Tetos
Micro-novela erótica
C. I
Começou sendo apenas um ruidinho semelhante a
uma pingueira a bater no parapeito da janela, fácil de ignorar ou de acomodar
aos pensamentos. Mas na meia-noite os sons vão-se singularizando, fazendo-se
grandes até atrair toda a tua atenção, ensimesmando-te. Agora percebia um ritmo
de cadência lenta, monótona, ligeiramente sincopado. Percebia um tempo accelerando que me levou a pensar que no
andar superior alguém praticava sexo sobre uma cama indiscreta. Incomodou-me.
Por um instante senti que se estava a invadir a minha solidão, como se na
distância alguém acertasse a meter-me o dedo na chaga. Mas a minha paranoia esvaeceu-se
quando escutei a sua voz. Foi nascendo, ao igual que aquele ruidinho primigénio,
um chio cadencioso ao pouco convertido em grito apenas dissimulado. Reconheci a
voz duma mulher em pleno gozo, sentindo-me, hei de confessa-lo, moderadamente
excitado. Mas, trás a aparição da Prima
Donna, o ato correu com brevidade, ficando eu dormido quase que no instante
em que caia o telão.
C.II
Ao outro dia deitei-me cedo. Não eram mais das
dez quando pousava o livro sobre a mesinha e apagava a lâmpada, na esperança de
que as horas ganhadas à noite haviam-me ajudar a sobreviver. Vã ilusão! Às doze da noite em ponto,
novamente o ruidinho começou a invadir o meu quarto. Tão diminuto como era e
tinha o poder de me acordar dum sono aparentemente profundo. Não pude evitar
olhar o relógio de números luminosos. Não pude evitar escutar com atenção. Não
pude evitar uma alegria súbita quando a voz feminina proclamou, urbe et
orbi, o seu júbilo.
C.III
Passaram quatro ou cinco dias nos que ao dar as
doze começavam os ruídos, os gritos, sempre o mesmo protocolo; um mesmo início
e um mesmo final. Para então, eu já não podia dormir sem presenciar o
espetáculo que se desenvolvia no andar de acima. As minhas fortes enxaquecas acostumaram-me a deitar cedo, a levantar cedo, a levar uma rotineira
vida de frade bento. A meia-noite era para mim um tempo proibido. Até a hora de
começo da função lia passando, despreocupado, as folhas, sabendo que os de
acima seriam pontuais. Alguma vez, cônscio desta pontualidade inexplicável, pôs
o despertador na esperança de dormir umas horinhas, mas de nada serviu. Só com
o grito final da rapariga o meu corpo se entregava, ficando dormido até a manhã
seguinte.
C.IV
Um dia escutei uns tacões a bater no chão.
Normalmente, antes de começar o ato, uma porta se abria; sentia-se algum
deambular pelo andar; às vezes alguma urgência para estar na hora no lugar
adequado. Mas só foi ao escutar os tacões que cai na conta de que durante todo
este tempo os únicos ruídos humanos identificados por mim eram de mulher. Essa
noite esteve mais atento ainda. Agora é que tinha a certeza: toda a atividade
do andar superior era provocada por uma única dama a qual eu escutava enquanto
ela se masturbava. As minhas sensações então foram contraditórias. Por uma
parte senti por vez primeira que estava a violar a intimidade de alguém. Isto
só o senti uns segundos. O sentimento
mais potente foi o de solidariedade ou mais bem admiração por uma mulher
autossuficiente, liberada dos caprichos do sexo contrário.
C.V
Os dias a seguir não fizeram mais que confirmar
as minhas suspeitas sobre a pontualidade onanista da vizinha de acima, além de fazer
medrar a minha admiração por um ser tão motivado em dar-se prazer. A mim sempre
me deu tanta preguiça!
C.VI
O prédio onde ambos morávamos era um lugar
desolador em inverno. Das numerosas vivendas, apenas estavam ocupadas três ou
quatro, sendo imperceptível o trânsito pelos espaços comuns: os patamares, os
elevadores ou a garagem. Premi o botão e as portas metálicas abriram-se para
mostrar o meu rosto avelhentado no espelho do fundo. Penetrei no habitáculo
justo no momento em que batia a porta da rua. Coloquei a mão na célula fotoelétrica
para evitar que se fecharam as portas. Quando aquela rapariga véu que ia
partilhar o elevador surpreendeu-se tanto coma mim, colorando-lhe as suas
façulas um assomo de rubor. Vestia um uniforme que reconheci ao momento e foi
então que lembrei a sua presença junto ao posto de frutas do supermercado da
esquina. Eu sou alérgico a numerosas frutas, nomeadamente aquelas que têm pelo,
às tropicais e alguma mais que nem sei, assim que procuro não me acercar
demasiado. Só compro maçãs que ela, em várias ocasiões, me pesou amavelmente. Tenho
observado que quando a bicha e muito comprida, reclamam a fruteira pelo alto-falante,
incorporando-se à linha de caixas e deixando o seu posto vago até que só ficam
umas poucas pessoas a espera.
C.VII
Como poderia explicar-vos o momento em que o
seu dedo pecador premeu o número de andar acima do meu. O ruborizado então fui
eu. Sai do elevador e abri a porta, mas no canto de entrar, fiquei na espera de
verificar que a fruteira abria, por sua vez, a porta correta. Todo correu como
estava previsto. Passaram as horas. Aguardei a que o duplo zero substituíra ao
59. Novamente o ruidinho. Começava o espetáculo. Então senti vergonha. Lembrei
a cara da rapariga das maçãs. Pensei que podia ser seu pai. Pensei na sua
vontade de estar soa, de gozar ensimesmada. Pensei em Foucault e nos problemas de
comunidade de Schopenhauer: o velho
professor atirou a sua vizinha Caroline Marquet pelas escadas. Tudo aconteceu subitamente.
Levantei-me e fui para o quarto do lado contrário. Durante os poucos meses que
continuei a morar naquele andar, jamais volvi à minha antiga cama.
C. FINAL
Segui comprando-lhe maçãs. Paulatinamente melhorei
muito das minhas dores de cabeça.
© José Luís do Pico Orjais
Casa dos Mestres. Rianjo.
Fevereiro de 2014.
Sem comentários:
Enviar um comentário