Lela
Uma canção a procura de um autor.
I
Em sábado 30 de janeiro de 2016 a companhia Fantoches
Baj estreava em Ponte Vedra e Rianxo a sua adaptação de Os velhos não devem namorar de Castelao. O esquisito desta produção é
que por vez primeira as personagens da peça teatral estão representadas por
títeres, não sendo isto um atranco para resultar uma das montagens até hoje mais fieis à ideia
originária concebida na altura pelo próprio Castelao. Os decorados, as
caracterizações e vestiários dos bonecos, o clima que se cria dentro do pequeno
caixão do teatrinho é o fruto de muitos anos de investigação do seu diretor Inacio
Vilariño, não só da peça teatral que se representa, senão também da vida e da obra do
autor e político rianxeiro, ao que tem dedicado, junto com o desenhador Iván
Suárez, uma biografia gráfica em vários volumes.
No que sim me considero perito é no referente ao
apartado musical. Como músico prático e teórico levo o suficiente tempo neste
negócio como para poder dizer o que penso sem qualquer tipo de limite, e assim
o fiz desde que publiquei o meu primeiro artigo, já vai para vinte anos. Creiam,
pois, na minha sinceridade quando lhes digo que o trilho musical desta obra –a
cargo de Benjamin Otero– é duma delicadeza extrema, minimalista em muitos
momentos, mesmo naïf; para noutros fazer alarde da sua sabedoria musical e do
seu ofício como compositor. Benjamín Otero, oboísta da Banda de Lalim,
professor no seu dia do Conservatório Folque da capital do Deza e acompanhante
habitual do Germán Díaz, leva uns anos tesourando experiência como músico de
Fantoches Baj –até como ator– o que sem dúvida vai a favor dum correcto emprego
da linguagem musical própria do teatro. A sua achega pessoal, com músicas de
continuidade ou ambientando cenas –como por exemplo a marcha fúnebre
interpretada por músicos da Banda de Música lalinense– resulta justa e
necessária, algo importantíssimo quando falamos duma peça teatral que conta com
partituras originais. E é precisamente aqui onde reside um dos grandes acertos
desta recreação histórica de Os velhos
não devem namorar na sua versão em títeres: a utilização das partituras
incluídas no libreto e utilizadas na estreia absoluta em agosto do 1941, na
capital argentina.
Uma canção à procura de um autor.
O museu de Ponte Vedra conta com dois manuscritos de Os Velhos não devem namorar que foram elaborados por Castelao por volta de 1939. Num deles se encontram as
partituras utilizadas em 14 de agosto de 1941 no Teatro Mayo de Buenos Aires,
no que constituiu a estreia absoluta. Participaram na representação as atrizes
Maruxa Villanueva e Maruxa Boga e os atores Fernando Iglesias, Antonio Cubelas,
Enrique González e Luis Lugo. A princípios do 2014, o programa No bico un cantar da TVG realizou um
monográfico sobre Lela[1],
canção que D. Saturio, acompanhado dum coro de boticários, dedica à sua
namorada. O programa está centrado na melodia criada por Rosendo Mato Hermida
para a estreia galega em 25 de julho de 1961 e que foi definitivamente
popularizada por Carlos Núñez no seu disco A
irmandade das estrelas, na voz de Dulce Pontes[2]. No entanto, nesse mesmo programa fala-se da outra Lela,
a que se encontra nas partituras do manuscrito do Museu de Ponte Vedra. A
encarregada de amostrar os documentos ante a câmara, Ana Isabel Vázquez, presidenta
executiva do museu, diz não saber nada sobre a autoria das partituras.
Mesmo para um investigador da cultura musical galega,
com tantas lagoas por resolver, resulta difícil de crer que um acontecimento
tão relevante coma a estreia duma obra do grande Castelao, por uma companhia
profissional e numa cidade tão civilizada
como Buenos Aires poda guardar algum enigma. Mais ainda, quando esse fato
fulcral para o teatro galego aconteceu há apenas setenta e cinco anos.
O mês passado[4] andei a trabalhar na posta em música dum conjunto de poemas de Emilio Pita que
me foram encomendadas pela cantora vilagarciense Mar Caramés. Entre o material que me enviou
se encontrava a citação duma carta de Castelao que tinha como remitente a
Emilio Pita (A Corunha, 15/10/1907 ; Buenos Aires, 07/12/1981)
«Sr. Emilio
Pita:
Meu querido irmán:
contesto a volta de correio á túa carta. Ben, moi ben. Estou conforme co plan
que fixéchedes. Debo felicitarte porque comprobo que vas a remover o fondo
galego de Rosario e que axiña esa cibdade vai ser un dos nosos mellores faros.
Eu estou bastante
ledo cos ensaios primeiros da miña obra. Paréceme que poderemos estrenala. Noto
a túa falla, porque non sei como a parte musical se poderá arranxar sen estares
tí para preparala. En fin: farase o que se poida. O conto é estrenala para que,
polo menos, apareza algo diferente ás trangalladas que tanto gostan ás nosas
xentes.» Grial 47 (1975), 91-92.
A carta não tem data mas na edição de Galaxia (2000)
Vol. 6 do epistolário de Castelao datam-na a fins de março ou abril do 1941.
Existe mais uma carta enviada por Emilio Pita a
Fernando Iglesias, Tacholas,
participante no elenco da estreia bonaerense, com data de 11 de agosto de 1941.
«Meu querido Fernando:
Dúas liñas para
saudarche e pór no teu coñecimento que, d'acordo co que vos prometín o día 26
do mes derradeiro no Teatro Mayo, estarei á vosa beira o xoves 14 para sentir a
carón de todos vós a fonda emoción de ollar na escea a primeira obra teatral do
noso meirande irmán Castelao.
Tí sabes ben, como foi po-lo meu intermedio que se
consigueu que Castelao léra a obra á vosa Compañía (Compañía de Comedias de
Maruxa Villanueva) e pareceume un soño que despois de menos de un ano poda
levarse a escea grazas á vosa admirable laboura...»[5]
Tendo em conta o dito nestas cartas, o estudioso da
obra poética de Emilio Pita, Xosé Anxo García López afirma que «O papel de Pita como asesor do rianxeiro polo que se
refire a este particular [posta em contacto de Castelao com a companhia de
Maruxa Villanueva] semella plausible mercé ás declaración de Tacholas ou de
Maruxa Villanueva».[6] Mas, até que ponto Emilio Pita é responsável das
partituras utilizadas na estreia do Teatro Mayo?.
O Quarteto Ultreya.
O Emilio Pita, além de poeta, foi musicólogo
especializado em música tradicional galega[7].
Isto último é muito meritório, dado que emigrou para a Argentina com apenas
doze anos, viajando à Galiza em contadas ocasiões.
Quando assisti a representação de Fantoches Baj e
escutei por vez primeira o vira da cena do português ou a pandeirada entendi
que Emilio Pita tinha que estar detrás das escolhas musicais. Mas não foi até a
leitura dum artigo do jornal argentino Pueblo
Gallego datado em 15 de junho de 1941
que me atrevi a escrever este pequeno trabalho sobre a autoria da primeira
partitura de Lela, aquela que
Castelao achegou ao seu manuscrito, junto com o texto, esboços e desenhos de
decorados.
Em sábado 30 de maio do 41, Castelao deslocou-se a
Rosario para palestrar num ato organizado pela Casa de Galiza e a Irmandade
Nazonalista Manuel Curros Enríquez, chefiada por Xosé Ares Miramontes. O título
da conferência foi: Visión de un aldeano
gallego. A seguir da palestra de Castelao, houve uma «fiesta de la poesia,
música y danza de Galicia» onde Emílio Pita teve um especial protagonismo. A isto
parece referir-se Castelao quando na carta dirigida a ele e acima publicada lhe
dizia: «Ben, moi ben. Estou conforme co plan que
fixéchedes».
No ato, dividido em duas partes, participa o Quarteto
Ultreya, dirigido por Emilio Pita desde 1938. Estava integrado por Luís López,
Benito Rodríguez, José López e Mercedes Orgaz. O programa incluía:
«a) Romance de
Don Gaiferos, siglo XIV
b) Cantigas de
roda, música pop. armon.
c) Villancico,
siglo XVIII
d) Mariñeira
(popular)
e) Carmiña
(popular)
f) Canción de
berce, solo por Mercedes Orgaz
g) Alalá de
Lobeira, música popu. armon.
h) Lela
(serenata compostelana), música pop. arm.»
Pueblo
Gallego: periódico quincenal.
nº2 15/06/1941
No transcurso do concerto ainda se interpretou alguma
outra obra de Pita como a titulada Muiñeira
de Vellas.
As Lelas de Castelao.
Resulta, pois, de justiça, reafirmar que a primeira
interpretação conhecida de Lela foi
em 30 de maio de 1941, num ato celebrado no salão do Centro Catalão de Rosario,
Argentina. As canções foram todas harmonizadas por Emílio Pita, diretor do
Quarteto Ultreia, mas é ele o autor da melodia original da Lela do Teatro Mayo de agosto do 41? Pois parece que não, tão só podemos
atribuir-lhe a harmonização. Em realidade a pergunta mais certinha seria, é a Lela do 41 uma melodia original?
No programa da TVG, No bico un cantar, expõe-se o seu parecido com a canção de tuna Fonseca, também conhecida como Triste y sola, uma valsa estudantil que
segundo o Bachiller Pérez, pseudónimo de Pérez Constanti, já era conhecida
arredor do 1880 quando dirigiam a tuna os violinistas Dorado e Villaverde. O
próprio Castelao foi tuno e tocava guitarra com a que acompanhava a sua voz de
baixo. O feito de que no jornal arxentino El Pueblo
Gallego se qualifique Lela como
música popular harmonizada indica que Pita, e suponho que também o Castelao,
não a consideravam tema original.
A minha opinião é que se trata duma evocação da música
estudantil, de ai o seu subtítulo serenata compostelana[8], tão
filiada a outras melodias consagradas no reportório da tuna que decidiram dá-la
como popular.
Quando em 1961 o coro compostelano Cantigas e Agarimos
põe em cena a peça de Castelao não contavam com as partituras bonaerenses e
Mato Hermida teve que compor, parece que com muito estresse, a que chegaria a
ser uma das canções mais emblemáticas do reportório popular galego. Novamente
uma valsa estudantil, nada afastada do modelo de Fonseca ou do Lela do 41.
Em Rianxo ainda contamos com outra versão do poema de
Castelao, esta vez composta pelo músico local Manuel Vicente Chapí, cantada nas históricas
representações do grupo amador Airiños
de Asados, Rianxo, e muito popular entre os vizinhos deste concelho corunhês. Mais
uma vez uma valsa.
Noutro momento gostaria de fazer uma análise das
partituras depositadas no museu de Ponte Vedra que possa, porventura, deitar
nova luz sobre os enigmas que encerram. Mas,
por enquanto, vamos ficar por aqui.
[1] BERNÁRDEZ, Senén dir. 01/02/2014 Lela [Program de TV] No bico un cantar. Televisión de Galicia T.V.G. O roteiro deste programa foi escrito
pela rianxeira Teresa Abuín.
[2] Sobre a Lela de Rosendo Mato Hermida ver: «Lela»: a sombra dun amor
ingrato. En desagravio de Rosendo Mato Hermida, artigo
escrito pola sua filha María Dolores Mato Gómez in [http://dspace.aestrada.com/jspui/bitstream/123456789/450/1/pg_291-316_estrada10.pdf]
[7] É autor do
apartado dedicado à música tradicional na Historia
de Galiza, V. 1, pp.763-777 Akal; Madrid (1979) dirigida por Otero Pedraio,
o qual é bem significativo do grande respeito que lhe tinham as vacas sagradas
do galeguismo.
[8] «Que serenatas demos!» diz o
boticário quando entre assobios e postura na guitarra está a tentar recordar a
melodia.
2 comentários:
Noraboa José Luis, moi interesante, ademais coincide en que o boticario a canta como unha lembranza das súas vivenzas como estudante en Santiago, e como non, a tuna era un ente universitario máis importante do que hoxe.
Agardando pola seguinte entrega :)
Saúdos
Obrigado. Pois contarei coisas muito interessantes que me estão a chegar. Abraço.
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