sexta-feira, 14 de março de 2014

nº 180 XYZ


XYZ
A Marcial e a Alberto, por esta ordem.

Esta história aconteceu a fins da década de 90, uma época da minha vida sonora como uma fanfarra de ciganos romenos. Depois de muitos anos de ausências, X, Y e Z, três amigos da infância, encontram-se no átrio duma igreja. Vemos a cena desde os olhos emocionados de X, um músico hipocondríaco que acaba de descobrir que o seu umbral da dor é baixíssimo. Z é introduzido no templo nos ombros de quatro funcionários duma funerária, num caixão de mogno sobre cuja tampa reluz um crucifixo e um Cristo metalizados. 


Passados uns minutos, o pessoal que fica no átrio esta constituído por ateus, impontuais, tabaquistas e falabaratos, quase que todos homens. X, elemento do primeiro sector, sente-se um bocado incómodo, pois detesta a todos os demais grémios. Do interior da igreja abarrotada de gente brota uma melodia melancólica como trazida por um vento mareiro. A letra da canção é um trilho para este povo de marujos que tanta gentinha perdeu no mar: «Tu, has venido a la orilla / no has buscado, ni a ricos ni a pobre...». X, interessado desde criança pela história das canções, sabe que Pescador de hombres, foi composta por Cesáreo Gabaraín, um padre músico e desportista que mesmo chegou a ganhar um disco de ouro. Quando o coro recita os versos «en la arena he dejado mi barca / junto a ti, buscaré otro mar» as conversas no exterior cessam, as olhadas dirigem-se ao chão, há alguma bágoa nos mais sensíveis...

Num momento em que X faz um varrido de esquerda à direita do seu campo de visão, os seus olhos se cruzam na distância com os de Y, que sorri apercebido da presença do seu velho colega de turma. Y aproxima-se a X. Quando estão a poucos centímetros Y estende a sua mão:

-Venha mais cinco! -disse Y.
-Que caralho faz tu aqui? -contestou X.

Y, que viste um impecável traje preto, acomoda a gravata, move ligeiramente a cabeça e vai-se embora, silencioso, com o rostro contrariado, semi-oculto trás uns óculos de pasta preta. Há movimento no interior do templo. A gente começa a sair; soam os sinos; forma-se o cortejo fúnebre. X integra-se na comitiva e coloca-se de par de Z que agora é sustentado pelos parentes mais próximos. O padre lidera uns cantos ou plegárias acompanhados de sineta que faz pensar a X naquele poema de Alfredo Brañas chamado O avelhão no que se descreve um rito funerário localizado na vizinha Vila Nova. Por um instante, X esquece onde está e se imagina fazendo uma roda que caminha muito de vagar em torno ao catafalco de Z, emitindo os dançantes um zumbido monótono, sinistro... Na realidade, o que acaba de visionar é uma cena dum filme antigo, quiçá uma adaptação cinematográfica dum romance de Valle Inclán. Haverá alguma conexão Branhas↔Valhe Inclán? D. Alfredo esteve na nossa ilha em 1891 no bota-fora do vapor Teresita, propriedade dum industrial da localidade. →José Manuel de la Peña y Oña, bisavó de Valle Inclán, teve de se deslocar desde Vila Nova até a Arousa fugindo das represálias do exercito francês.→ No breve espaço de tempo que José Manuel de la Peña y Oña e a sua mulher Serapia Fernández Cardacid moraram aqui, tiveram uma criança de nome Francisco Peña, avô de Valle Inclán.→Durante os anos que seguiram à derrota dos franceses, os contrabandistas carcamãens assenhorearam-se do Mar da Arousa.→O mais ilustre desta casta de contrabandistas foi o genovês Benito Vicetto Beneto, pai do historiador ferrolano do mesmo nome. Todas estas ideias desordenadas vieram a cabeça de X durante os escassos cem metros que distavam desde a igreja até o campo-santo.

A entrada ao cemitério era ampla, mas ficou pequena ante as presas da multidão desejosa dum bom lugar desde o que contemplar a inumação. X deixou-se levar, mas quando se encontrou diante da boca aberta daquele nicho de formigão, compreendeu que não queria presenciar como esta se devorava ao seu amigo. Aos seus ouvidos, no médio dum silêncio sepulcral, chegaram os lamentos da mãe e das irmãs do defunto cada vez mais desatados. Saiu discretamente. Ao ultrapassar o umbral do recinto, divisou ao longe a figura de Y, que tal vez também não suportou a cena. X teve a impressão melodramática de ter assistido ao enterro duma grande amizade.

Na actualidade, ano 2014, X é um poeta frustrado e uma pessoa razoavelmente feliz. Y tem um largo historial de reclusões em cárceres de todo o estado. Numa delas chegou a coincidir, a típica casualidade galega, com P, outro ex-companheiro de estudos agora funcionário de prisões. Z é um pequeníssimo segmento da coluna azul dum diagrama que X viu recentemente na prensa local e cujo cabeçalho era exactamente este: Percentagem de homens menores de trinta anos falecidos na década dos noventa a consequência do consumo em massa de drogas.

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