segunda-feira, 29 de julho de 2019

nº 235 Os Cantores del Instituto e a receção da obra de Lopes-Graça na Galiza. II


Em 1958, os cantores do instituto deram começo a uma série de concertos anuais que tinham lugar no convento de Santa Clara, justo ao remate das celebrações do natal, baixo o titulo genérico de La Despedida del Villancico. Durante toda a década dos 60, quando menos até 1970, entre as numerosas peças interpretadas pelos coristas encontrava-se Eu hei de dar ao menino de Fernando Lopes Graças.
Podemos dar-nos uma ideia do repertório habitual dum concerto de La Despedida lendo o que aparece publicado no seguinte artigo de El Pueblo gallego.

El Pueblo gallego. Ano XXXVII nº 12222 1961 janeiro 7

Pela circunstância que acabo de relatar, cada sete ou oito de janeiro –e durante mais duma década– uma peça do mestre de Tomar era interpretada na cidade de Pontevedra. Considero que isto é algo a valorizar na sua justa medida, sendo conhecedores do receio com que a sua obra era olhada  na península por causas totalmente extramusicais.
Nos mesmos concertos era habitual a presença doutro autor português, Mário de Sampayo Ribeiro (1898-1966), compositor e pedagogo musical, um dos ideólogos do reportório das Mocidades Portuguesas. Sampayo Ribeiro e o seu programa pedagógico de intervenção musical nos escolares sintoniza à perfeição com o impulso que levou a criação dos Cantores del Instituto. Além disso, o mestre teve a oportunidade de transmitir na Galiza as suas ideias musicais através dos diferentes concertos que vai protagonizar:

24 de abril de 1949, coro Polyphonia, lugar: Catedral de Santiago de Compostela.

5 de agosto de 1952, Coro do Centro Universitário de Lisboa, lugar: Salão artesoado de Fonseca. Santiago de Compostela.

6 de agosto de 1952, Coro do Centro Universitário de Lisboa, lugar: Igreja de Santa Maria, Ponte Vedra. [Os concertos de 1952 foram por conta do Centro Universitário das Mocedades Portuguesas]

20 de agosto de 1957, Coro do Centro Universitário de Lisboa, lugar: Praça da Ferraria, Ponte Vedra. [As crónicas dos jornais recolhem o seguinte comentário: «[...]la primera fue iniciada por una canción popular francesa y continuada con música de Franz Gruber, Joaquim Casimiro, Sampayo Ribeiro, Bach y Weber, con predominio del tipo religioso. La segunda parte, la integraba una serie de canciones lusas». À vista deste repertório e da essência escolástica do coro estamos ante um possível modelo para Los cantores?]

Em geral, o repertório dos Cantores combina a música antiga com o folclore galego, espanhol e até mundial, como na série de cantos de natal. Outra das suas características seria o importante peso que tem o elemento religioso, não só na escolha do reportório, senão na participação ativa em atos da liturgia católica, nomeadamente na Páscoa e no Natal. O primeiro diretor dos Cantores, Agustín Isorna Rios (1914-1966), pessoa de grande erudição, formou-se musicalmente entre os mercedários do convento de Poio, abandonando os hábitos para chegar a ser oficial do exército trás o levantamento militar do 36. Ele é quem coloca os alicerces ideo-musicais do coro do Instituto, quem põe os seus conhecimentos paleográficos ao serviço dum repertório onde as cantigas medievais ou a obra do seu amado Tomás Luís de Victoria marcaram presença continuada.

Mas neste ambiente conservador e tradicionalista que pinta a figura de Lopes Graça? Pois contra todo prognóstico, muito.

O primeiro que haveria que dizer é que o génio de Lopes Graça estava fora de toda dúvida. Na imprensa galega apenas há crítica musical ao repertório de Los Cantores, só reflexões gerais sobre a interpretação e afinação das vozes. Mas, às vezes, e lendo entre linhas, podemos tirar alguma reflexão de como se recebia a obra do mestre de Tomar em comparação, por exemplo, com a de Sampayo. Assim, depois da conferência-concerto dada por Filgueira Valverde no Hostal dos Reis Católicos lemos num jornal compostelano: «[…] y un “scalanto” navideño de López Graca (sic), uno de los músicos de mayor calidad del Portugal actual». «[…] en dos versiones portuguesas del maestro Sampayo Ribeiro, tan querido de Galicia». La noche: 19/XII/1957, ano XXXVII, nº 11467
Noutro lugar, o crítico de El pueblo gallego, Justo Calderón dizia: «Para nuestro gusto, marcaron los puntos límite de excelencia e inferioridad en un recital (repetimos) de constante nivel superior, los dos villancicos portugueses (delicioso el de Lopes Graça; dentro de linea más conservadora si exquisitamente sutil el de Sampaio Ribeiro), mirando hacia arriba y, mirando hacia abajo, la balada del catalán Millet, “El cant des aucells”, no por deficiencia de interpretación (verdaderamente loable) si no por menor adaptación al la línea general de la velada». 10/I/1961, Ano XXXVII, nº 12224. Há que lembrar que na altura El Canta dels ocells era um símbolo do republicanismo e do catalanismo no violoncelo de Pau Casals.

Mas, na lista de fãs incondicionais de Lopes Graça temos que situar em primeiro lugar ao bibliófilo e crítico musical Antonio Odriozola (1911-1987). Nos fundos do Museo de Pontevedra encontramos um documento mecanografado datado em 8 de dezembro de 1955 que testemunha claramente isto que acabo de dizer. Trata-se duma carta de Odriozola ao diretor de La Noche, Raimundo García Domínguez (1916-2003), conhecido como Borobó, no que lhe pede que inclua no jornal que dirige um artigo seu sobre Lopes Graça. Em resumo, o texto vem a elogiar o concerto dado em Ponte Vedra pelo Coro de Cámara de Pamplona, e com especial ênfase a peça Encomendação das almas.

«Lopes Graça sabe bien –como Bartok, Strawinsky o Falla– que el folklore puede ser objeto de las más artísticas elaboraciones con tal que el resultado final sea fiel a la esencia de la inspiración popular. Y lo sabe bien porque –como lo fue Bartok– es a la vez un gran compositor y un riguroso y científico recolector de las canciones populares portuguesas y autor de un libro sobre ellas. Por ello, la Encomendação das almas que escuchamos a la Coral de Cámara de Pamplona era una obra lograda y una pieza impresionante que no era posible escuchar con indiferencia sino en plena y emocionante tensión.
En 1951 publicaba Lopes Graça Sete Encomendações das almas para coro mixto a cappella, a las que pertenece la escuchada estos días a los navarros. No está ahora a mi alcance esa partitura ni el Cancioneiro Minhoto de Gonzalo Sampaio para comprobar si las melodías recogidas por este son la base de la obra de Lopes Graça, ni esa comprobación tiene la menor importancia. Lo que sí la tiene, es registrar el extraordinario logro artístico obtenido por el compositor. Aquella inolvidable voz de contralto y las conmovedoras entonaciones del coro, raspaban o sacudían el alma, evocando la impresionante ceremonia nocturna y haciendo acudir las lágrimas a los ojos. Puede estar bien satisfecho Lopes Graça de haber creado una obra genial y de que los navarros la interpreten con sinsuperable maestría.
Estas Encomendações das almas suelen cantarse en el Norte de Portugal, en las noches de Cuaresma, en los cruceros de los caminos que tienen su retablo de las ánimas, como muchos curceros gallegos. (Recuerdese el de la Ramallosa que cierra el libro Rías Bajas de Galicia de Castroviejo). Allí se difunden en el aire nocturno estas Encomendações de conmovedora belleza y con el texto de una de ellas cierro el artículo:

Alerta, alerta,
a vida é curta, a morte é certa!
Os irmãos meus, filhos de María,
pelas almas do Purgatório,
un Padre-Nosso,
uma Ave-Maria!.»

Como curiosidade, Antonio Odriozola faz uns rascunhos das fotografias que quer inserir no corpo do texto, entre as quais, uma muito simpática de Lopes Graça:

Fundo: Antonio Odriozola.
Museo de Pontevedra.

Odriozola e Lopes Graça já se tratavam com anterioridade a este artigo –que segundo creio jamais chegou a ser publicado– já que na dedicatória de Bela Bartok: três apontamento sobre a sua personalidade e a sua obra podemos ler: «Para D. Antonio Odriozola muito cordialmente. Fernando Lopes Graça. Lisboa. Maio, 1954». Fundos do Museo de Pontevedra.

Com tudo, o documento mais interessante, na minha opinião, com o que nos encontramos no Museo de Pontevedra do fundo de Iglesias Vilarelle, compositor e diretor da Coral Polifónica da cidade do Teucroreside numa partitura, as Três líricas castelhanas de Camões, para coro mixto “a cappella”. Esta obra aparece no catálogo do espólio musical com o número LG 25. Segundo o mesmo catálogo foi composta em Lisboa 1954/55 e a sua primeira audição teve lugar o 20 de abril de 1966 pelo coro Gulbenkian. Mas na capa do exemplar do Museo de Pontevedra aparece uma dedicatória: “À Coral Polifónica de Pontevedra. Fernando Lopes Graça”. No contexto de todos os dados achegados neste artigo e no anteriormente publicado no meu blogue, resulta verosímil a hipótese de que as Três líricas castelhanas fossem compostas para ser estreadas pela Polifónica de Pontevedra. Infelizmente, não posso demonstrar que esta estreia tivesse lugar na Galiza antes do 1966, data que aparece no catálogo. O que sim posso é fazer umas pequenas reflexões a respeito.

De Iglesias Vilarelle e a sua relação com Portugal já tenho falado noutras ocasiões, a propósito desse acontecimento histórico como foi a interpretação em 1939 do seu Chucurruchú pela orquestra de câmara da Emissora Nacional, baixo a batuta de Frederico de Freitas. Em qualquer momento desses frequentes encontros luso-galaicos em congressos, convívios, homenagens... Vilarelle pode saber de Lopes Graça, conhecer-se ou, simplesmente, chegar a um acordo puramente profissional. Porem, o fato de serem textos de Camões faz-me pensar, mais uma vez, no factótum de tudo quanto acontece na velha vila, D. José Filgueira Valverde. 

Filgueira Valverde, como Antonio Fernandez-Cid, acostumavam a ilustrar as suas conferências com intervenções musicais. Estas podiam ser de piano solo, piano e voz ou corais, segundo as necessidades ou a disponibilidade dos músicos. Nos anos cinquenta, Filgueira começa a dar palestras em torno a figura duma das suas personagens favoritas: Luís Vaz de Camões. Para entender melhor o fenómeno permitam-me fazer uma pequena cronologia filgueira-camoniana:

–Em 19 de julho de 1952, nos Cursos de Verão da Residencia "La Estila" o título do seu discurso foi El legado de Camões. 

–No 54, quando Lopes Graça começava a escrever as Três líricas castelhanas, Filgueira participava nas Jornadas de literatura, na Corunha, em 21 de julho, com a palestra Camoens, clásico español. 

–Anos mais tarde, no 58, todas estes relatórios farão parte do volume da editorial Labor, Camões, na que o diretor do Museo de Pontevedra, confesso iberista, defende a espanholismo do autor das Lusíadas.

«Pero ni la oriundez gallega, ni el bilingüísmo, ni siquiera el que se hubiese definido él mismo como "hespanhol"... bastarían para clasificarlo entre nuestros clásicos. La razón es muco más honda. Camoens constituye un eslabón en la áurea cadena de la lírica peninsular, cuyo estudio no es posible fragmentar, y, sobre todo, es quien lleva a su culminación la épica. Os lusiadas, como dijo Ramiro de Maeztu, son nuestra epopeya, y "en ellos se halla la expresión cunjunta del genio hispánico en su momento de esplendor... Donde acaban los Lusiadas comienza el Quijote». Camoens, Editorial Labor, S.A., Barcelona. p. 9

Curiosamente, vinte e tantos anos antes, exatamente em 1930, Lopes Graça reflexionava em paralelo sobre o Quixote e Os Lusíadas, fazendo, ao mesmo tempo, "amigos" na intelligentsia do Estado Novo:

«Como Zozaya [que falava do inoportuno de ler o Quixote no ensino primário], nos exclamamos –Os Lusíadas não são leituras para crianças nem para adolescentes... Na escola não se fazem mister nem Vasco de Gama nem Júpiter tonante. Forme-se  primeiro o homem, depois o patriota». Disto e daquilo. Edições Cosmos, Lisboa. p. 143

Por último, as três peças musicadas por Lopes Graça são particularmente estudadas por Filgueira no seu livro Camoens, capítulo XII, pp. 409 e seguintes,  titulado "Camoens, clásico castellano", idêntico cabeçalho que a palestra dada no colégio da Estila em 1954.

Na página 415 podemos ler:

«Excepto uno, atribuído a Boscán, los "motes" escogidos por Camoens son anónimos y proceden de villancicos populares o de villanescas cultas. Estos "motes" de las letrillas castellanas son los siguientes:

Ojos, herido me habéis,
acabad ya de matarme;
mas, muerto, volved a mirarme
por que me resucitéis.

¿Qué veré que me contente?

¿Para qué me dan tormento,
aprovechando tan poco?
Perdido, mas no tan loco
quesescubra lo que siento.
(Con indicación de "Alheio")

De vuestros ojos centellas
que encienden pechos de hielo,
suben por el aire al cielo,
y, en llegando, son estrellas.
("Alheio")

Todo es poco lo posible
("Alheio")

Vos tenéis mi corazón.
("Alheio")

De dentro tengo mi mal
que de fuera no hay señal.
("Alheio")

Amor loco, amor loco
yo por vos, y vos por otro.
("Alheio")

Justa fue mi perdición,
de mis males soy contento;
ya no espero galardón,
pues vuestro merecimiento
satisfizo a mi pasión,
("Trova de Boscán")

Irme quiero, madre,
a aquella galera,
con el marinero,
a ser marinera.

¿Do la mi ventura,
que no veo alguna?

–¿Por qué no miras, Giraldo,
mi zampoña como suena?
–Porque no me mira Elena.
(Villancete Pastoril)» pp. 415-416

[O negrito é meu e indica na sequência de versos os títulos das Três líricas castelhanas de Camões.]

A vista do texto de Filgueira ficam claras duas coisas. Em primeiro lugar as canções não são da autoria de Camões, senão populares, a exceção da de Boscán, e em todo caso recolhidas por ele. E, em segundo lugar, não me cabe muita dúvida de que Lopes Graça conhecia o texto de Filgueira sobre Camões, obviamente na versão da palestra dada na Estila.

Resumindo

Estou na certeza de que existe uma relação íntima entre a Polifónica de Pontevedra, os Cantores do Instituto, Filgueira Valverde e a criação em 1954/55 de Três líricas castelhanas de Camões do compositor português Fernando Lopes Graça. A dedicatória na capa da partitura que se custódia no Museo de Pontevedra é muito esclarecedora, mas nada diz a respeito de se o que se dedica é o exemplar ou a obra. Como hipótese, e aguardo que algum dia isto possa ser demonstrável, deito a ideia de que Três líricas castelhanas de Camões fosse uma encomenda da Polifónica, de Vilarelle ou de Filgueira Valverde para ilustrar as palestras-concerto deste último. Em qualquer caso considero uma honra contar no museu de Ponte Vedra com um manuscrito dedicado do grande Lopes Graça, na satisfação de sentir que algo dele nos pertence.

2 comentários:

isabel rei disse...

Fantástico! Que bom que Lopes-Graça também é nosso. Beijinhos.

Isabel

José Luís do Pico Orjais disse...

Muá!