domingo, 14 de fevereiro de 2016

nº 200 Lela. Uma canção à procura de um autor.

Lela

Uma canção a procura de um autor.

I

Em sábado 30 de janeiro de 2016 a companhia Fantoches Baj estreava em Ponte Vedra e Rianxo a sua adaptação de Os velhos não devem namorar de Castelao. O esquisito desta produção é que por vez primeira as personagens da peça teatral estão representadas por títeres, não sendo isto um atranco para resultar uma das montagens até hoje mais fieis à ideia originária concebida na altura pelo próprio Castelao. Os decorados, as caracterizações e vestiários dos bonecos, o clima que se cria dentro do pequeno caixão do teatrinho é o fruto de muitos anos de investigação do seu diretor Inacio Vilariño, não só da peça teatral que se representa, senão também da vida e da obra do autor e político rianxeiro, ao que tem dedicado, junto com o desenhador Iván Suárez, uma biografia gráfica em vários volumes.

A produção dos Fantoches Baj é esplêndida, com um elenco de atores veteranos no seu compromisso com o teatro popular: Inacio Vilariño e Luchi Iglesias –Fantoches Baj– e Lucho Penabade e Tero Rodríguez, da companhia amiga Os Quinquilláns. Se a isto unimos o trabalho artesanal e minucioso da desenhadora de vestiário Olga Vieites, desde um ponto de vista técnico e estético, nada a dizer. Mas é que a interpretação, ajustada ao texto originário e sem os excessos e caretas que muitas vezes acompanha a este tipo de representações, considero que foi especialmente acertada. Obviamente a minha opinião pouco importa, já que o teatro não é o meu campo e além de mais, estou muito unido às pessoas que fazem parte da produção tanto por amizade como por laços familiares: a Pimpinela é a minha mulher e mãe da minha filha Dália.

No que sim me considero perito é no referente ao apartado musical. Como músico prático e teórico levo o suficiente tempo neste negócio como para poder dizer o que penso sem qualquer tipo de limite, e assim o fiz desde que publiquei o meu primeiro artigo, já vai para vinte anos. Creiam, pois, na minha sinceridade quando lhes digo que o trilho musical desta obra –a cargo de Benjamin Otero– é duma delicadeza extrema, minimalista em muitos momentos, mesmo naïf; para noutros fazer alarde da sua sabedoria musical e do seu ofício como compositor. Benjamín Otero, oboísta da Banda de Lalim, professor no seu dia do Conservatório Folque da capital do Deza e acompanhante habitual do Germán Díaz, leva uns anos tesourando experiência como músico de Fantoches Baj –até como ator– o que sem dúvida vai a favor dum correcto emprego da linguagem musical própria do teatro. A sua achega pessoal, com músicas de continuidade ou ambientando cenas –como por exemplo a marcha fúnebre interpretada por músicos da Banda de Música lalinense– resulta justa e necessária, algo importantíssimo quando falamos duma peça teatral que conta com partituras originais. E é precisamente aqui onde reside um dos grandes acertos desta recreação histórica de Os velhos não devem namorar na sua versão em títeres: a utilização das partituras incluídas no libreto e utilizadas na estreia absoluta em agosto do 1941, na capital argentina.

Uma canção à procura de um autor.

O museu de Ponte Vedra conta com dois manuscritos de Os Velhos não devem namorar que foram elaborados por Castelao por volta de 1939. Num deles se encontram as partituras utilizadas em 14 de agosto de 1941 no Teatro Mayo de Buenos Aires, no que constituiu a estreia absoluta. Participaram na representação as atrizes Maruxa Villanueva e Maruxa Boga e os atores Fernando Iglesias, Antonio Cubelas, Enrique González e Luis Lugo. A princípios do 2014, o programa No bico un cantar da TVG realizou um monográfico sobre Lela[1], canção que D. Saturio, acompanhado dum coro de boticários, dedica à sua namorada. O programa está centrado na melodia criada por Rosendo Mato Hermida para a estreia galega em 25 de julho de 1961 e que foi definitivamente popularizada por Carlos Núñez no seu disco A irmandade das estrelas, na voz de Dulce Pontes[2]. No entanto, nesse mesmo programa fala-se da outra Lela, a que se encontra nas partituras do manuscrito do Museu de Ponte Vedra. A encarregada de amostrar os documentos ante a câmara, Ana Isabel Vázquez, presidenta executiva do museu, diz não saber nada sobre a autoria das partituras.

Mesmo para um investigador da cultura musical galega, com tantas lagoas por resolver, resulta difícil de crer que um acontecimento tão relevante coma a estreia duma obra do grande Castelao, por uma companhia profissional e numa cidade tão civilizada como Buenos Aires poda guardar algum enigma. Mais ainda, quando esse fato fulcral para o teatro galego aconteceu há apenas setenta e cinco anos.

As casualidades são as milagres dos ateus[3].

O mês passado[4] andei a trabalhar na posta em música dum conjunto de poemas de Emilio Pita que me foram encomendadas pela cantora vilagarciense  Mar Caramés. Entre o material que me enviou se encontrava a citação duma carta de Castelao que tinha como remitente a Emilio Pita (A Corunha, 15/10/1907 ; Buenos Aires, 07/12/1981)

 «Sr. Emilio Pita:
Meu querido irmán: contesto a volta de correio á túa carta. Ben, moi ben. Estou conforme co plan que fixéchedes. Debo felicitarte porque comprobo que vas a remover o fondo galego de Rosario e que axiña esa cibdade vai ser un dos nosos mellores faros.
Eu estou bastante ledo cos ensaios primeiros da miña obra. Paréceme que poderemos estrenala. Noto a túa falla, porque non sei como a parte musical se poderá arranxar sen estares tí para preparala. En fin: farase o que se poida. O conto é estrenala para que, polo menos, apareza algo diferente ás trangalladas que tanto gostan ás nosas xentes.»  Grial 47 (1975), 91-92.

A carta não tem data mas na edição de Galaxia (2000) Vol. 6 do epistolário de Castelao datam-na a fins de março ou abril do 1941.
Existe mais uma carta enviada por Emilio Pita a Fernando Iglesias, Tacholas, participante no elenco da estreia bonaerense, com data de 11 de agosto de 1941.

«Meu querido Fernando:
Dúas  liñas para saudarche e pór no teu coñecimento que, d'acordo co que vos prometín o día 26 do mes derradeiro no Teatro Mayo, estarei á vosa beira o xoves 14 para sentir a carón de todos vós a fonda emoción de ollar na escea a primeira obra teatral do noso meirande irmán Castelao.

Tí sabes ben, como foi po-lo meu intermedio que se consigueu que Castelao léra a obra á vosa Compañía (Compañía de Comedias de Maruxa Villanueva) e pareceume un soño que despois de menos de un ano poda levarse a escea grazas á vosa admirable laboura...»[5]

Tendo em conta o dito nestas cartas, o estudioso da obra poética de Emilio Pita, Xosé Anxo García López afirma que «O papel de Pita como asesor do rianxeiro polo que se refire a este particular [posta em contacto de Castelao com a companhia de Maruxa Villanueva] semella plausible mercé ás declaración de Tacholas ou de Maruxa Villanueva».[6] Mas, até que ponto Emilio Pita é responsável das partituras utilizadas na estreia do Teatro Mayo?.

O Quarteto Ultreya.

O Emilio Pita, além de poeta, foi musicólogo especializado em música tradicional galega[7]. Isto último é muito meritório, dado que emigrou para a Argentina com apenas doze anos, viajando à Galiza em contadas ocasiões.

Quando assisti a representação de Fantoches Baj e escutei por vez primeira o vira da cena do português ou a pandeirada entendi que Emilio Pita tinha que estar detrás das escolhas musicais. Mas não foi até a leitura dum artigo do jornal argentino Pueblo Gallego datado em 15 de junho de 1941 que me atrevi a escrever este pequeno trabalho sobre a autoria da primeira partitura de Lela, aquela que Castelao achegou ao seu manuscrito, junto com o texto, esboços e desenhos de decorados.

Em sábado 30 de maio do 41, Castelao deslocou-se a Rosario para palestrar num ato organizado pela Casa de Galiza e a Irmandade Nazonalista Manuel Curros Enríquez, chefiada por Xosé Ares Miramontes. O título da conferência foi: Visión de un aldeano gallego. A seguir da palestra de Castelao, houve uma «fiesta de la poesia, música y danza de Galicia» onde Emílio Pita teve um especial protagonismo. A isto parece referir-se Castelao quando na carta dirigida a ele e acima publicada lhe dizia: «Ben, moi ben. Estou conforme co plan que fixéchedes».

No ato, dividido em duas partes, participa o Quarteto Ultreya, dirigido por Emilio Pita desde 1938. Estava integrado por Luís López, Benito Rodríguez, José López e Mercedes Orgaz. O programa incluía:
«a) Romance de Don Gaiferos, siglo XIV
b) Cantigas de roda, música pop. armon.
c) Villancico, siglo XVIII
d) Mariñeira (popular)
e) Carmiña (popular)
f) Canción de berce, solo por Mercedes Orgaz
g) Alalá de Lobeira, música popu. armon.
h) Lela (serenata compostelana), música pop. arm.»


Pueblo Gallego: periódico quincenal.
nº2 15/06/1941

No transcurso do concerto ainda se interpretou alguma outra obra de Pita como a titulada Muiñeira de Vellas.

As Lelas de Castelao.

Resulta, pois, de justiça, reafirmar que a primeira interpretação conhecida de Lela foi em 30 de maio de 1941, num ato celebrado no salão do Centro Catalão de Rosario, Argentina. As canções foram todas harmonizadas por Emílio Pita, diretor do Quarteto Ultreia, mas é ele o autor da melodia original da Lela do Teatro Mayo de agosto do 41? Pois parece que não, tão só podemos atribuir-lhe a harmonização. Em realidade a pergunta mais certinha seria, é a Lela do 41 uma melodia original?

No programa da TVG, No bico un cantar, expõe-se o seu parecido com a canção de tuna Fonseca, também conhecida como Triste y sola, uma valsa estudantil que segundo o Bachiller Pérez, pseudónimo de Pérez Constanti, já era conhecida arredor do 1880 quando dirigiam a tuna os violinistas Dorado e Villaverde. O próprio Castelao foi tuno e tocava guitarra com a que acompanhava a sua voz de baixo. O feito de que no jornal arxentino El Pueblo Gallego se qualifique Lela como música popular harmonizada indica que Pita, e suponho que também o Castelao, não a consideravam tema original.

A minha opinião é que se trata duma evocação da música estudantil, de ai o seu subtítulo serenata compostelana[8], tão filiada a outras melodias consagradas no reportório da tuna que decidiram dá-la como popular.

Quando em 1961 o coro compostelano Cantigas e Agarimos põe em cena a peça de Castelao não contavam com as partituras bonaerenses e Mato Hermida teve que compor, parece que com muito estresse, a que chegaria a ser uma das canções mais emblemáticas do reportório popular galego. Novamente uma valsa estudantil, nada afastada do modelo de Fonseca ou do Lela do 41.

Em Rianxo ainda contamos com outra versão do poema de Castelao, esta vez composta pelo músico local Manuel Vicente Chapí, cantada nas históricas representações do grupo amador Airiños de Asados, Rianxo, e muito popular entre os vizinhos deste concelho corunhês. Mais uma vez uma valsa.

Noutro momento gostaria de fazer uma análise das partituras depositadas no museu de Ponte Vedra que possa, porventura, deitar nova luz sobre os enigmas que encerram.  Mas, por enquanto, vamos ficar por aqui.



[1] BERNÁRDEZ, Senén dir. 01/02/2014 Lela [Program de TV] No bico un cantar. Televisión de Galicia T.V.G. O roteiro deste programa foi escrito pela rianxeira Teresa Abuín.
[2] Sobre a Lela de Rosendo Mato Hermida ver: «Lela»: a sombra dun amor ingrato. En desagravio de Rosendo Mato Hermida, artigo escrito pola sua filha María Dolores Mato Gómez in [http://dspace.aestrada.com/jspui/bitstream/123456789/450/1/pg_291-316_estrada10.pdf]
[3] Adágio atribuído ao Barão de Orjais (1769-?).
[4] Janeiro de 2016
[5] GARCÍA LÓPEZ, Xosé Anxo. Boletín da R.A.G. nº 370 p. 172
[6] GARCÍA LÓPEZ, Xosé Anxo, op. cit. p. 172
[7] É autor do apartado dedicado à música tradicional na Historia de Galiza, V. 1, pp.763-777 Akal; Madrid (1979) dirigida por Otero Pedraio, o qual é bem significativo do grande respeito que lhe tinham as vacas sagradas do galeguismo.
[8] «Que serenatas demos!» diz o boticário quando entre assobios e postura na guitarra está a tentar recordar a melodia.

2 comentários:

Unknown disse...

Noraboa José Luis, moi interesante, ademais coincide en que o boticario a canta como unha lembranza das súas vivenzas como estudante en Santiago, e como non, a tuna era un ente universitario máis importante do que hoxe.

Agardando pola seguinte entrega :)

Saúdos

José Luís do Pico Orjais disse...

Obrigado. Pois contarei coisas muito interessantes que me estão a chegar. Abraço.