense de 23 anos, tem que exilar-se em 1939 a França. Em 1952 retorna a uma cidade que já apenas conhece, morando na casa do seu irmão Pascual. Em realidade, aquela casa era tão sua como de Antonio. Mas, chegou com ver o rótulo da loja que fundara seu pai, e com a que agora corria Pascual, para saber que as coisas mudaram. Quando ele teve de exilar-se o texto do rótulo dizía: Manuel Medina e hijos. Agora esse hijos perdera o s final.
Toda a novela é o relato da hipocrisia de Estado que vendeu uma abertura das fronteiras e ofereceu abrigo a todos aqueles exilados sem delitos de sangue. Uma imagem cara ao exterior de bondade e misericórdia, mas sem restituir direitos, nem voltar a muita gente o que de seu lhes pertencia.
Este diálogo descreve perfeitamente a política cosmética do Franquismo:

«–Supongo que estará usted decidido a quedarse entre nosotros para siempre –dijo el policía, por último, mirándole con curiosidad.
Tampoco ahora respondió Antonio. Le contemplaba, a su vez, con la misma curiosidad, idéntico detenimiento.
–No me fío de usted –le dijo al comisario, por fin.
–La desconfianza es recíproca, querido amigo. Pero, de momento, yo no hago más que cumplir con mi deber, evitar que a usted le rompan los huesos. ¡Pues no íbamos a dar que hablar por ahí...! Figúrese.» p. 249

Cuentos Completos. Alianza Editorial; Madrid 1988

Resulta fácil de dizer que Daniel Sueiro é, como escritor, um contador de histórias. A sua literatura era perigosa para o regime não pelo seu conteúdo político, filosófico, vermelho ou mason, era só por descrever uma realidade que todos conheciam, mas que não se atreviam a descrever. Mesmo nos livros históricos acima expostos, encontramos mais dados, citações ou trechos de entrevistas que a própria tese do autor, com todo o que isto nos diria da sua base ideológica.
Entre os seus contos há autênticas alfaias literárias, como o titulado La carpa que descreve as misérias dos cómicos da légua, seres de «caras pintadas, narices postizas, apolillados uniformes de santones y generales, billetes falsos, versos de Zorrilla, gritos, trampas, palabras, palabras, palabras...». p. 79
De todos eles, o que mais abalou a minha alma, ou o que seja que temos ai dentro para alertar-nos sobre o belo, foi El regreso de Frank Loureiro. Trata a história dum homem que retorna à sua terra desde Nova Iorque, lugar ao que emigrara por necessidades económicas. Saíra com 16 anos e tornava passados os 40 a um lugar que viveu esse trânsito lento da sociedade quase feudal das primeiras décadas, a um capitalismo atrofiado de metade de século. Mas Frank é um perdedor. Como lhe passara a Antonio, o protagonista de Estos son tus hermanos, aqui já ninguém aguardava por ele. Por isso foi um texto incómodo, porque no 1964, ano da sua publicação, a emigração era património do estado, uma magnífica maquina governamental para trocar pobres por divisas. Então, como agora, não é?
Da leitura de El regreso de Frank Loureiro saiu uma pequena partitura para piano que amavelmente foi interpretada pelo meu caro amigo Alejo Amoedo. Não é uma partitura excelente, mas acho que transmite com precisão o que o meu coração sentiu quando fiz a primeira leitura. Porque tenho a certeza de que todos os grandes contos têm a sua melodia. 

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

nº 238 Alcumes centenários de Rianxo .


Na postagem nº 236 mostrava uma fotografia dum coreto desenhado por Castelao. Essa imagem encontra-se no Arquivo do Museo de Pontevedra, numa pasta baixo o título genérico de Ría de Arousa. Vocabulario e Folklore de pescadores. D. Casto Sampedro contactou com pessoas de todos os concelhos do Barbança na procura de dados relacionados com a vida marinheira da nossa bisbarra. Um dos documentos mais curiosos contém uma relação de alcumes de Rianxo, supostamente os mais usados na altura, lá pelo 1915. O autor da coletânea foi o padre Valentim Losada, tio de Manuel Antonio. 

«Lista de apodos muy usados en Rianjo (La Coruña)

A.

As de Cuerno, A Mentireira, A Saiñeira [de saim, gordura que deita a sardinha], As de Pelitón, Almirante, Aurejas, As de Pelengrín, A d'abuelo.

B.

Babosa, Balila-na-pedra, Barbuda, Bechaco, Baila-baila, Boyana, Bajulla, Bajalona.

C.

Cacho, Coxico, Cú-de-pedra, Cú-de-ouro, Cú-de-lura, Cú-la-pau, Castelo, Careca, Cairompe, Conasio, Carabela, Carabelita, Caramelo, Caixón, Cacharula, Calzones, Colondro [cabaço], Castañola, Cuciñeiro, Caramuxo.

Ch.

Cheiriña, Chaveras, Chubasco, Chiplé, Choca, Chonfa.

E.

Escuera.

F.

Fariña, Facoca.

G.

Gía.

J.

Jolá, Joreta, Jaitiña.

L.

Luis da Melra, Lirenta, Lemeña.

M.

Maya, Masidrán, Morceja, Menoro, Mascata.

O.

O'Urco, O Paneiro,

P.

Peteira, Peteiruda, Pempeno, Peneireira, Parrulas, Pindonga, Patife, Pexeja.

Q.

Quizá-zalga.

R.

Recatorce, Roxa, Resquixa.

S.

Sevilla, Sudre, Serodio.

T.

Tetón,Tripa-montes.

V.

Vizcaya, Velera.

X.

Xan das Polas, Xan de Pingue.

Z.

Zarical.»

Seria interessante estudar a origem destas alcunhas, a sua supervivência no tempo, a transmissão por via paterna ou materna, etc. mas é tarefa para outro momento da minha vida ou melhor ainda, para outra pessoa. Em qualquer caso na leitura desta escolma há que ter em conta a linguagem marinheira, os localismos, o sesseio próprio desta fala, etc. Colondro, por exemplo, é o termo próprio de Rianxo para denominar ao colombro ou cabaço, na atualidade pouco ou nada usado pelas novas gerações. Castanhola, com certeza, faz referência a um peixe, não ao instrumento musical de percussão e Quizá-zalga parece mui apropriado para alguém ser muito chato com um zarabeto que teve a desgraça de nascer no paraíso das sibilantes.

Também neste arquivo do Museu de Pontevedra existem comentários dos colaboradores de Casto Sampedro sobre a origem dos alcumes dados aos habitantes das diferentes vilas da nossa comarca. Por exemplo, há diversas explicações de qual é a causa de os rianxeiros ser chamados de "mata a mosca na perna". Num dos papeis lê-se: «Rianjo. Mata a mosca na perna. Mosqueiros. Porque como solo se dedican a la pesca, cuando es escasa o no la hay, cosa mas frecuente de lo que conviene, se echan al sol y al picarles las moscas las matan con mucha habilidad».

Disto e do porquê aos de Rianxo também se lhes chama Marra um, fala numa carta de 1915 Manuel Rodríguez Insua:

«Rianjo. 22/X/1915

Estimado D. Juan.

Recibí su apunte por Bravo, al que contesto.
El mote de “Marra un” es muy antiquísimo y aplicaban ésto siempre que contaban alguna cosa, por ejemplo; si contaban un ciento de sardinas y faltaba una, en vez de decir falta una decían “marra unha” y siendo jureles”marra un” (y aun hoy lo dice algun viejo). Lo del “mata á mosca na perna” es de cuando están los pescadores en las playas o (postas) esperando a que sea hora para largar el aparejo y unos durmiendo, otros jugando la brisca y todos ellos con el pantalon subido hasta la rodilla; viene la mosca y pica, y ellos van levantando la mano poco á poco y la dejan caer de fuerza y matan la mosca quedando muy conformes con haberla matado.
Pero Dios libre a cualquiera que le llamen a los marineros “marra un” que seguidamente contestan “marra a p.t. que che pareu” y cuando le dicen “mata a mosca na perna” contestan fillo de p.t. todo esto y algo más y a veces en la mar cuando se juntan los de Villajuan y Rianjo tienen ido a las manos. Del Chazo y Boiro, no se nada.
Recuerdos a su señora de toda ésta familia, junto con las mias, y para U. el aprecio de su affno. S. S.

Manuel R. Insua.»

Para perceber bem a mensagem desta carta temos que desvendar a identidade dos nomes que aparecem na mesma. O antiquário pontevedrino D. Casto Sampedro, fundador da Sociedade Arqueológica e do museu da capital provincial, tinha como colaborador da zona de Rianxo –além do crego Valentín Losada–  a Juan Goday Goday, dono da fábrica de conservas do Castillo. Este é o D. Juan a quem vai dirigida a missiva. A continuação aparece o nome de Bravo, que pelo contexto do conjunto documental penso que deve de ser Manuel Bravo Fernández, presidente da comissão de festas da guadalupe do 1916. Por último só resta falar do autor da carta. 
Manuel Rodríguez Insua foi «carpinteiro, encargado da fábrica de conservas no "Castillo", da familia Goday, comerciante, propietario, recadador do imposto de Consumos, e concelleiro (cargo do que renuncia por enfermidade, en marzo de 1924)». Rianxo na súa historia, Comoxo, Xosé & Santos, Xesús.
Em 1915 a fábrica já estava em franca decadência. Apenas uns anos depois, em 1918, começam a publicar-se anúncios com a intenção de a vender junto com as fincas anexas. 

«Venta de fincas de producción y recreo.
FÁBRICAS. En la ría de Arosa, provincia de Coruña se vende una Fábrica de Salazón y edificios que fueron de Fábrica de Conservas y casa habitación, ocupando todas las edificaciones una superficie de unos 1500 metros cuadrados. Es la única Fábrica que existe en la localidad y alrededores reuniendo excelentes condiciones para trabajar.
En la fábrica existen a la venta alguna maquinara y útiles de fabricación. 
FINCA DE RECREO. La huerta unida a la Fábrica, cerrada con altas murallas de piedra, tiene unos quince ferrados de sembradura, con árboles frutales y viña, su mejor producción; dada su inmejorable situación dominando desde ella toda la ría de Arosa, es de lo más hermoso como finca de recreo.
para informes, dirigirse a D. Juan Goday Goday en Villagarcia de Arosa.» Diario de Pontevedra, 27 de dezembro de 1918.

Em 1923, os nomes do médico de origem catalão e o vizinho de Rianxo Manuel Rodríguez Insua aparecem juntos numa nova publicidade para a venta da fábrica que nos achega alguma informação mais de como eram as instalações:

«En la ria de Arosa, Rianjo, se venden o alquilan: fábrica de salazón con casa de siete habitaciones y una gran galería y con edificios fueron para fábrica de conservas y huerta de unos quince ferrados, con agua potable, viñedo y árboles frutales en toda su producción, cerrada con altas murallas, hermosa situación, en el centro de la ría, para finca de recreo.
Para informes, en Rianjo, don Manuel Rodríguez Insua, en Villagarcía, don Juan Goday Goday». Galica: diario de Vigo. 7 de junho de 1923.

Em 1928 morria em Vila Garcia Juan Goday Goday e Manuel Rodríguez em 1934. Afortunadamente, a morte do velho encarregado da fábrica do Castillo evitou-lhe ver como os assassinos do seu filho, Manuel Rodríguez Castelao e do seu filhastro, José Losada Castelao, «os Insua», utilizavam o velho terreno dos Goday, –na altura já dos Baltar– como campo de concentração e que até o próprio General Mola assenhoreara lá como amo do Castillo. Como diria Castelao, cousas da vida!

P.S. O Manuel Rodriguez Insua mostra uma magnífica caligrafia escolar na sua carta enviada a Juan Goday. O texto não é só esmerado no estilo caligráfico senão mesmo na ortografia e regras de pontuação. Fiquem estas imagens como exemplo.

Cabeçalho da carta de Manuel R. Insua a Juan [Goday]
Museo de Pontevedra-

Assinatura de Manuel R.[Rodríguez] Insua
Museo de Pontevedra.


segunda-feira, 12 de agosto de 2019

nº 237 Declaración de Peritos. O Castelo da Lua em 1722.


Em 11 de maio de 1722 morria D. Martín Domingo de Guzmán y Niño, quarto Marquês de Montealegre. Apenas uns meses depois, seu filho, Sebastián de Guzmán y Espinola Enríquez de Mógica y Porres, marquês de Montealegre e Quintana del Marco e conde de Castronuevo, contratava a dois pedreiros e um carpinteiro para que lhe taxassem e moderassem seu castelo e fortaleça de Rianxo, hoje conhecida como o Castelo da Lua
Os peritos declararam diante do escrivão Joseph Benito de Torres Figueroa Villardefrancos, de apelidos idênticos a Dª Maria de Torres Figueroa y Villardefrancos, casada com Pedro Torrado Mariño Romay y Caamaño, senhor da casa de Abanqueiro. 
Os dados que se achegam neste pequeno relatório parecem-me de grande interesse por serem uma instantânea da fortaleça num momento preciso, o vinte e nove de novembro de 1722. Além, fala de edificações singulares, como a capela, das que nunca antes tinha ouvido falar. 

Sobre o documento: 

O texto elaborado pelo escrivão de Torres Figueroa tem algumas características que podem complicar um bocado a sua transcrição moderna. Alem do uso da abreviaturas acostumadas na época e doutras elaboradas ad hoc, comete faltas de ortografia que parecem pouco habituais mesmo para os anos em que foi escrito. Estamos na etapa final do barroco e não será até 1742 que a R.A.E. publique a sua primeira ortografia. Algumas características próprias da Declaración de peritos são as seguintes:

-Como bom vizinho da ria de Arousa, não diferencia entre os fonemas /s/ e /θ/ transcrevendo sempre com a grafia s ou ç. 
-Uso do digrafo tt para o son /t/.
-Uso constante e sem qualquer regra de vírgulas e, sobre tudo, pontos.
-Uso da letra r para o som /rr/.

A minha única motivação à hora de transcrever um documento é a curiosidade intelectual. Do que mais gosto é do processo, de ir descobrindo o que os protagonistas do documento nos quiseram transmitir. A presente transcrição foi elaborada sobre o escaneado feito pelos técnicos do Museo de Pontevedra e encarecidamente recomendo que antes de utilizar qualquer parágrafo da mesma se contraste com a fonte original.

Posesión do castelo de Rianxo por Sebastián de Guzmán Espinola e o seu fillo (1722).

Declaración de peritos=

En la Villa de Rianjo. A veinte y nuebe días de el mes de noviembre del mill setezientos y veinte y dos años. Antonio de Bar[r]os y Pedro Nuñes. Maestros de canteria y Pedro García. Maestro de Carpintteria; Ante su mrd p [muy reverendo padre] Fernando Troncoso; rexidor susodicho y a presencia de mi escribano dieron la declaración siguientte= Primeramente declararon que aviendo reconocido la entrada prinsipal. de el Castillo de Rianjo allaron que tiene; una fortaleza raça. con unos parapetos. al sircuyto. para Abrigo y anparo de soldados; la qual se alla. entteramente ar[r]uynada con diferenttes quiebras: en mucha partte rasa. asta los simentos y lo que se mantiene en pie todo. ar[r]uynado. con. mucha faltta de matteriales; y aviendola medido allaron que por la parte de el medio dia y fonttera prinsipal; tiene quarentta y una baras. Castellanas; de alto, seis; y de grueso. tres; y el Angulo. que esta a la parte del poniente y pegado a la mar; veinte y ttres baras, del largo; seis de alto, y dos y quarentta de grueso; y por lo que dicho lleban. aviendo tamvien reconosido el angulo que cor[r]esponde al nordeste; pegado tanvien con la mar; que tiene de largo. dies y seis baras; y de grueso; tres; tassan y moderan los reparos de todo ello; en catorce. mill. siette. sienttos. y sesentta reales de vellon= y aviendo reconosido la fortaleza prinsipal dentro de que se alla. Una torre fuerte. según la rodea. al sircuyto; y tiene, de largo. Sientto y veinte y ttres baras. y un pie; y de grueso. seis pies; la qual se alla firme y segura; y solo. le falta el antepecho al sircuyto; para cubrirse. los soldados; tasan y moderan. sus reparos; en siete mill. y Dusientos reales= y aviendo. Reconosido. la muralla exterior que sircunda la referida fortaleça. en medio de que ay una comunycacyon, mas capaz con unas partes que por otras; y tiene. su escarpe; por la parte. exterior que dice. a la mar; con sus troneras, para Artilleria. y otras para fusileria; y a la parte de nortte; una puerta falsa que sale. a la mar; y en frente de ella. otra que pasa. A la fortaleça. prinsipal, por la plaça de Armas; y en dicha puerta. de la mar, se alla. un Castillete. ar[r]uynado. todo. Juntamente. el antepecho de otra muralla que se alla. encastrada de dicho castillete; y enfente. de la torre principal; segun tiene de grueso. dos. baras. y medio tassan. el redifisio. y reparos de sus ruynas; en seys. mill. y quinientos reales= y aviendo. Reconosido. la torre principal de la qual. solo se alla. un lienço seguro; y los tres. ar[r]uynados; cuyo grueso hes de tres baras; y tiene de gueco [hueco?] seis; y un quarto que se alla pegado a ella. del mesmo grueso. de trese pies. y medio. en quadrado, con otra figura pegada a el; que tiene de largo, treinta y seis. pies. y de ancho doze; que con el grueso de las paredes. por todas parttes. Indica. Aver sido. calaboso= y otro quartto y o pieça que tiene veintte y ocho pies. y medio de largo; y quinçe. de Ancho. que indica aver sido. capilla= y un horno que indica. aver estado cubierto; cuyas pieças. se allan dentro de la plaça. de harmas. y considerando. sus quiebras, ruinas y falta de materiales; tasan y moderan sus reparos; incluso. los de dicha tor[r]e; perfexsionandolo. todo a lo llano; en Diez y siette mill seis sientos. y ochentta reales; A toda costa; y llave. en mano; cuya partida. junta; con las anttes [?] ymporta; quarenta y seis mill; sientto. y quarenta. reales teniendo consideración. A aver en çer. mucha piedra. de las ruynas= y dicha tasa. y reparación. la hacen. devajo del juramento que fecho tienen, conformandose con sus intelixencias y todo ello. Llave. en mano= ansi lo declararon. firmola dicho Antonio de bar[r]os. no lo ysieron los demas por no saver; y solo su muy reverendo ante mi escribano que de todo ello doi fee.

Fernando Troncoso.            Antonio de Barros.
Ante mi
Joseph Benito de Torres Figueroa.

O plano de Enrique Castillo.

Duzentos anos depois da redacção da Declaración de peritos solicitado pelo Marquês de Montealegre, o projectista de obras públicas Enrique Castillo Basoa (Comillas, Santander, 1860; Corunha,1924) desenhou um plano com o lugar exacto onde se encontra o castelo. Encontrei-me com este documento –uma folha impressa de tamanho aprox. A5– por casualidade, entre os papeis de Pilar Castillo, pianista e filha do autor do mapa, sem qualquer indicação de onde foi publicado, se é que o foi, nem quando. Em qualquer caso podemos data-lo nas primeiras décadas do século vinte, antes de 1924, ano da morte do autor. Enrique Castillo fazia estes planos e mapas por encomenda de diferentes organismos como o Concelho da Coruña, a Deputação, a Real Academia da Lingua Galega... e até para a enciclopédia Espasa. Descobrir a que volume pertence esta impressão resulta verdadeiramente complexo. Em qualquer caso, na nota a pé de página le-mos que «el círculo negro indica el emplazamiento que tuvo el castillo» pelo que parece que o desenho complementa um artigo onde se cita a fortaleça rianxeira.

Arquivo da Real Academia da Língua Galega.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

nº 236 O coreto da música de Castelao.

+

Sr. D. Casto Sampedro:

Mi querido y respetable amigo: Su carta del 21 pasado, está caústica, pero justificada. Me gusta mucho cantar el mea culpa cuando se debe. sin embargo (siempre la rebaja) crea V. que también mi deseo de complacerle, han tenido que sufrir bastante por causa de tercero. Quiebras de no poder todos todo, como diría el P. Remigio Vilariño.
Hoy (antes no me atreví) le envio mi saludo por año nuevo y deseo que Dios se lo conceda (y me alegraré lo mismo del cacho que ya hemos despachado) con las mayores ganas y satisfaciones de espiritu y de cuerpo.
Y te envío mas fotografías que me manda un amigo mío, a quien había yo confiado su encargo de V. y al que solo la cartita levantó ampollas y obligó a moverse. Eso es, como el dice, complacer a V. a medias, ligero lo haré completamente, para hacer buena la frase de "vale mas tarde que nunca".
Hoy mismo le escribo a ese chico de Rianjo para que complete pronto el encargo. Yo haré que me amplien aqui las fotografias de los escudos, pues tengo quien me lo haga, con gusto y pronto.
Para disculparme algo también yo, le envío la carta de mi amigo de Rianjo. y hasta que vuelva de concurso, al que iré para el 15 y 16 de febrero, Dios mediante, no le contesto, sobre si hay algo en este archivo referente a gremios marineros. Lo haré entonces, lo mas presto posible también para desabraviarle.
Salúdale afestuosamente su afectísimo seguro servidor amº (amigo) y Cap. (capelão?) Valentín Losada.
Cangas. 24 de Enero de 1916.

O padre Valentín Losada é homem bem conhecido pelos afeiçoados a história rianxeira, entre outras coisas, por ser curmão de José Sánchez Vázquez, Chantre da Colegiada de Íria;  sobrinho do bispo auxiliar Araújo Silva e, sobre tudo, por ser tio do poeta Manuel António. Além disso, tem uma rua em Cangas onde exerceu o curato algo mais de trinta anos. Porém, a relação entre o antiquário pontevedrino Casto Sampedro e o padre Valentín deve proceder de quando este último esteve destinado na cidade do Leres. Em 1899, com apenas 25 anos, é nomeado professor de Religião nas Escolas Normais de Ponte Vedra.  Até 1905, que parte com destino a Cangas, vai acumular um longo currículo exercendo de capelão e professor de Religião e Moral do Instituto, coadjutor de São Bartolomé, Senhor Capelão da Adoração Nocturna e Ecônomo de Louriçã. 
A carta que acima transcrevo pertence a uma série epistolar entre duas pessoas que embora sendo amigos utilizam tratamento de respeito. Há que lembrar que ainda que ambos morreram em 1937, Casto Sampedro era vinte e cinco anos maior que o padre Valentín. O tom de desculpa da missiva remete a uma anterior na que o velho antiquário deveu mostrar todo o seu mau humor até ser apelidado pelo seu interlocutor de «caustico». O certo é que esta pequena carta achega-nos informações interessantes que me invitam a fazer algumas reflexões sobre os sujeitos que as escreveram:

1º Casto Sampedro e Folgar (Redondela, 1848; Ponte Vedra, 1937) foi o mais grande investigador galego da sua época em temas relacionados com o folclore –nomeadamente musical– e arqueológico. Não foi um investigador exclusivamente de gabinete, mas desde a sua oficina foi quem de tecer uma rede de informadores por toda a Galiza digna dum James Frazer e o seu Ramo de Ouro. Hoje, como demonstrou Xavier Groba, esta correspondência é fundamental para conhecer a atividade da comunidade científica criada na altura fora dos âmbitos estritamente académicos.

2º Nesta carta, assim como noutras das publicadas pelo professor Groba, a auctoritas de Casto Sampedro resulta mais que evidente. Tanto tem se está a pedir um favor ou a quem lho está a pedir –neste caso um crego–; se o que prometes não o dás em tempo e hora a reprimenda vai ser brutal. 

3º Na carta há algum dato mais que nos permite moldurar a figura de Valentín Losada. Aparece, por exemplo, uma citação a Remigio Vilariño Ugarte (Gernika, 1 de outubro de 1865 - Bilbao, 16 de abril de 1939) jesuíta ultracatólico e ultraconservador. Sabendo da posterior adesão do Padre Valentín ao levantamento militar, esta citação não espanta. Também conta na carta que os dias 15 e 16 de fevereiro assistirá a um concurso. Trata-se, não se levem a engano, do Concurso Geral a Curatos celebrado nesses dias em Compostela. É de supor que ele foi em qualidade de membro do tribunal examinador.

Mas o aspeto que me parece mais interessante reside no motivo principal pelo que Casto Sampedro pede a ajuda do rianxeiro Valentín Losada. O diretor da sociedade arqueológica está a recolher informação sobre o folclore dos mareantes nas Rias Baixas pelo que o padre pode enviar-lhe coisas tanto de Rianxo, onde nasceu, como de Cangas, onde exerce de crego. Também estava interessado pelos escudos, lavras que na vila de Castelao se contam por dúzias. Entre o material que lhe envia há uma coletânea de fotografias, a maioria muito parecidas as que já conhecemos e estão penduradas das paredes da Casa Museo de Manuel Antonio. O autor das fotos penso que pôde ser José Barreiro que em 1912 publica em Vida Gallega, nº 35, uma reportagem fotográfica sobre a vila rianxeira. 
Entre o pequeno grupo de fotografias há uma que centrou imediatamente a minha atenção. Trata-se duma instantânea dum coreto ou palco da música portátil, rodeado de multitude de gente que escuta o concerto duma banda de música. Esta é a imagem.

Museo de Pontevedra
Fundo Casto Sampedro

No avesso da fotografia aparece a lápis uma breve descrição do documento: «Rianjo. Romeria de Guadalupe. (Momento en que el público escucha á la Banda Municipal de Música de Santiago».

Não há dúvida que se trata do Campo de Abaixo, numa fotografia tirada possivelmente desde a farmácia de Seco, atual Museo do Mar. Sabemos pela carta do padre Valentín que a instantânea tem de ser anterior a 1916. Por tanto, só fica saber quando foi que a Banda Municipal de Santiago tocou nas festas da Guadalupe e isto aconteceu na convocatória de 1913.

No Barbeiro Municipal do 6 de agosto, comunica-se o nome do presidente da comissão de festas, D. Manuel Bravo Fernández, e a boa notícia de que o consistório vai achegar 100 pts para sufragar os gastos orçamentados. Assim na Gaceta de Galicia em 4 de setembro  sai o anúncio de que: «para las fiestas de Guadalupe que habrá en Rianjo, los días 13 y 14 ha sido contratada la música municipal de Santiago». O capital achegado pelo concelho era insuficiente para contratar à banda da capital da Galiza, já que segundo tarifas publicadas pela professora Beatriz Cancela Montes, por cada dia de saída fora de Compostela a agrupação cobrava 250 pts, mais gastos de transporte, manutenção e alojamento. Fará falta a ajuda generosa dos vizinhos e, sobre tudo, dos industriais, para chegar a esse capital, uma porção importante do gasto total dos três dias de festa de 1913.

Se resulta maravilhoso encontrar-se com uma imagem dum coreto no Rianxo da Belle Epoque, ainda mais o é depois de ler o seguinte comentário aparecido no Barbeiro Municipal: «En las fiestas de Guadalupe levantarase un artístico palco para la música en la parte más amplia del paseo de la Alameda, que será ornamentado por nuestro gran Castelao con su innegable pericia y primorosa originalidad». 06/09/1913
Não é a única vez que Castelao colaborou com as festas da virgem rianxeira. Anos antes, como é sabido, construíra o famoso cabeçudo que deu lugar ao conto Peito de Lobo. Ao ver em detalhe a imagem do coreto podemos assinalar três elementos básicos na decoração: grinaldas de flores, tabuleiros quadrados com o escudo de Rianxo e umas grandes cabeças de leão de cujas boca saem os motivos vegetais. Foram estas cabeças obra de Castelao? Pois resulta difícil de saber, mas ao engrandecer a imagem apreciam-se partes descascadas, como se se trata-se de material reutilizado.

    
Sobre a cabeça dos músicos há um volumoso farol de gás ou querosene, já que ainda tardaria uns anos em chegar a corrente elétrica a Rianxo. A minha ignorância a respeito destas luminárias é total mas tem certo parecido com lâmpadas penduradas marinheiras, das que eram habituais nos cais ou no interior dos barcos.


O concerto da Banda parece que foi um acontecimento tão extraordinário na vila que fixo pequenas as seguintes edições da festa rianxeira. A frente da agrupação musical vinha Francisco Martínez, músico que, por essas casualidades que sempre se encadeiam, Castelao caricaturou duas vezes. 

Col. part.

Apêndice:

Rianxo conta com um património material de grande valor histórico, etnográfico, artístico... Entre as edificações singulares vamo-nos encontrar com dois coretos ou palcos da música, cenário das velhas festas populares e hoje, infelizmente, quase restos arqueológicos.

1º Paróquia de Assados, ao pé da capela de Santa Lúcia.
Medidas:

Superfície da cena.

Base.

2º Paroquia de Isorna. Quintães.

Superfície da cena.

Base.

Se comparamos os coretos de Assados e Quintães vemos como ambas têm uma base octogonal, com umas dimensões muito parecidas e quase idênticas nas suas proporções. A relação entre o diâmetro da cena e um lado do octógono são nos dois casos de +- 2,6 e entre a altura da base e o largo dum dos lados +- 1,5. As paredes eram de madeira e tenho a impressão que o chão original também. Na atualidade, a superfície da cena foi preenchida com cimento alterando como seria esta nos tempos em que os coretos estavam em uso. Contudo, no de Quintães aprecia-se perfeitamente o sistema de ancoragem das tábuas de madeira à base para sujeitar as paredes do cenário. Em cada ângulo do octógono há um quadrado escavado para colocar um travesseiro. A poucos centímetro do buraco sai da pedra um ferro tal vez para ajustar e impedir que o madeiro se mova. 


Os coretos acostumam a ser colocados em praças e alamedas, em lugares que permitem a visão panóptica dos espetadores, sem edifícios encostados que dificultem a livre contemplação dos músicos sobre o cenário. Teria sido natural que a alameda de Rianxo contara com um coreto de obra, dada a tradição bandística da vila. Mas não foi assim, e isto faz-me perguntar o porquê sim os há noutras paróquias do concelho. Assados tem uma grande tradição musical, com bandas civis desde épocas em que os palcos da música estavam no seu apogeu. Aliás, neste caso, o coreto está no adro anexo à capela de Santa Lúzia, lugar de celebração de romaria e feira de gado. Tem uma localização lógica e parece natural que em dito lugar alguém decidira construir um palco para a banda. O caso de Quintães é muito mais esquisito. Se já este lugar está um bocado afastado do resto dos lugares da paróquia de Isorna, resulta que a eira onde se colocou o coreto está também afastado do núcleo principal de povoação de Quintães. Na imagem aérea de googel maps pode-se ver o lugar nada acostumado onde se localiza o coreto.

 O ponto vermelho indica o lugar exato.


Por último, cabe perguntar que futuro lhes aguarda aos coretos de Rianxo. O de Asados está no médio duma alameda, ao pé da igreja e dum parque para crianças. O de Quintães está sozinho, no médio duma eira que sempre que visitei estava sem gente. Com o passo do tempo e a sua total perda de funcionalidade, que fazer com essas edificações? A cantaria de ambos os dois coretos está em perfeitas condições, só o de Quintães sofreu um destroço num dos seus cantos. As pedras ainda estão lá, no lugar mesmo onde cairão. Entendo que administrativamente este tipo de edificações contam com algum tipo de proteção, mas, em qualquer caso, resulta difícil entender e explicar que o que hoje guardamos é uma simples base octogonal. E ainda bem!

                                                                               Canto da base danado.

Os palcos de música têm a sua origem ligada à democratização da música. As grandes músicas saem dos teatros para espaços abertos de entrada livre e gratuita. Num destes palcos, nas primeiras décadas do s. XX, um rianxeiro podia escutar adaptações de óperas de Verdi ou Wagner, zarzuelas de Chapí ou Amadeo Vives, passodobres de Soutullo ou Cambeses e até o mais atual cuplé da Meller. Agora, o número de músicos, as necessidades técnicas, o volume dos instrumentos daquela inexistentes, levaram as bandas a preferir cenários à italiana e só nos grandes coretos das capitais é que podemos, de quando em vez, assistir a um concerto de quiosque e alameda. Tal vez estou saudoso de mais, mas ainda tenho a esperança de que algum dia atualizemos estes espaços para dar-lhe uma nova vida musical. Que assim seja!

Bibliografia:
Cancela Montes, Beatriz La Banda Municipal de Santiago Santiago de Compostela; Andavira. 2016
Groba González, Xavier [Tese de doutoramento]

**--**
**

segunda-feira, 29 de julho de 2019

nº 235 Os Cantores del Instituto e a receção da obra de Lopes-Graça na Galiza. II


Em 1958, os cantores do instituto deram começo a uma série de concertos anuais que tinham lugar no convento de Santa Clara, justo ao remate das celebrações do natal, baixo o titulo genérico de La Despedida del Villancico. Durante toda a década dos 60, quando menos até 1970, entre as numerosas peças interpretadas pelos coristas encontrava-se Eu hei de dar ao menino de Fernando Lopes Graças.
Podemos dar-nos uma ideia do repertório habitual dum concerto de La Despedida lendo o que aparece publicado no seguinte artigo de El Pueblo gallego.

El Pueblo gallego. Ano XXXVII nº 12222 1961 janeiro 7

Pela circunstância que acabo de relatar, cada sete ou oito de janeiro –e durante mais duma década– uma peça do mestre de Tomar era interpretada na cidade de Pontevedra. Considero que isto é algo a valorizar na sua justa medida, sendo conhecedores do receio com que a sua obra era olhada  na península por causas totalmente extramusicais.
Nos mesmos concertos era habitual a presença doutro autor português, Mário de Sampayo Ribeiro (1898-1966), compositor e pedagogo musical, um dos ideólogos do reportório das Mocidades Portuguesas. Sampayo Ribeiro e o seu programa pedagógico de intervenção musical nos escolares sintoniza à perfeição com o impulso que levou a criação dos Cantores del Instituto. Além disso, o mestre teve a oportunidade de transmitir na Galiza as suas ideias musicais através dos diferentes concertos que vai protagonizar:

24 de abril de 1949, coro Polyphonia, lugar: Catedral de Santiago de Compostela.

5 de agosto de 1952, Coro do Centro Universitário de Lisboa, lugar: Salão artesoado de Fonseca. Santiago de Compostela.

6 de agosto de 1952, Coro do Centro Universitário de Lisboa, lugar: Igreja de Santa Maria, Ponte Vedra. [Os concertos de 1952 foram por conta do Centro Universitário das Mocedades Portuguesas]

20 de agosto de 1957, Coro do Centro Universitário de Lisboa, lugar: Praça da Ferraria, Ponte Vedra. [As crónicas dos jornais recolhem o seguinte comentário: «[...]la primera fue iniciada por una canción popular francesa y continuada con música de Franz Gruber, Joaquim Casimiro, Sampayo Ribeiro, Bach y Weber, con predominio del tipo religioso. La segunda parte, la integraba una serie de canciones lusas». À vista deste repertório e da essência escolástica do coro estamos ante um possível modelo para Los cantores?]

Em geral, o repertório dos Cantores combina a música antiga com o folclore galego, espanhol e até mundial, como na série de cantos de natal. Outra das suas características seria o importante peso que tem o elemento religioso, não só na escolha do reportório, senão na participação ativa em atos da liturgia católica, nomeadamente na Páscoa e no Natal. O primeiro diretor dos Cantores, Agustín Isorna Rios (1914-1966), pessoa de grande erudição, formou-se musicalmente entre os mercedários do convento de Poio, abandonando os hábitos para chegar a ser oficial do exército trás o levantamento militar do 36. Ele é quem coloca os alicerces ideo-musicais do coro do Instituto, quem põe os seus conhecimentos paleográficos ao serviço dum repertório onde as cantigas medievais ou a obra do seu amado Tomás Luís de Victoria marcaram presença continuada.

Mas neste ambiente conservador e tradicionalista que pinta a figura de Lopes Graça? Pois contra todo prognóstico, muito.

O primeiro que haveria que dizer é que o génio de Lopes Graça estava fora de toda dúvida. Na imprensa galega apenas há crítica musical ao repertório de Los Cantores, só reflexões gerais sobre a interpretação e afinação das vozes. Mas, às vezes, e lendo entre linhas, podemos tirar alguma reflexão de como se recebia a obra do mestre de Tomar em comparação, por exemplo, com a de Sampayo. Assim, depois da conferência-concerto dada por Filgueira Valverde no Hostal dos Reis Católicos lemos num jornal compostelano: «[…] y un “scalanto” navideño de López Graca (sic), uno de los músicos de mayor calidad del Portugal actual». «[…] en dos versiones portuguesas del maestro Sampayo Ribeiro, tan querido de Galicia». La noche: 19/XII/1957, ano XXXVII, nº 11467
Noutro lugar, o crítico de El pueblo gallego, Justo Calderón dizia: «Para nuestro gusto, marcaron los puntos límite de excelencia e inferioridad en un recital (repetimos) de constante nivel superior, los dos villancicos portugueses (delicioso el de Lopes Graça; dentro de linea más conservadora si exquisitamente sutil el de Sampaio Ribeiro), mirando hacia arriba y, mirando hacia abajo, la balada del catalán Millet, “El cant des aucells”, no por deficiencia de interpretación (verdaderamente loable) si no por menor adaptación al la línea general de la velada». 10/I/1961, Ano XXXVII, nº 12224. Há que lembrar que na altura El Canta dels ocells era um símbolo do republicanismo e do catalanismo no violoncelo de Pau Casals.

Mas, na lista de fãs incondicionais de Lopes Graça temos que situar em primeiro lugar ao bibliófilo e crítico musical Antonio Odriozola (1911-1987). Nos fundos do Museo de Pontevedra encontramos um documento mecanografado datado em 8 de dezembro de 1955 que testemunha claramente isto que acabo de dizer. Trata-se duma carta de Odriozola ao diretor de La Noche, Raimundo García Domínguez (1916-2003), conhecido como Borobó, no que lhe pede que inclua no jornal que dirige um artigo seu sobre Lopes Graça. Em resumo, o texto vem a elogiar o concerto dado em Ponte Vedra pelo Coro de Cámara de Pamplona, e com especial ênfase a peça Encomendação das almas.

«Lopes Graça sabe bien –como Bartok, Strawinsky o Falla– que el folklore puede ser objeto de las más artísticas elaboraciones con tal que el resultado final sea fiel a la esencia de la inspiración popular. Y lo sabe bien porque –como lo fue Bartok– es a la vez un gran compositor y un riguroso y científico recolector de las canciones populares portuguesas y autor de un libro sobre ellas. Por ello, la Encomendação das almas que escuchamos a la Coral de Cámara de Pamplona era una obra lograda y una pieza impresionante que no era posible escuchar con indiferencia sino en plena y emocionante tensión.
En 1951 publicaba Lopes Graça Sete Encomendações das almas para coro mixto a cappella, a las que pertenece la escuchada estos días a los navarros. No está ahora a mi alcance esa partitura ni el Cancioneiro Minhoto de Gonzalo Sampaio para comprobar si las melodías recogidas por este son la base de la obra de Lopes Graça, ni esa comprobación tiene la menor importancia. Lo que sí la tiene, es registrar el extraordinario logro artístico obtenido por el compositor. Aquella inolvidable voz de contralto y las conmovedoras entonaciones del coro, raspaban o sacudían el alma, evocando la impresionante ceremonia nocturna y haciendo acudir las lágrimas a los ojos. Puede estar bien satisfecho Lopes Graça de haber creado una obra genial y de que los navarros la interpreten con sinsuperable maestría.
Estas Encomendações das almas suelen cantarse en el Norte de Portugal, en las noches de Cuaresma, en los cruceros de los caminos que tienen su retablo de las ánimas, como muchos curceros gallegos. (Recuerdese el de la Ramallosa que cierra el libro Rías Bajas de Galicia de Castroviejo). Allí se difunden en el aire nocturno estas Encomendações de conmovedora belleza y con el texto de una de ellas cierro el artículo:

Alerta, alerta,
a vida é curta, a morte é certa!
Os irmãos meus, filhos de María,
pelas almas do Purgatório,
un Padre-Nosso,
uma Ave-Maria!.»

Como curiosidade, Antonio Odriozola faz uns rascunhos das fotografias que quer inserir no corpo do texto, entre as quais, uma muito simpática de Lopes Graça:

Fundo: Antonio Odriozola.
Museo de Pontevedra.

Odriozola e Lopes Graça já se tratavam com anterioridade a este artigo –que segundo creio jamais chegou a ser publicado– já que na dedicatória de Bela Bartok: três apontamento sobre a sua personalidade e a sua obra podemos ler: «Para D. Antonio Odriozola muito cordialmente. Fernando Lopes Graça. Lisboa. Maio, 1954». Fundos do Museo de Pontevedra.

Com tudo, o documento mais interessante, na minha opinião, com o que nos encontramos no Museo de Pontevedra do fundo de Iglesias Vilarelle, compositor e diretor da Coral Polifónica da cidade do Teucroreside numa partitura, as Três líricas castelhanas de Camões, para coro mixto “a cappella”. Esta obra aparece no catálogo do espólio musical com o número LG 25. Segundo o mesmo catálogo foi composta em Lisboa 1954/55 e a sua primeira audição teve lugar o 20 de abril de 1966 pelo coro Gulbenkian. Mas na capa do exemplar do Museo de Pontevedra aparece uma dedicatória: “À Coral Polifónica de Pontevedra. Fernando Lopes Graça”. No contexto de todos os dados achegados neste artigo e no anteriormente publicado no meu blogue, resulta verosímil a hipótese de que as Três líricas castelhanas fossem compostas para ser estreadas pela Polifónica de Pontevedra. Infelizmente, não posso demonstrar que esta estreia tivesse lugar na Galiza antes do 1966, data que aparece no catálogo. O que sim posso é fazer umas pequenas reflexões a respeito.

De Iglesias Vilarelle e a sua relação com Portugal já tenho falado noutras ocasiões, a propósito desse acontecimento histórico como foi a interpretação em 1939 do seu Chucurruchú pela orquestra de câmara da Emissora Nacional, baixo a batuta de Frederico de Freitas. Em qualquer momento desses frequentes encontros luso-galaicos em congressos, convívios, homenagens... Vilarelle pode saber de Lopes Graça, conhecer-se ou, simplesmente, chegar a um acordo puramente profissional. Porem, o fato de serem textos de Camões faz-me pensar, mais uma vez, no factótum de tudo quanto acontece na velha vila, D. José Filgueira Valverde. 

Filgueira Valverde, como Antonio Fernandez-Cid, acostumavam a ilustrar as suas conferências com intervenções musicais. Estas podiam ser de piano solo, piano e voz ou corais, segundo as necessidades ou a disponibilidade dos músicos. Nos anos cinquenta, Filgueira começa a dar palestras em torno a figura duma das suas personagens favoritas: Luís Vaz de Camões. Para entender melhor o fenómeno permitam-me fazer uma pequena cronologia filgueira-camoniana:

–Em 19 de julho de 1952, nos Cursos de Verão da Residencia "La Estila" o título do seu discurso foi El legado de Camões. 

–No 54, quando Lopes Graça começava a escrever as Três líricas castelhanas, Filgueira participava nas Jornadas de literatura, na Corunha, em 21 de julho, com a palestra Camoens, clásico español. 

–Anos mais tarde, no 58, todas estes relatórios farão parte do volume da editorial Labor, Camões, na que o diretor do Museo de Pontevedra, confesso iberista, defende a espanholismo do autor das Lusíadas.

«Pero ni la oriundez gallega, ni el bilingüísmo, ni siquiera el que se hubiese definido él mismo como "hespanhol"... bastarían para clasificarlo entre nuestros clásicos. La razón es muco más honda. Camoens constituye un eslabón en la áurea cadena de la lírica peninsular, cuyo estudio no es posible fragmentar, y, sobre todo, es quien lleva a su culminación la épica. Os lusiadas, como dijo Ramiro de Maeztu, son nuestra epopeya, y "en ellos se halla la expresión cunjunta del genio hispánico en su momento de esplendor... Donde acaban los Lusiadas comienza el Quijote». Camoens, Editorial Labor, S.A., Barcelona. p. 9

Curiosamente, vinte e tantos anos antes, exatamente em 1930, Lopes Graça reflexionava em paralelo sobre o Quixote e Os Lusíadas, fazendo, ao mesmo tempo, "amigos" na intelligentsia do Estado Novo:

«Como Zozaya [que falava do inoportuno de ler o Quixote no ensino primário], nos exclamamos –Os Lusíadas não são leituras para crianças nem para adolescentes... Na escola não se fazem mister nem Vasco de Gama nem Júpiter tonante. Forme-se  primeiro o homem, depois o patriota». Disto e daquilo. Edições Cosmos, Lisboa. p. 143

Por último, as três peças musicadas por Lopes Graça são particularmente estudadas por Filgueira no seu livro Camoens, capítulo XII, pp. 409 e seguintes,  titulado "Camoens, clásico castellano", idêntico cabeçalho que a palestra dada no colégio da Estila em 1954.

Na página 415 podemos ler:

«Excepto uno, atribuído a Boscán, los "motes" escogidos por Camoens son anónimos y proceden de villancicos populares o de villanescas cultas. Estos "motes" de las letrillas castellanas son los siguientes:

Ojos, herido me habéis,
acabad ya de matarme;
mas, muerto, volved a mirarme
por que me resucitéis.

¿Qué veré que me contente?

¿Para qué me dan tormento,
aprovechando tan poco?
Perdido, mas no tan loco
quesescubra lo que siento.
(Con indicación de "Alheio")

De vuestros ojos centellas
que encienden pechos de hielo,
suben por el aire al cielo,
y, en llegando, son estrellas.
("Alheio")

Todo es poco lo posible
("Alheio")

Vos tenéis mi corazón.
("Alheio")

De dentro tengo mi mal
que de fuera no hay señal.
("Alheio")

Amor loco, amor loco
yo por vos, y vos por otro.
("Alheio")

Justa fue mi perdición,
de mis males soy contento;
ya no espero galardón,
pues vuestro merecimiento
satisfizo a mi pasión,
("Trova de Boscán")

Irme quiero, madre,
a aquella galera,
con el marinero,
a ser marinera.

¿Do la mi ventura,
que no veo alguna?

–¿Por qué no miras, Giraldo,
mi zampoña como suena?
–Porque no me mira Elena.
(Villancete Pastoril)» pp. 415-416

[O negrito é meu e indica na sequência de versos os títulos das Três líricas castelhanas de Camões.]

A vista do texto de Filgueira ficam claras duas coisas. Em primeiro lugar as canções não são da autoria de Camões, senão populares, a exceção da de Boscán, e em todo caso recolhidas por ele. E, em segundo lugar, não me cabe muita dúvida de que Lopes Graça conhecia o texto de Filgueira sobre Camões, obviamente na versão da palestra dada na Estila.

Resumindo

Estou na certeza de que existe uma relação íntima entre a Polifónica de Pontevedra, os Cantores do Instituto, Filgueira Valverde e a criação em 1954/55 de Três líricas castelhanas de Camões do compositor português Fernando Lopes Graça. A dedicatória na capa da partitura que se custódia no Museo de Pontevedra é muito esclarecedora, mas nada diz a respeito de se o que se dedica é o exemplar ou a obra. Como hipótese, e aguardo que algum dia isto possa ser demonstrável, deito a ideia de que Três líricas castelhanas de Camões fosse uma encomenda da Polifónica, de Vilarelle ou de Filgueira Valverde para ilustrar as palestras-concerto deste último. Em qualquer caso considero uma honra contar no museu de Ponte Vedra com um manuscrito dedicado do grande Lopes Graça, na satisfação de sentir que algo dele nos pertence.