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sexta-feira, 19 de julho de 2024

nº 259 Isabel Castelo, uma diva na lista da Forbes

 

 Uma diva na lista da Forbes

A primeira vez que me deparei com o nome de Isabel Castelo deve ter sido ao rever a biografia de Teresa Turné, na sequência da minha pesquisa sobre o Festival de la Canción Española de Ponte Vedra. A soprano madrilena, presença constante no concurso de música da capital do Leres, ganhou o Prémio de Canto Isabel Castelo em 1963 ‒talvez ela apenas um accéssit‒, o mesmo que ganhariam vozes tão prestigiadas como a Berganza ou a Orán. Mas foi recentemente que a minha mulher me perguntou se eu sabia alguma coisa sobre a história da Castelo: marquesa, cantora de ópera nascida na Corunha, protagonista com a voz de um famoso anúncio de televisão e integrante da lista da Forbes como uma das grandes fortunas de Espanha. Devo dizer que depois de tantos anos estudando e escrevendo sobre a música do meu país, e especialmente as mulheres músicas, o meu orgulho sofreu um duro golpe. Quase não sabia nada além da existência de um prémio que levava seu nome.

Aos poucos fui descobrindo aspetos de sua vida pessoal e, sobretudo, de seu trabalho como cantora lírica que me pareceram relevantes o suficiente para comentá-los aqui, sabendo que a personagem mereceria uma atenção mais demorada de alguém com um tempo do que eu não disponho. Em suma, espero que este artigo sirva para mostrar o meu respeito por uma soprano com um trabalho profissional digno de ser lembrado.

 

Ramón D’Ortega y Hervella, o avó fundador

Ramón D’Ortega y Hervella, fundou em 1920, na cidade de Vigo, a companhia de seguros Ocaso.  Se temos pouca informação biográfica sobre a neta, não temos muito mais sobre o avô. Da mesma forma, gostaria de poder traçar o perfil deste personagem que fundou do nada, há mais de cem anos, um império económico que não parou de crescer até hoje.

O trabalho de Dom Ramón ‒aquele que ele desempenhará até a criação da seguradora‒ era o de tipógrafo, igual ao do também galego Pablo Iglesias, fundador da UGT. Com ideias profundamente progressistas, ingressou na Sociedade Tipográfica (1914) e em 1928 representou a Vigo no XIV Congreso Ordinario de la Federación Gráfica Española, precisamente dependente da UGT, realizado em Saragoça. 

Como tipógrafo trabalhou, entre muitos outros lugares, nas oficinas da revista de Jaime Solá, Vida Gallega.

Do seu espírito progressista, é-nos revelado o facto de em 1912 ter participado, com a quantia de 500 réis, numa angariação de fundos, aberta no Brasil, para ajudar à família de Francisco Rodríquez Pancho, vítima de um homicídio cometido por um clã caciquil da vila de Salvatierra. 

Na Gazeta de Madrid de 23 de junho de 1920, é autorizado o registo da seguradora de Vigo, denominada: Seguro Funerario El Ocaso

Em 1934, Don Ramón aparece como vice-presidente do Partido Democrático Radical da Corunha, formação liderada no Estado Espanhol pelo também tipógrafo e maçom, Diego Martínez Barrio (Sevilha, 1883; Paris, 1962). O executivo da Corunha esteve composto na presidência por César Alvajar; vice-presidente, Ramón D’Ortega; secretário, Ovidio Rodríguez Blanco; o vice-secretário, Manuel Varela Fernández; tesoureiro, Juan Martínez Morás; o contador Francisco Suárez; primeiro vogal, Antonio Domínguez Lamela; idem segundo, Ángel Saavedra Ponte; idem terceiro,  Jesús Mejuto.

Nesta lista encontram-se várias pessoas que, após o golpe militar de 36, serão acusadas de pertencer à Maçonaria, como, por exemplo, César Alvajar, Rodríguez Blanco ou Antonio Domínguez Lamela. O próprio Ramón D'Ortega será obrigado a declarar na sede da Falange, acusado de ser membro da irmandade e, posteriormente, pagará por este motivo, uma multa, muito elevada para a altura, de 10.000 pts.

É possível que a hostilidade de uma cidade nas mãos das milícias armadas dos Caballeros de la Coruña e da Falange, o tenha encorajado a mudar a sua residência para Madrid, onde a sua vida transcorreu discretamente, dedicado a seus negócios, até à sua morte em 1950.

 

Ramón D’Ortega y Hervella
Escultura de Juan Cristobal, 1951
Fonte: https://juancristobalescultor.es/

 

Concepción D’Ortega López. O início do matriarcado

Em junho de 1962, Concepción D’Ortega, herdeira do império Ocaso, em trânsito para a Argentina, fez escala no Brasil. No documento emitido pelo consulado brasileiro em Madrid consta que a sua profissão era a de prendas caseiras. Em realidade, ela era a legatária da empresa fundada polo seu pai, e a iniciadora duma saga que transmitirá o património de filha única em filha única até os nossos dias. 

Conchita D’Ortega nasceu em Madrid o 25 de Junho de 1905. O nome de sua mãe era Isabel López Briceño (1874-1974), uma mulher nascida na Câmara Municipal de Tielmes, Comunidade Autónoma de Madrid.

 

Concepción D’Ortega acompanhada de seu pai Ramón D’Ortega.
Vida Gallega. Ano XIII Nº 168

 

Em maio de 1928, casou com Santiago Castelo Cortés (A Corunha, 26 de junho de 1903; Madrid, 18 de junho de 1986) na igreja de São Nicolas da Corunha. O Santiago era filho de Manuel Castelo Rey (1864-1934), oficial do registo civil, e de Agustina Cortés Ramos (1863-1944). A ele é creditada a ascensão da seguradora, da qual foi presidente do Conselho de Administração no período de 1952 a 1971, bem como a diversificação dos seus negócios.

 


"Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965," Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (National Archives, Rio de Janeiro) in familysearch.org

 

Isabel Castelo D’Ortega.

O 19 de junho de 1929 nasce, na Corunha, Isabel Castelo D’Ortega, a principal protagonista do nosso artigo. 

 

 
Isabel Castelo, com 2 anos. 
 Vida gallega : ilustración regional: Ano XXIII Número 504 - 1931 novembro 30

 

Enquanto se aguarda uma investigação mais aprofundada nos arquivos das escolas da Corunha e do Conservatório Superior de Madrid, pouco podemos acrescentar sobre a formação musical da Castelo, além do que ela própria declarou na imprensa ‒ou possa testemunhar qualquer dia‒ se tiver vontade de fazê-lo. Aos dez anos, a família mudou a sua residência da Corunha para Madrid, pelo que é possível que tenha recebido as primeiras aulas de música nas margens do Orção. De ser assim, com toda probabilidade, seria aluna da tiple Bibiana Pérez Mateo (1865-1950). 

Entre as professoras que menciona, maioritariamente do Conservatório de Madrid, destaca-se Mili Porta (A Coruña, 1918; Madrid, 1971). Esta pioneira na regência de orquestra foi uma das fundadoras do coro Anaquiños da Terra, sociedade formada por membros da comunidade galega da capital espanhola. Como mecenas, Isabel Castelo teve alguma relação com esta entidade, da que foi madrinha.

A sua professora de canto, como a da maioria das cantoras da sua geração, foi Lola Rodríguez Aragón (1910-1984), fundadora da Escuela Superior de  Canto. 

Por fim, Isabel Castelo confessa ter sido aluna de Carlota [Charlotte] Dahmen (1884-1970), soprano especializada em Wagner e Strauss, que no final da vida se dedicou a dar aulas privativas de canto na capital de Espanha. Carlota Dahmen casou em 1916 com seu professor, o galego-cubano Eladio Chao Sedano (1874-1951). Quando questionada por uma jornalista sobre o que as suas professoras pensavam da sua voz, a resposta da soprano galega foi esta:

«La primera [Mili Porta] decía que me tenía que meter el temperamento en el bolsillo, y la segunda [Carlota Dahmen] que tengo demasiada voz». El Ideal gallego. 25/05/1955 p. 10

Isabel Castelo casa em dezembro de 1950 com o tenente de navio Ángel de Mandalúniz y Uriarte, surpreendentemente, apenas dois meses após a morte do avô Ramón D'Ortega, fundador da seguradora Ocaso. Na altura tem 21 anos e, como ela mesma confessa, abandonou a carreira musical para agradar o marido, portanto, seriam poucas as suas apresentações públicas antes do casamento.

 

"Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965," Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (National Archives, Rio de Janeiro) in familysearch.org

 

A síndrome da mulher casada levou inúmeros grandes talentos a abandonarem prematuramente a profissão, privando a humanidade, também composta por homens, do fruto de anos de estudo e dedicação. É por isso que o patriarcado, implacável com as mulheres, é também extremamente prejudicial para os homens. E embora nesta sinistra costume de cercear carreiras profissionais para criar donas de casa submissas e devotadas, não faltem exemplos tanto em lares conservadores como progressistas, a verdade é que a figura de Isabel Castelo foi apresentada como o modelo apurado de mulher do regime, como se pode ver na seguinte manchete de El Ideal Galego que não deixa margem para dúvidas.

 

El Ideal gallego : diario católico, regionalista e independiente: Año XXXIX Número 11874 - 1955 mayo 25 

 

A herdeira de uma das grandes seguradoras de Espanha não tem nome, referem-se a ela como “uma jovem da Corunha”. Além disso, destacam o facto de que para criar o prémio mais importante de Espanha «foi autorizada pelo marido», ninguém vaia pensar que ela age de motu proprio.

As frases finais deste artigo, colocadas na boca de Isabel, são definidoras: 

«Hay que preparar un refugio para las horas de dolor y de tedio, y eso sólo se encuentra en la religión y en el arte».

 

O Premio Isabel Castelo

Na Ordem de 12 de agosto de 1955, publicada o 1 de setembro do mesmo ano, dá-se a classificação da Fundação Isabel Castelo como benéfico docente de carácter particular. Parece que este facto foi conseguido em tempo recorde, já que o pedido feito por Ángel de Mandalúniz y Uriarte levava data  do 17 de junho anterior.

O fim único da fundação era o de 

«otorgar un premio de enseñanza de Canto, ya que su propósito es fomentar la enseñanza de este arte, estimulando la formación de futuros valores nacionales, y al mismo tiempo honrar la vocación de su esposa, doña Isabel Castelo D’Ortega. consagrada a cultivarlo». 

Por este motivo, a fundação contava com um capital nominal de 200.000 pesetas. com o qual seria atribuído um prémio anual, entregue o primeiro de março, de 20.000 pesetas, na primeira vez, e 7.000 nas convocatórias subsequentes. Em realidade, logo passou a ser definitivamente de 20.000.

Poderão aspirar ao prémio

«los cantantes de ambos sexos que no hubieren  cumplido cuarenta años de edad y que hayan obtenido de sobresaliente en los exámenes de convocatoria oficial y libre, correspondientes al final de la carrera de Canto celebrado en el Conservatorio de Música de España donde estén establecidos dichos estudios, con anterioridad no superior a cinco años y con relación a la fecha en que se celebre el concurso».

Na verdade, até onde sei, os prémios só foram atribuídos a vozes femininas. Na Ordem também se detalha a composição do júri.

«[...] el Director del Real Conservatorio de Música de Madrid, como Presidente; la fundadora o persona en quien ella delegue, como vocal primero, eligiéndose a su fallecimiento de entre los herederos, si hubiere varios en igualdad de condiciones, al más idóneo, con la intención y significación del premio: un académico de la Sección de Música de la Real Academia de Bellas Artes de San Femando como vocal segundo; los dos Catedráticos más antiguos de la Enseñanza de Canto, y el Catedrático más antiguo de la Enseñanza de Armonía; ocupando sus puestos los tres Catedráticos—del Real Conservatorio de Música de Madrid—, por orden de antigüedad, v finalmente un Catedrático o Profesor especial del Real Conservatorio de Música de Madrid, designado por la fundadora, que hará de Secretario, teniendo todos los miembros del Tribunal voz y voto».

Além do prémio monetário, as vencedoras receberiam um diploma e uma medalha com a efígie de Isabel Castelo, sendo obrigadas, em troca, a realizar um concerto solidário no local e dia que a fundadora decidisse.

 



Medalha Prémio de Canto Isabel Castelo
 Escultor Juan Cristobal (1896-1961)
 Fonte: https://juancristobalescultor.es/

 

Isabel Castelo vangloriou-se de que o seu prémio tinha um valor financeiro de 20.000 pesetas. em comparação com as 2.000 do Lucrecia Arana, prémio de fim de carreira do Conservatório de Madrid. Obviamente, o prestígio não reside, exatamente, na quantidade de dinheiro que uma vencedora recebe. Em vez disso, deveríamos olhar para o nome das ganhadoras e para a composição dos júris. 

A primeira convocação, proclamada extraordinariamente em janeiro de 1956, correspondeu a Enriqueta Tarrés. Em 1957 foi a vez de Teresa Berganza, facto este que normalmente é omitido nas suas biografias ou dá-se-lhe o valor errado de 1955, quando o prémio ainda nem existia. Outras das vencedoras foram Isabel Penagos, 1958, María Orán, 1968… Em 1960, entre os membros do júri estavam Mili Porta, Lola Rodríguez Aragón e o maestro Guridi.

 

Finalmente, a sua voz

Na década de 60, Isabel Castelo gravou dois discos com acompanhamento orquestral, ambos sob a direção do maestro Pablo Sorozábal. O aval do maestro guipuscoano deveria bastar para credenciar estas gravações, mas a verdade é que cada vinil tem a sua história e, embora neste caso não tenhamos todos os dados, ambos merecem um pequeno comentário.

La canción del Olvido. Libreto de Federico Romero Sarachaga e Guillermo Fernández-Shaw Iturralde e música de José Serrano. 

Regente: Pablo Sorozabal

Maestro concertador: Julián Perera

Diretor de coro: José Perera

Orquestra: Orquesta de Conciertos de Madrid

Coro Cantores de Madrid

Soprano: Isabel Castelo [Rosina]

Barítono: Renato Cesari [Leonello]

Tenor: José María Higuero [Toríbio e Sargento Lombardi]

Hispavox, S.A. 1963 HH 10-228

 


A primeira coisa que destaco neste álbum é a qualidade sonora. Mesmo no meu modesto toca-discos, é surpreendente o quão equilibradas soam as diferentes secções da orquestra, com close-ups de muito sucesso, principalmente, na minha opinião, quando a protagonista é a harpa. Um som magnífico como acostuma a passar com os discos procedentes da casa Hispavox. A título de curiosidade, no caderno interior do LP, somos informados do processo tecnológico inovador com que se conseguiu um som tão sofisticado:

«Al escuchar esta versión de La Canción del Olvido se podrá observar una novedad singular, ligeramente apreciable en su edición monosural y muy notoria en estéreo: la realidad teatral, traducida en un encuadramiento y realce de la perspectiva sonora.

Antes de efectuar la grabación, los equipos artísticos y técnicos de la Empresa han efectuado un estudio cuidadoso de los recursos escénicos, y a ellos han procurado ajustarse con la máxima fidelidad. Como consecuencia, algunos planos sonoros  cercanos se superponen a otros más alejados del oyente, hasta concretar al máximo el contorno de actuación y aún de movilidad de cada personaje [...].

Cantantes, coros, orquesta y director han colaborado eficazmente en esta difícil Grabación Audioscenica, haciendo posible este intento para el que Hispavox, S.A., ha puesto a contribución los más modernos adelantos técnicos».

Renato Cesari, que interpreta o personagem Leonello, é um barítono que me fascina. Ao ouvi-lo cantar uma romanza, às vezes temos a impressão de estar diante de um crooner ou de uma estrela do tango ou da canção napolitana. Em todo caso, sua voz mundana é deliciosa e credível, mesmo quando lhe tocou representar personagens castiços nas muitas zarzuelas que Sorozabal lhe dirigiu. 

O tenor estremenho José María Higuero transmite uma certa angústia, quando presenciamos a sua luta constante, muitas vezes sem sucesso, para encontrar a nota certa nas cadências finais.

E Isabel Castelo? Que podemos dizer dela? Pois bem, a minha impressão é que a sua voz soa afinada; correta na execução; com agudos potentes e bem colocados; com um fiato reflexo da sua grande capacidade pulmonar. Contra isso, um hieratismo que pode irritar, ou fazer com que o espetador implore por um bocadinho mais de salero. Talvez tenha sido esse o aspeto do seu temperamento que a grande Mili Porta recomendou que guardasse no bolso.

De qualquer forma, acho que estamos ante o seu melhor LP.

 

O maestro Sorozabal, o barítono Cesari e os primeiros violinos Luis Antón e Jesús Corvino.

Caderno interior. La canción del olvido. HH 10-228

 

Caderno interior. La canción del olvido. HH 10-228

 

Lírica Española. VV.AA.

Regente: Pablo Sorozabal

Maestro concertador: Julián Perera

Soprano: Isabel Castelo

Introdução: P. Federico Sopeña

Alhambra [Columbia] 1965 MCCP 29,019

 



 
Capa e autógrafo do meu exemplar.
Arq. do Pico Rodríguez

 

Mais uma vez, Sorozábal dirige à Castelo, desta vez para nos oferecer uma seleção de romanzas de zarzuela, na sua maioria, muito populares. É deste álbum que foram recuperadas as músicas ouvidas nas propagandas Ocaso. Começaram a ser emitidas por volta de 2006, sempre apresentando o sol que o fundador da seguradora funerária imaginou pousando no horizonte, figura poética do fim da vida.

Na primeira edição, a música escolhida foi «Romanza de la Duquesa» de Jugar con fuego. Em parcelas sucessivas, utilizaram-se a «Polonesa» de El Barbero de Sevilla, o rondó de El Maestro Camponone ou as «Carceleras» de Las hijas de Zebedeo. Estes anúncios, ou melhor, as suas bandas sonoras, provocaram numerosos comentários críticos na Internet, a maioria deles ao nível da prestigiada ágora digital denominada Forocoches. 

Quanto à atuação de Isabel Castelo, penso que é mais do que digna, e mostra-nos uma soprano solvente e com boa técnica, como convém a quem se formou no Conservatório de Madrid. Mesmo assim, achamos que Federico Sopeña é muito generoso quando diz no texto que apresenta o álbum:

«la voz de Isabel Castelo  escala brillantemente los agudos proprios de las sopranos ligeras, se centra y se agranda para el dramatismo de “Gigantes y Cabezudos” y se abre para “armar jaleo” indispensable que lo castizo pide, pero sin perder nunca esse sello de musicalidad, de rigor que convierte a la romanza de la zarzuela en algo “distinto”». 

Em suma, nem tanto, nem tão pouco.

 

Cancionero Sefardi vol.1

Voz: Isabel Castelo

Flauta: Luis Amaya

Celo: José Mª Alcazar

Percussão: Mª Cruz López de Rego

Arranjo, harmonização e direção musical: Adelino Barrio

Diapasón [Dial Discos S.A.] 1985 52.5089

 

Retrato da contracapa e capa.
 Arq. do Pico Orjais

 

Este álbum seria surpreendente, e até um acerto, se a fascinante Sofía Noel não o tivesse gravado primeiro. Até o repertório é muito parecido com os discos da soprano e folclorista belga. Em suma, os arranjos de Adelino Barrio são elegantes e agradáveis de ouvir, isto se primeiro consegues isolar ‒e a poder ser, eliminar para sempre da tua cabeça‒ a excêntrica pandeira, conseguindo assim se concentrar nos belos acordes da guitarra e nos contrapontos da flauta.

Com a participação da Castelo, o conjunto funciona mais ou menos bem, é gostoso de ouvir, mesmo paga a pena experimentar a sua escuta. Mas a sombra da Noel é tão longa!

 

Para concluir

Dito o que foi dito, espero que ninguém se sinta tentado a pensar que os discos de Isabel Castelo são um capricho de uma rapariga rica. Nada está mais longe da realidade. É evidente que a sua voz não resiste à comparação com a da Berganza ou a de Victoria de los Ángeles, mas quem da sua geração a suportaria? Mas, da mesma forma, é preciso dizer que ela não é pior do que algumas das que saíram da escola de Lola Rodríguez Aragón e que tiveram uma carreira artística com os seus bons momentos, concertos em praças importantes e gravações que hoje continuam a circular, para deleite de nostálgicos, nas plataformas digitais.

É verdade que a figura pública de Isabel Castelo D'Ortega, Marquesa de Taurisano, pode ser pouco atraente para o pessoal por ela pertencer à nobreza, ser uma das pessoas mais ricas de Espanha e por ter aquele vício tão típico das milionárias ‒em muitos casos para limpar a consciência ou o caminho que leva ao céu‒ da caridade piedosa. O que não saberei eu sobre este preconceito sendo como sou ateu, comunista e levando gravado na consciência, aquilo que dizia Marx: de cada um de acordo com sua capacidade, par cada um de acordo com sua necessidade. Mas também qualifica a nossa opinião saber que ela é neta de um tipógrafo afiliado à UGT, criador de uma empresa galega, Ocaso, que foi investigado e extorquido pelo regime franquista por ser membro da Maçonaria. O avô paterno, Manuel Castelo Rey, foi o responsável polo Registo Civil da Corunha que assinou a ata do casamento de Marcela e Mário, ou melhor, de Marcela e Elisa. Também não parece que tivesse aversão a trabalhar com pessoas que não foram afins ao regime imposto por Franco. Pablo Sorozábal, que provavelmente salvou a sua vida graças a amigos influentes, teve que se demitir da Orquestra Sinfónica de Madrid poucos anos antes de gravar com a Castelo, por querer incluir uma sinfonia de Shostakovich no seu repertório de concertos. O próprio Juan Cristobal, criador da medalha que recebeu a vencedora do prémio Isabel Castelo, foi fundador em 1931 da Associação de Amigos da União Soviética. Em quanto o mecenato, Isabel Castelo, por exemplo, colaborou com a Associação dos Amigos da Ópera e o Festival de Ópera da Corunha.  Além disso, em sua cidade existe uma sala no Aquário que leva seu nome, que com certeza, não foi uma homenagem que lhe veio de graça.

Estamos, portanto, ante  uma mulher de contrastes, como todas as que fazem parte da historia de um pais. Ela pertence a uma saga de filhas únicas. Sua mãe e ela mesma, até a morte do primeiro marido, herdeiras legítimas do império familiar, foram apresentadas pela imprensa da época como donas de casa submissas. Porém, ao receber a Medalha da Galiza, no site oficial da Xunta foi possível ler que deixou a música para atender aos seus negócios e não para agradar ao marido, como nos tinham dito. É difícil pensar que uma mulher que vai levar sua empresa a alturas nunca alcançadas, aprendera de repente a ser empresária, após a morte prematura do seu companheiro.

Não procurem por Isabel Castelo na Enciclopedia Galega, no Álbum de Múlleres Galegas ou no Diccionario de la Música Española e Hispanoamericana. Agora, ela gravou dois discos com Sorozabal e criou um prémio que durante alguns anos ajudou a muitas sopranos contemporâneas a lançarem suas carreiras. É difícil documentar todas as iniciativas musicais que tiveram o seu apoio, mas, certamente, o seu patrocínio ajudou a abrir muitos panos em teatros de toda a Espanha. 

Acredito que estudar a personagem, em relação à sua intervenção na música do seu tempo, nos daria uma visão realista de uma geração de artistas líricas que sempre vemos com um certo halo de mitificação e elitismo, e que, no entanto, foram trabalhadoras esforçadas na Espanha castrense e repressiva que o déspota Franco projetou. 

Por fim, e como remate a esta curta biografia da Castelo, permito-me incluir as únicas palavras dela, ditas ou cantadas, que consegui resgatar em galego. São as pronunciadas perante o Presidente da Xunta na entrega das Medalhas da Galiza:

«Graças Galiza, porque nasci na tua terra, nasci no teu chão, no Fogar de Breogão».

quinta-feira, 20 de maio de 2021

nº 251 Fina Galicia: Uma Diva ye-yé (1ª parte)

 

Heterodox@s Galeg@s 01

Fina Galicia: Uma Diva ye-yé (1ª parte)

De Fina Galicia sabemos mais bem pouco. No meu arquivo pessoal conto com alguns documentos onde reconheço a uma mulher formosíssima, elegante e com uma voz que às vezes acada níveis de excelência. Mas, com certeza, desconheço quase que tudo desta artista que aparece arredor de 1955; que transita pelo cimo da sua popularidade nos primeiros sessenta e cujo rastro dilui-se pouco a pouco ate se converter numa espécie de personagem legendária. Anuncio desde já que não tenho todas as respostas, mas sim quisera fazer uma primeira aproximação que conduza à descoberta duma mulher corunhesa da que fiquei, devo dizer, absolutamente fascinado.  

De Josefa López a Fina (Finita) Galicia.

Em 1958, El Pueblo Gallego (23 de agosto), publica uma entrevista feita a Fina Galicia na que a cantante achega alguns dos escassos dados biográficos que temos dela. Por uma das suas resposta sabemos que o seu nome real era Josefina López, mas ela mudou seu apelido polo de Galicia porque «nací en la Coruña, enxebre cien por cien; [y] a que tuve empeño frente a consejos de adoptar otros nombres ya tópicos, como “Granada”, “Andalucía”, etc. este de mi tierra que tanto amo». 

Também nos informa de que seu instrutor foi o maestro Quiroga (1899-1988), o popular compositor de Tatuaje ou Ojos verdes, proprietário duma editora e duma academia onde selecionava e instruía a futuras estrelas.

Porém, antes de 1958, e apesar da sua juventude, a cantante corunhesa já contava com um pequeno curriculum que incluía uma viagem a Venezuela e a México, périplo no que deveu realizar atuações nalguns canais de TV, principalmente venezolanos.

 

1955-1958. Das noites do Morocco à tournée com o Festival en Gilacolor.

 

1954. As primeiras notícias na imprensa que temos de Fina Galicia remontam-se a 1954 e a relacionam com um dos géneros onde vai concorrer nestes primeiros anos da sua carreira: o flamenco. Como se verá, compartirá cenários com alguma das primeiríssimas figuras do cante da pós-guerra, mesmo, nalgum caso, com os mais grandes: Manolo Caracol e La Paquera de Jerez.

 

“Teatros.

Price.- 7 (¡éxito!): Festival del cante. La Paquera de Jerez, Paco Isidro, Montoya, el Posaero, el Culata y todos los ases de la baja Andalucía. 11 noche, función homenaje a la Paquera de Jerez y 11 macarenos. Grandioso fin de fiesta, com intervención de Manolo Caracol, Finita Galicia, Camilín, Juanito Campos, Dolly Montenegro, Gloria y Shanfres, el Pili, Adela Borja y principales figuras de la escena. ¡Será un acontecimiento!”. Hoja del Lunes de Madrid, 27 de setembro de 1954 in https://aventurerosdelflamenco.blogspot.com

 

1955. A continuaçao de pisar as tábuas do madrileno teatro Price, a atividade da nossa biografada desloca-se a Barcelona, atuando na Alameda del Cómico e, acabada a temporada de verão, no teatro Victória com um programa de variedades. Não é até fins desse ano que volta a Madrid, esta vez para atuar em Salas de Festa como o cabaré Morocco, inaugurado só cinco anos antes.

 

Durante o biénio 1956-1957 não encontramos nenhum dado relacionado com Fina Galicia na imprensa galega e espanhola. Pensamos que neste tempo deveu ter alguma oferta, como já dissemos, para ir fazer as Américas, radicando-se em Venezuela e, quiçá, deslocando-se para algum trabalho a México.

 

1958. Manuel Gila Cuesta Gila (1909-2001) já era uma personagem muito popular em 1958, principalmente pola sua participação numa dúzia de filmes, nalgum deles como protagonista. O Festival en Gilacolor, produção de José Mª Lasso de la Vega, um dos mais grandes produtores e representante de artistas da época, vinha a ser como um espetáculo de variedades com números intercalados entre os monólogos do humorista madrileno. Portanto, um espetador podia rir com as chamadas telefónicas do Gila e a um tempo desfrutar duma vedete cantando e mostrando “palmito y salero”, um quadro de baile flamenco, um conjunto vocal ou o genuíno ballet francês (sic) “Las Gila girls”. E entre aquele elenco heterogéneo, a colaboração especial da nossa Fina Galicia. Não sabemos se a cantante corunhesa fez a gira completa de Gilacolor polo estado espanhol, mas podemos localizá-la no mês de julho no teatro Calderon de Barcelona e nos galegos García Barbón, Malvar e Rosalía de Castro em agosto. Em qualquer caso, o projeto não durou mais de uma temporada, quiçá apenas uns meses, já que neste mesmo ano Fina Galicia ingressa no elenco do madrileno Teatro Fuencarral. Desta etapa ficou para a posteridade a belíssima capa de Primer Plano, Revista española de cinematografía, com um retrato da cantante corunhesa de enigmática elegância. 

 

Arquivo do Pico Rodríguez

 

A pé de página podemos ler: “Fina Galicia. La sensación de Madrid. A su vuelta de América y parte de Europa, Fina Galicia se presentó em el teatro Fuencarral como primerísima figura de la canción, logrando ser aclamada por su arte extraordinario, juventud y belleza”. Primer Plano. 1958

 

1959-1963. A vedete.

 

1959. Em janeiro do 1959 Fina Galicia trabalha no espetáculo De lo bueno… lo mejor, de Rafael Farina. No elenco, ademais deles dois, encontramos nomes como Los Chimberos, Hermanas Bernal e Jorge Sepúlveda. 

 

1961. Não sabemos o tempo que a cantante corunhesa passou com o cantaor salmantino, mas não é até o ano 61 que volvemos encontrar anúncios com seu nome, esta vez como estrela principal no cabaré Villa Romana de Madrid.

 

Na frequente alternância ou convivência entre a vedete e a cançonetista pseudo-folclórica, Fina participa dum novo espetáculo, La sangre morena, esta vez de Ochaíta e Valerio e música de Solano. Estes três criadores de canções ostentam o duvidoso honor de ter composto nada menos que o Porompompero. La sangre morena tinha como primeiras figuras a El Príncipe Gitano, o da “icónica” interpretação de In the ghetto, e a Dolores Vargas, irmã do anterior, conhecida artisticamente como La Terremoto. 

 

1962. Durante o ano 1962 não encontramos o seu nome anunciado mais que entre as atrações dalguma sala de festas como a Teyma, situada na madrilena praça Callao. 

 

1963-1965. A época dos Festivais de la Canción.

 

1963. Do 21 ao 23 de julho de 1963 celebrou-se na Praça de Touros de Benidorm o V Festival Español de la Canción organizado pola R.E.M., ou o que é o mesmo, a Red de Emisoras del Movimiento. Neste festival o prémio principal e de maior quantia era para uma canção, não para quem a interpretava, mas obviamente o prémio para o cantor ou cantora era uma ajuda importante na procura dum espaço no competitivo mundo da canção ligeira. Por ali passaram artista como Raphael, o Duo Dinámico ou Julio Iglesias, assim que Fina Galicia deveu de ver parte dos seus sonhos feitos realidade quando lhe foi concedido um segundo prémio dotado com 20.000 pts. O No-do filmou parte do evento, graças ao qual podemos ver uns poucos segundos de imagens em movimento da cantante corunhesa.

 

 

No-Do TVE

 

Imediatamente depois do seu sucesso no Festival de Benidorm grava para Zafiro um EP com quatro das canções participantes: Viejo reloj, Suéñame, Quédate e Cuándo y dónde. Na contracapa do disco podemos ler uma nova referência ao seu périplo polas Américas:

 

“Su nombre no suena aún em España todo lo que merece por la calidad extraordinaria de su voz y por la personalidad de su estilo. Ello se debe a que Fina Galicia há venido actuando hasta ahora em Hispanoamérica.

 

Recorrió em triunfal gira artística vários de aquellos países y actuó durante una larga temporada em la televisión venezolana”. 

 

Foto de Fina Galicia na capa duma partitura de Edicones Segovia

Arquivo do Pico Rodríguez

 

Como artista exclusiva do selo Zafiro-Iberofon vai gravar uma série de E.P’s e singles promocionais que nos proporcionam um pequeno catálogo de canções da nossa artista:

 

Z-E 434 1963

Viejo reloj – Ignacio Román-Rafael Jaén

Suéñame – Rafael de León-Máximo Baratasy-Antonio Areta

Quédate – Ignacio López García-Adolfo Garcés

Cuando y dónde – Camilo Murillo-Antonio Segovia

Z-E 491 1963

Pobre Apolo - [Ignácio] Román-M[anuel]. Alejandro

Pasó el amor - Román-M. Alejandro

Cabiar de vida - Román-M. Alejandro

Desperté - Román-M. Alejandro

00-7 Promocional 1964

Ciudad solitaria – Doc Pomus-Mort Shuman

Es inutil – Pieretti-Sonna-Privitera

00-8 Promocional 1964

Copacabana – J. de Barro-A. Ribeiro

Un poncho y un sombrero – D. Oace-G. Colonello

 

Cabe destacar como nas gravações do 1963 os autores das canções são todos espanhóis: os participantes do Festival de Benidorm e o Manuel Alejandro, compositor reclamado polas grandes figuras. Embora, os temas dos discos promocionais são todos êxitos internacionais traduzidos ao castelhano. 

 

Arquivo do Pico Rodríguez

 

 

 Arquivo do Pico Rodríguez

 

1964. Zafiro deveu querer apostar por Fina Galicia ao lançar estes discos promocionais que a levaram, inclusive, a estar nas tradicionais recepções de Franco nos jardins da Granja de San Ildenfonso, na comemoração do 18 de julho. Esta recepção a que acudia o corpo diplomático acreditado em Madrid, o Governo e as altas jerarquias da nação, contava com atuações musicais em direto baixo a direção dum velho conhecido da nossa cantante: o Maestro Quiroga. No ano 64, nos jardins segovianos, cantou Fina Galicia diante de Franco e de Carmen Polo e de lado de muitos outros artistas tais como Sara Montiel, Juanita Reina, Luis Mariano ou Tony Leblanc.

 

Nesse mesmo ano acontece algo que pode significar um cambio na carreira da cantante corunhesa. Num programa da TVE emitido o 10 de maio de 1964, Fina Galicia canta Uma noite na eira do trigo. O programa era um especial dedicado a luita contra o cancro, transcorrendo parte dele em Compostela. Não consegui ver estas imagens, polo que não sei que instrumento e instrumentista a acompanhava.

 

O certo é que Zafiro, com a produção de Ignacio Roman, vai lançar um L.P. em 1965 no que Fina Galicia interpreta um repertório completamente em galego. O disco será chamado Alma gallega e a cantante corunhesa estará acompanhada pola Agrupación Coral Flolklórica de Cámara de Madrid, baixo a direção do mestre nado em Ortigueira, Domingo Martínez Vieito. Na parte instrumental participam o gaiteiro Antonio Garcia, o tambor Saturnino Clemente e na guitarra, o próprio maestro Domingo M. Vieito.

 

Este conjunto de canções serão reeditadas por Zafiro em múltiplas ocasiões e com diferentes formatos, podendo encontrar-nos com E.P’s onde se reduziram os cortes ou em L.P’s nos que as peças de Alma gallega se misturaram com outras de diferentes discos, intérpretes e géneros. Um destes pot-pourri, tal vez o mais ilustre, é o que levou por título Voces do Pobo (1976), uma cassete que viajou nos carros de todas as famílias progres da minha geração.

 

O meu exemplar de Alma gallega, um E.P. do 1966, leva no seu interior um libreto em quatro línguas: castelhano, francês, inglês e alemão. O fato de conter estas traduções fala-nos dum troco no paradigma. Agora não se faz um produto para a emigração, para os galegos e galegas em ultramar. Interessa mais aproveitar o turismo e mesmo, neste meu exemplar, aparece um autocolante em dourados muito significativo: Recuerdo de Ortigueira.

 

  ZM-18 1965

01 N’a eira/ Ala la – Domingos Martínez Vieito

02 Negra sombra – Juan Montes-Rosalía de Castro

03 Ruliño/ Villancico (Popular) - Armonización: Domingo Martínez Vieito

04 Alalá de Amoeiro (Popular) - Armonización: Domingo Martínez Vieito

05 Son o mellor mariñeiro/ Popular – Armonización: Domingo Martínez Vieito

06 Cando a terra chama – Martínez Vieito

07 Pandeirada labrega/ Martínez Vieito

08 Foliada de Ortigueira – D. Martínez Vieito

09 Alborada gallega/Fragmento - Veiga

10 Unha noite na eira do trigo – Curros Enríquez-Alonso Salgado

11 Meus amores – Golpe-Baldomir

12 Aires gallegos/Popular  

 

1965. Em 1965, Fina vai participar no I Festival Hispano Portugués de la Canción del Miño. No parque do Possio ganha um terceiro prémio, por trás da portuguesa Maria Júlia e de Esther Gloria Prieto. Esta última, filha de Julio Prieto Nespereira e sobrinha de Obdulia Prieto Nespereira, obtêm também um segundo prémio como compositora com a canção La voz del río.

 

Em setembro desse mesmo ano, volvemos a localizar a nossa cantante em Barcelona, esta vez atuando nas Ramblas, num espetáculo onde se levará a cabo a eleição de Miss Artista 1965.

 

E depois disto, mais nada. Perdo o rastro de Fina justo quando mais me apetecia saber dela. 

 

Conclusões.

 

Fina Galicia foi cupletista, vedete, cantante ye-yé e até provou sorte na canção de salão galega, acompanhada à guitarra pelo maestro Martínez Vieito. Foi uma trabalhadora do espetáculo nas boates e nos tablaos flamencos. Quis trunfar como uma Concha Piquer ou como uma Concha Velasco, mas sem ter que renunciar às suas origens galegas. Por isso mudou o nome e teve, desde um primeiro momento, o projeto íntimo de cantar em galego. A sua biografia tem muito em paralelo com outras mulheres bravas que procuraram um espaço artístico longe da Galiza. Parece óbvio lembrar aqui à Ana Kiro. Mas Fina Galicia deixa logo de ter presença nos médios e o seu nome é ignorado na atualidade polos estudiosos das nossas músicas populares. Oxalá este artigo deite alguma luz sobre Josefa López, de nome artístico, Fina Galicia.

 

Breve audição:

 

  Viejo reloj (Ignacio Román-Rafael Jaén) Zafiro (Z-E 434)

 

Pertencente ao disco com canções do Festival de Benidorm, esta peça foi composta por Ignacio Román, produtor, também para Zafiro, do disco Alma Gallega. Rafael Jaén (1915-1984) foi o compositor da famosíssima rumba Mi carro, de Manuel Escobar. Viejo reloj é um bolero cantado por Fina com uma voz muito elegante, fazendo uso dum vibrato típico da canção sudamericana. 

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    Pobre Apolo (Ignácio Román-Manuel Alejandro) (Z-E 491)

 

Esta peça faz parte do EP de canções compostas por Ignacio Román -mais uma vez- e Manuel Alejandro, criador de êxitos para Raphael ou Julio Iglesias, entre outros muitos. No áudio aprecia-se um reverb (disculpem se não é este exactamente o efecto utilizado) comumente usado nos anos 60. A voz de Fina está, na minha opinião, mais na onda de Marisol ou Rocio Durcal que na de Concha Velasco, mas, em qualquer caso, num estilo marcadamente ye-yé.

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 Unha noite na eira do trigo ZM-18 1965

Quando um escuta a voz de Fina nesta versão do poema de Curros, pode apreciar as grandes dotes dramáticas da artista corunhesa. A gravação apenas tem um par de anos de diferença a respeito das anteriores e, sem embargo, a voz parece mais avelhentada, mais madura. Além disso, a cantora interpreta o texto até quase pronunciar a última frase num contido soluço. É evidente que nalguns portamentos a afinação entra em crise, mas resolve aceptavelmente e tem momentos onde a sua interpretação resulta absolutamente convincente. 

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Um dos grandes descobrimentos para nós deste disco foi o de poder escutar as harmonizações e interpretações na guitarra de Domingo Martínez Vieito (Ortigueira, 1917-?) Este músico militar apaixonado da guitarra merece, e talvez algum dia fagamos, um trabalho de recuperação do seu legado musical. 

 

terça-feira, 2 de março de 2021

nº 250 Dez anos de Cantos Lusófonos.


Quando andava a fazer este livrinho, a minha mulher e mais eu conhecemos à pessoa mais importante das nossas vidas: a nossa filha Dália. É por isso que o livro tem na capa um desenho desta flor e uma dedicatória para ela. 

Além disso, há três mulheres mais que participaram na composição do volumem com seu alento de companheiras e amigas: Maria Manuela, ilustradora ilustre, e Ugia Pedreira e Uxía Senlle com sendos prólogos. Nunca melhor acompanhado.

O Cantos Lusófonos leva anos esgotado nas livrarias e não sei se é possível encontrar algum exemplar de velho. Eu gosto imenso de partilhar estas canções porque todas elas fazem parte dum momento importante da minha vida, e no seu conjunto, constituem o trilho musical da minha existência.

 

 
 


 Alguma das peças de Cantos Lusófonos viajou até o meu disco Poetas nas mãos carinhosas de Alejo Amoedo e na perfeição vocal de Helena de Afonso. Que eles dois interpretem uma peça arranjada por mim é um motivo para não abandoar, quando abandoar resulta tao motivador!



          

sexta-feira, 12 de julho de 2019

nº 234 Os Cantores del Instituto e a receção da obra de Lopes-Graça na Galiza. I


Em 1956, o compositor português Fernando Lopes-Graça (Tomar, 17 de dezembro de 1906; Cascais, 27 de novembro de 1994) cumpria 50 anos, a minha idade atual. Na altura, o maestro acumulava um longo historial de repressão por motivos políticos no que se incluíam detenções, prisão, impedimentos para ensinar e proibição de interpretar a sua obra. O seu posicionamento contra o salazarismo é conhecido por todos, assim como a sua militância no Movimento de Unidade Democrática e no P.C.P.
Se teve atrancos em Portugal, na Espanha de Franco o panorama não pintava melhor. 
Numa entrevista à Revista Ritmo, nesse mesmo ano de 1956, Lopes-Graça lamentava-se da pouca repercussão que a sua obra tinha no Estado Espanhol:

«–Después que mi amigo el consagrado pianista Leopoldo Querol ejecutó en Madrid, en 1942, mi Concerto número 1 para piano y orquesta, que había creado (sic) [deve de ser estreado] con Freitas Branco el año anterior en Lisboa, yo creo que la única composición mía conocida en España es la Encomendação das almas, que la espléndida Agrupación Coral de Cámara de Pamplona ha estrenado en el Festival de Granada de 1954, y que me ha dispensado el honor de incluir repetidas veces en sus programas.» Ritmo, Ano XXVII nº 283 1956 Novembro. 01/XI/1956

Foto dedicada à Revista Ritmo 1956

Em realidade, se fazemos uma procura demorada e exaustiva, podemos ir encontrando referências a obras suas interpretadas em alguma cidade galega –e também na Espanha–, mormente por solistas ou agrupações portuguesas convidadas a eventos de fraternidade Galiza-Portugal. Assim, em 6 de dezembro de 1952, o coro de câmara As pequenas cantoras de Portugal, dirigido por Virgílio Pereira, atuam no teatro García Barbón de Vigo, incluindo no seu reportório as Cantigas de Natividade, do mestre de Tomar. 
Este concerto poderá ter alguma importância no nosso relato, como veremos mais adiante.

Continuando com a exposição cronológica dos feitos avançamos até o 16 de março de 1956, ano da fundação de Los Cantores del Instituto [de ensino médio]  de Pontevedra. Em apenas dois anos o coro foi ganhando uma reputação alicerçada pelo mestrado de Agustín Isorna Ríos e Manuel Fernández Cayeiro e as extraordinárias relações públicas do diretor do instituto, D. José Filgueira Valverde. Assim, entre as numerosas atividades desse curso escolar, os coristas viajam a Madrid para participar nos atos da Semana Santa na que se vão interpretar algumas obras de Lopes-Graça. Mas, sabemos quais?

Os professores Fernando Otero Urtaza (2014) e Xavier Groba (2015) aclaram que a participação do coro escolar tinha como principais eventos «as solenidades docentes, as festividades relixiosas do Nadal, Coaresma e oficios de Semana Santa e nas conferencias-concerto que Filgueira tiña ven a compartir con eles». Xavier Groba (2015) p. 69 Segundo aparece na brochura Los Cantores del Instituto de Pontevedra. Historial y Repertorio. 1956-1963 [H. y R.] as peças de Lopes-Graça interpretadas pelo coro foram as seguintes: 

[Indicamos em cifra o curso no que foi interpretado pelo coro segundo se indica na brochura antes citada.]

–Pela noite de Natal. 1955-1956;
–Vinde, vinde já a Deus. 1957-1958;
–Eu hei de dar ao Menino. 1955-1956;
–De varão nasceu a vara... 1956-1957.

Este grupo de partituras pertencem ao conjunto titulado Cantos tradicionais portugueses de Natividade, cuja primeira audição deu-se em Lisboa em 19-XII-1950, sendo gravado pelo Coro de Amadores para o selo discográfico Radertz em ca. 1951. Como se está a ver, os Cantores do Instituto escolheram do repertório de Lopes-Graça o mesmo grupo de canções que as Pequenas cantoras de Portugal cantaram no García Barbón. Mas os cantos da Natividade foram interpretados como exemplos de umas conferências de Filgueira Valverde sobre o Natal, obviamente dadas no mês de dezembro. É meses antes, em abril do 1957, que os cantores viajam a Madrid para atuar durante a Semana Santa na igreja paroquial de San Agustín e na igreja da Cidade Universitária, além de participar na retransmissão radiofónica de Radio Madrid ou Radio Nacional de España, segundo as fontes. 

«Los cantores del Instituto de Pontevedra actuarán en la Hora Santa que transmite "Radio Madrid" el Jueves y Viernes Santo desde la Ciudad Universitaria y en las que predicará el ilustre musicólogo Padre Federico Sopeña.
También cantarán los Ofícios del Triduo Sacro: Jueves y Viernes Santo en la bellísima iglesia de San Agustín y el Sábado Santo, de nuevo, en la Ciudad Universitaria.
Aparte las obras clásicas, en especial de autores españoles, destaca y constituye novedad un excepcional conjunto de obras religiosas actuales, escritas casi todas ellas exprofeso para nuestro coro y que han de estrenarse en estas solemnidades de Semana Santa. Fueron dedicadas a los Cantores del Instituto por Joaquín Rodrigo, Cristóbal Halfter, F. Lopes Graca (sic), A. Moreno Fuentes y dos admirados compositores, honra de nuestra ciudad, P. Luís María Fernández y Antonio Iglesias Vilarelle.» El Pueblo gallego: rotativo de la mañana: Año XXXIV nº 11230; 30/III/1958.

Estas peças de Lopes-Graça não podiam ser as da Natividade, as únicas que aparecem em H. y R. Felizmente, no magnífico catálogo do espólio musical do maestro organizado pela professora Teresa Cascudo, encontramos a solução ao mistério. Com a entrada LG 31 recolhem-se Dos cantos religiosos tradicionales de Galicia, para coro feminino a capella, dedicados «Para el Coro del instituto Nacional de Enseñanza Media de Pontevedra».

Na entrevista concedida à revista Ritmo em 1956, Lopes-Graça fala das suas obras mais recentes nestes termos:

«Eso [a redação do Diccionario de Música] me ha impedido el trabajo de cración, que se reduce a dos o tres obritas corales (entregadas a la Coral Polifónica de Pontevedra y a los Cantores de Madrid), a las Melodías rústicas, para piano (que acabo de grabar, con la Sonata número 2, para His Master's Voice); a los 24 preludios para piano, aun en su mayor parte inéditos; en fin, como obra de más empeño, el Concertino para piano, metales, percusión y cuerdas, dedicado a Helena Sá e Costa, y que esta ilustre pianista aguarda oportunidad para estrenar.» Ritmo, Ano XXVII nº 283 1956 Novembro. 01/XI/1956

Posto em contacto com o Museu da Música Portuguesa de Cascais, e depois das ágeis gestões feitas pela sua directora Conceição Correia, a quem agradeço imenso a pronta resposta, teve a oportunidade de ver o manuscrito de Dos cantos religiosos tradicionales de Galicia. 

Capa da cópia autografa LG 31
Colecção Museu da Música Portuguesa

  Íncipit de La Pasión
Colecção Museu da Música Portuguesa

  Íncipit de El Ramo de Pascua
Colecção, Museu da Música Portuguesa

O material tradicional que usou Lopes-Graça pertence ao fundo Casto Sampedro do Museo de Pontevedra e aparece recolhido na tese de doutoramento de Xavier Groba (2012).

I
0487 Xoves Santo "La Pasión" de Cenlle, romance [El discípulo amado]
II
0492.2 Domingo de Pascua, canto do Ramo de Pascua. "Romance religioso" [Rubiá, o máis probable, ou San Cristobo de Cea, ou Os Blancos] 1906

Em conversa com o próprio Xavier Groba, ele lembrou-me que na viagem a Madrid Los Cantores del Instituto gravaram para Hispavox o seu primeiro, talvez único, registo discográfico:

«O luns e martes de Pascua os rapaces gravaron en Hispavox os seus primeiros rexistros discográficos de obras de Tomás Luis de Victoria, música compostelana, música medieval galega e as súas perduracións e villancicos tanto do Século de Ouro como populares harmonizados». Otero Urtaza (2015)

Que eu saiba, estas gravações nunca chegaram a editar-se, pelo que também desconheço se os Dos cantos religiosos... de Lopes-Graça foram interpretadas diante dos microfones de Hispavox.

Conclusões.

A visita a Madrid teve como mestre de cerimónias, nunca melhor dito, ao P. Francisco Sopeña Ibáñez, um dos chefes da musicologia espanhola em tempos do regime franquista. Junto com os numerosos cargos docentes e de gestão que teve na sua dilatada carreira está o de ser pároco da Igreja de S. Tomás, na Cidade Universitária madrilena, um dos lugares onde vão atuar os Cantores. Em H. y E. o P. Sopeña dá a sua singular visão do que foram aquelas jornadas:

«Durante dos años [1957 e 1958], el coro del Instituto de Pontevedra cantó la Semana Santa en nuestra iglesia de la Ciudad Universitaria, haciendo lo que sólo es posible en la adolescencia: rezar y, al mismo tiempo, cantar. [?] Cantan las viejas y entrañables "Cantigas"; cantan la hermosa y lúcida polifonía de Palestrina; cantan, como quien sueña, la canción gallega».

Cunha narrativa um bocado enredada –e até contraditória– o P. Sopeña dá uma definição que para mim é um dos melhores esboços feitos sobre a personalidade do professor José Filgueira Valverde. 

«El Instituto es la obra de una vida derramada en cristiano hasta el máximo: José Fernando Filgueira, que entra en la vida universitaria con una teses colosal sobre "Cantigas" –la tesis de la que hablaba siempre el inolvidable Asín Palacios–, lo dejó todo para ser, incluso desde su hogar, el creador de esta palpable maravilla. ¿Lo dejó todo? No dejó nada: pocas veces vermos más claro esa dialéctica de renuncia y de ciento por uno, mensaje, drama y recompensa de Dios a toda vocación realizada. Porque los libros, la arqueología, las excavaciones, el cancionero, hasta la vitalidad que estremece y que cansa, todo ha sido y es para esa adolescencia a la que asusta, encandila y encauza. Quen en le panorama de vocaciones sacerdotales cuenta tanto el Intituto de Pontevedra, hasta como signo».

Asusta, encandila y encauza, toda unha declaração de princípios dos métodos educativos do franquismo, e um modo muito espanhol de ser contundente com uma oratória em três períodos, tal e como o celebérrimo fija, limpia y da explendor.

O certo é que no seu laborar cristão, o professor Filgueira Valverde realizou ou promoveu algum dos marcos históricos mais importantes da cultura galega do século XX, entre os quais, sem dúvida, lançar pontes imorredouras entre Galiza e Portugal. De 1958, por exemplo, é a sua biografia de Camões em castelhano, com uma edição portuguesa umas décadas depois. Durante os anos que foi Presidente da Câmara de Ponte Vedra, de 1959 a 1968, vai-se celebrar na sua cidade o Festival de la Canción Gallega. Como já tenho contado, a este festival –que como o seu nome indica está dedicado a canções em língua galega para canto e piano– houve seis compositores portugueses a participar: Frederico de Freitas, João de Freitas Branco, Joly Braga Santos, Cláudio Carneyro,  Victor Macedo Pinto e um quase inédito Jorge Rosado Peixinho. As gestões pessoais de Filgueira tiveram que ser decisivas para que este pequeno grupo de maestros portugueses participaram no festival junto com mais de setenta compositores de nacionalidade espanhola. Quando redigi o meu estudo sobre o festival fiquei surpreendido pela ausência de Lopes-Graça. Agora que conheço da presença da dedicatória de Dos cantos religiosos... a minha estranheza é ainda maior. 

Fica claro, então, o papel importante que no relato sobre a receção em território espanhol da obra de Lopes-Graça teve o coro dos Cantores del Instituto de Pontevedra e como sempre, eis a presença de Filgueira, surgindo como Deux ex machina, para dar uma solução lógica ao problema exposto.


Fotografia dos Cantores tirada ante a porta da Igreja de San Agustín de Madrid. 1958 H. y R.
Por cima dos meninos vestidos de coroinhas o coro feminino que interpretou Dos cantos religiosos tradicionales de Galicia. Entre a raparigada aparece um padre, que pudera ser Francisco Sopeña.

Bibliografia:

CASCUDO, Teresa (1997) Fernando Lopes-Graça. Catálogo do espólio musical. Cascais, Museu da Música Portuguesa
d. P. ORJAIS, José Luís «Compositores portugueses no Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra» Opúsculo das Artes nº2 Abril, 2013 [Revista Digital]
GROBA, Xavier (2012) Casto Sampedro e a música do cantigueiro galego de tradición oral. Redondela, Concello de Redondela. [Tese de doutoramento]
GROBA, Xavier (2015) Xoán Tilve, Gaiteiro de Campañó. Compostela, aCentral Folque.
OTERO URTAZA, Fernando (2014) «Un legado de Filgueira: Os Cantores do Instituto», en Cadernos Ramón Piñeiro, XXXI. Compostela, Xunta de Galicia.
(1965) Los cantores del instituto de Pontevedra. Historial y repertorio. 1956-1963. Pontevedra, Imp. Lib. Paredes Valdés.

domingo, 17 de março de 2019

nº 231 Menina ou de como nasce uma canção.

De como nasce uma canção.

Menina

Seria o ano 98 ou 99 do século passado. Eram tempos de militância ativa no movimento filomasónico chamado reintegracionismo, de pintadas clandestinas, brochuras ininteligíveis, colantes pitorescos e da crença em que era possível a troca do paradigma. Enfim, éramos mocidade. Como em toda organização, por muito desorganizada que esta esteja, circulavam as leituras obrigadas inapreensíveis em livraria: uma história não editada em Espanha da Opus Dei; as provas provadíssimas de que era um tal Prisciliano o que estava enterrado na Sé compostelana; um anteprojeto para a constituição dum futuro Estado Galego... É dizer, livros todos de autoajuda.
De vez em quando alguém trazia um exemplar ou um simples retalho de algum jornal lusófono. Quase sempre eram notícias sobre o Reino da Espanha desde a perspetiva da imprensa estrangeira, não untada, obviamente, pelos guardiãs das essências borbônicas. Mas outras vezes, os artigos enfrentava-nos a realidade de cidadãs da lusofonia cujo compromisso com a sua cultura e o seu pais fazia insignificante o nosso amplo repertório de gestos heroicos. Um desses artigos abalou tanto o meu espírito que fez nascer uma canção.

Não lembro o título da reportagem que aparecia num suplemento de –tal vez– o Jornal ou o Diário de Notícias, mas sim do que tratava. Os fatos aconteceram um 12 de novembro de 1991, no cemitério de Santa Cruz em Díli, Timor-Leste. Lá concorreram milhares de pessoas para celebrar uma missa em memória de Sebastião Gomes, um mártir da causa independentista timorense. No cemitério, o exército indonésio abriu fogo e matou a cerca de 300 pessoas. 
As fotografias que ilustravam o artigo causavam impacto e se falava de como aquela massacre fez visível o conflito a nível mundial, mais ainda quando o tiroteio foi filmado pelo câmara Max Stahl. Também dava conta dum fato que na altura para mim foi especialmente abalador, e isto era que na retaguarda, as mulheres timorenses eram as encarregadas de levar o armamento e as munições aos homens que lutavam no frente, principalmente no interior montanhoso da Ilha. 

Esta imagem foi a que me inspirou a letra de Menina. Lembro perfeitamente o dia em que a compus. Tero e mais eu vivíamos no andar familiar de Compostela. Acima da cama  estava sempre a viola, aguardando a que pegara nela para cantar repertório do folclore galego-português, repertorio que continuo a utilizar com o meu alunado de primário. Letra e música nasceram juntinhas. Uma noite, Ramom Pinheiro e Ugia Pedreira vieram cear. Cantamos, como sempre, e entre as peças de Vitorino, Zeca e alguma que outra rancheira teve a sua estreia doméstica a Menina do Orjais. A Pedreira gostou de imediato e a fez sua, pelo que deveria aparecer em todos os créditos como coautora. Sem Ugia, Menina seria um canto sem alma.

E sabem o porquê de lembrar agora esta história? Pois porque no auditório de Rianxo há uma magnífica expo titulada Guerrilla Gráfica dunha Gran Burla Negra e porque esta me lembrou que os músicos também fomos parte dessa guerrilha e porque Menina foi na contenda uma bala carregada de futuro. Num disco-livro que todo o mundo deveria revisitar de vez em quando titulado Sempre Mar, cultura contra a burla negra, Menina é a peça que os Marful (Ugia Pedreira, Pedro Pascual, Pablo Pascual e Marcos Teira) achegam ao projeto. Viva! 

Sempre Mar saiu no 2003 quando fazia só três anos que Ugia Pedreira, Ramom Pinheiro e mais eu planejáramos aquela maravilhosa tolice chamada Conservatório Folque de Lalim. A dia de hoje, quando o centro, de sobreviver, seria já maior de idade, associo aquele sonho de juventude com aromas, cores, sabores e também canções. Acho que nos primeiros anos do Conservatório todo estava impregnado de nós-outros, dos três franco-atiradores de cravos e melodias, da Pedreira directora, do Pinheiro relações públicas e de mim, o rarinho. E se tivesse que pôr banda sonora a aqueles wonderful days a canção começaria com este verso: Menina que vendes as ondas do mar.

Acho que Menina deve ser hoje uma cantiga dedicada a todas as mulheres valentes, às heroínas da sororidade, as que na Galiza, como no resto do mundo, fornecem aos homens de armamento e munições de dignidade, a que a elas lhes sobra. Por isso é que sempre quis ser Menina. E tal vez consegui.

MENINA
ouvir
Versão que aparece no disco-livro
Sempre mar, cultura contra a burla negra.