Abstract:
Breve relato sobre curiosos encadeamentos históricos que nos levam a crer na existência na Galiza duma geração poética à que poderíamos chamar Ornitólogos sentimentais, ou melhor dizendo, Os poetas dos melros e a sua relação com o Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra.
Eu quisera ser melrinho
e ter o bico encarnado,
para fazer o meu ninho
no teu cabelo doirado.
Quadra Popular.
Tragédia com três personagens
«Amor!» «Amor!»
-assobiava o Melro
Seu assobio
tinha algo quente
que dava frio
«Amor!» «Amor!»
- A Rosa, indiferente
não respondia
«Amor!» «Amor!»
- A Lua filosófica
sorria
«Amor!» «Amor!»
-assobiava o Melro
-A Rosa, cruelmente
não respondia
Enlouquecido
o pobre Melro
botou-se ao rio
De indiferente
a Rosa
passou a presumida
-A Lua
por ser tarde
deitar-se
ia
Ernesto Guerra da Cal Lua de Alem-mar 1959
Este formoso poema de Ernesto Guerra da Cal, dedicado a Fermín Bouza Brey, pertence ao livro Lua de Alem-mar e leva por subtítulo «para ornitólogos sentimentais». Na fina ironia do escritor ferrolano parece esconder-se uma alusão a toda uma geração de poetas herdeiros da poesia de Amado Carvalho e que, por diversos motivos, vão ser protagonistas dum evento pouco ou nada estudado até o momento: o Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra. Este festival celebrou-se entre os anos 1960 e 1967, sendo promotores Antonio Fernández Cid, crítico musical, e Xosé Filgueira Valverde, presidente na altura da câmara pontevedresa.
A mecânica do evento consistia em que compositores espanhóis e portugueses de grande sucesso musicavam um poema dalgum autor galego. Paralelamente, havia um concurso de composição do que saíam partituras premiadas. Durante uns dias, sempre nas datas próximas à festividade de São Bento, pronunciavam-se conferências-concerto, na que se interpretavam as obras encomendadas, as do concurso e outras de carácter histórico como ilustração às palestras.
Ernesto Guerra da Cal foi o autor dalgum desses poemas musicados, sendo a sua participação estudada por mim, em parceria com Isabel Rei e Joám Trillo, em dois trabalhos que sairão do prelo em breve. Mas além do poeta ferrolano, houve outros coetâneos que também participaram com seus versos no festival e aos que poderíamos chamar os Poetas dos Melros, dado que todos eles foram rapsodas deste passarinho de plumagem escura e bico amarelo.
Comecemos pelo próprio Guerra da Cal. O poema acima transcrito e titulado “Tragédia com três personagens” está incluído num grupo de seis poemas cujo título genérico é Cançonetas do Amor em Clave de Lua. Este pequeno conjunto tem muitas das características que Méndez Ferrín atribui à por ele chamada geração do 1936, como o neotrovadorismo, influência de Bouza Brey, ou o hilozoísmo/imaginismo, de Amado Carballo. Tanto Bouza Brey como Amado Carballo foram distintos Ornitólogos Sentimentais, sobrevoando o seu parnaso particular lavandeiras, rouxinóis, pintassilgos e, como não, algum melrinho.
«Fugiram as badaladas
ao acordar a manhã,
entre xílgaros e melros
pelo mato a rebuldar.»
Amado Carballo “Romage” Proel 1927
«Que não fujam os melros que fazem o ninho
no mais mesto curruncho dos teus verdores:
esgarçar-te-ei as polas muito amodinho
p[a]ra fazer um feitiço p[a]ros meus amores»
F. Bouza Brey Nós nº 12, 1922
«Todo o que é lírio, todo o que é melro
esfolar-se-á pelos campos galegos!»
F. Bouza Brey Nau Senlheira 1933
Ambos os dois poetas, Bouza Brey e Amado Carballo, foram musicados pelos compositores do Festival de la Canción Gallega, nomeadamente este último, cujo poema Ponte Vedra tornou-se num autêntico standard.
Porém, os mais significados melristas pertencem à geração do 36, nascidos por volta do 1910.
De entre todos eles, Xosé Mª Álvarez Blázquez teve um especial protagonismo no Festival, sendo um palestrante fixo das conferências-concerto. Os seus relatórios versaram sobre temas muito diversos, como as cantigas medievais ou os cantos de natal, estando sempre acompanhados de exemplos musicais. Também considero que deve atribuir-se lhe ser o primeiro em pôr o foco sobre o humilde melro, humanizando-o e vestindo-o com toda a sua roupagem simbólica:
O melro poeta
Da gorja algareira
do melro lançal
fugiam as horas
colhidas das mãos.
Co[m ]as suas moinheiras
e os seus alalás
a todas as melras
ia namorar.
Na pola mais alta
do meu salgueiral
morreu o poeta:
no papo, nem grão!
Ponte Vedra, 7-VI-1932
Ainda maior presença tem o melro na obra de Emilio Álvarez Blázquez, irmão de Xosé Maria e que também estivo muito envolvido na história pública e privada do Festival de la Canción. Ele escreveu coisas tão formosas como estas:
Cantaram os melros
e haverá um arzinho
entre os amieiros.
Emilio Álvarz Blázquez “Bico” Poemas de ti e de mim 1949
Meu reino não é desta árvore,
disse o melro, e pus em cruz
as asas sobre a paisagem...
Emilio Álvarez Blázquez O tempo desancorado 1988
Contudo, o poeta mais devoto dos melros é o Rianjeiro Faustino Rey Romero, o qual mesmo escreveu uma monografia poética sobre este passarinho, Escolania de Melros. O livro consta de vinte sonetos cujo protagonista é sempre a ave de pena negra.
O Melro
Prestidigitador de melodias,
que, sem cânon saber nem seguir pauta,
cantando a reo, nunca te extravias
no ar do rimo, voadora flauta.
Diz, que arame subtil é esse em que enfias
como doas de ouro a nota exata?
De que mestre aprendes-te a que assobias,
melodia lançal, música intacta?
Foste anjo de Deus? Pude ser isso!
Ou pássaro cantor no Paraíso,
onde a dita perfeita o Senhor forja?
Anjo foras, se, em vez de negra pluma,
asas brancas tiveras como a espuma,
pois é de anjo canora a tua gorja.
Faustino Rey Romero Escolania de melros 1959
Resulta evidente a influência de O melro poeta de Xosé Maria Álvarez Blázquez neste soneto do padre nado em Isorna. Mesmo palavras como lançal ou gorja, poderiam ser os restos fósseis que demonstrem tal genealogia.
Desconheço a relação certa entre Faustino Rey Romero e Xosé Maria Álvarez Blázquez, nem sei se esta foi estudada a dia de hoje por algum dos biógrafos de ambos escritores, mas cabe supor que esta existiu e foi intensa. Uma das razões que me levam a pensar assim tem a ver com os próprios biodados do escritor rianjeiro.
Faustino Rey Romero nasceu o 27 de outubro de 1924, pelo que por idade está algo mais próximo a Emilio Álvarez Blázquez, nado no 1919, que a Xosé María, do 1915. Depois de estudar no convento de Herbão, o seminário de Madrid e o de Ourense, ordena-se padre no de Tui em 1948. Desde esse mesmo momento a sua vida passa a se desenvolver por terras do sul da Galiza, como as freguesias de Cela (Mos), Barcala (Arbo), Tameiga (Mos), A Guia (Tui), São João de Amorim... Vários dos seus livros Doas de vidro 1951 e Quatro sonetos ao destino duma rosa, 1952, foram editados na imprensa Tip. Rexional de Tui.
Uma relação tão intensa dum poeta com a cidade de Tui não deveu ser ignorada por dois dos bates tudenses mais insignes, Xosé Maria e Emilio Álvarez Blázquez.
Algum poema de Rey Romero também foi musicado no Festival de la Canción. Eu tenho localizados duas partituras, uma do compositor português Frederico de Freitas e outra do galego Groba.
A de Frederico de Freitas faz parte dum álbum titulado 10 canções galegas, do que já falei na postagem anterior. A inclusão dum poema do Rey Romero de lado de outros de Amado Carballo, Bouza Brey, Xosé Maria Álvarez Blázquez e do seu irmão Emilio põe um trilho musical inigualável a geração dos ornitólogos sentimentais.
Por último e como colofão a esta postagem, mais uma cadeia de casualidades melricas. Faustino Rey Romero tem um soneto titulado:
O melro que lhe cantou a eternidade a São Ero de Armenteira.
Por acalmar uma amorosa queixa,
por adoçar de fera ausência o agre,
apreixaste o tempo na madeixa
do teu canto uma noite de milagre.
Não renderam três séculos um segundo.
Tao prodigioso foi teu rechouchio,
que às ditosas estâncias do trasmundo
daquele Santo subiste o alvedrio.
Foste em comparação como a escada
que véu Jacob unindo terra e céu,
mas, em vez de anjos, de música baixada.
Tu semeavas eternal semente,
e o Santo estava de si mesmo alheio,
enquanto cantavas milagrosamente.
O logótipo do Festival de la Canción Gallega foi feito por Agustín Portela Paz, ilustrador do Museu de Ponte Vedra e pai do famoso arquiteto César Portela e nele pode ver-se ao Santo Ero de lado do pássaro cantor.
Este mesmo desenhador fez as capas do livro de Xosé Maria e Emilio Álvarez Blázquez Poemas de ti e de mim, 1949, da Editorial Benito Soto. Por sua vez, Emilio, também fez um poeminha sobre o santo durmichão da Armenteira.
Santo Ero
Louvado seja o Santo
que está no Paraíso
e não queria tanto.
Louvada seja a hora
de Armenteira, que foi
trezentos anos glória.
Louvado o passarinho,
de quem ninguém se lembra
e está no Paraíso....
Emilio Álvarez Blázquez “Tríade de Três Santos” Lar 1953
Enfim...
Orjais ©
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