domingo, 10 de março de 2019

nº 230 Lela. Uma canção à procura de um autor. III

III

A autoria de Lela é um acontecimento mediático digno de estudo. Cada pouco tempo aparece na imprensa alguma nova achega ao fenómeno com titulares tão dramáticos e inexatos como o aparecido apôs da morte de Miguel de Santiago: "El misterio de Lela se va a la tumba" (La Voz de Galicia). As informações acostumam a misturar tudo, esquecendo que opiniões aparentemente contraditórias podem, em ocasiões, simplesmente referir-se a fatos diferentes. Explico-me. 
A respeito de Lela, ou de qualquer outra peça musical, há que diferenciar entre o autor legal e o autor real. A dia de hoje, e depois de muitas horas estudando e investigando, –quase como um detetive ou arqueólogo musical– eu não tenho a menor dúvida que o autor legal de Lela é Mato Hermida, e esta postagem pode afundar nisto ao referir-me, mais adiante, às diferentes gravações históricas. A respeito do autor real só posso dar opiniões, e eu não sou muito disso. Contudo, Mato Hermida pôde ser o autor primário, mas houve outras pessoas, como o próprio Carlos Núnhez, como é óbvio, a quem esta peça deve o seu universalismo.
Mas comecemos por falar dos registos discográficos de Lela.

No princípio está Uruguai.

A primeira questão que cabe sublinhar é que na estreia absoluta de Os velhos não deveram de namorar em 1941, o coro de boticários interpretou Lela usando a melodia de Fonseca, um tema da tuna compostelana de fins do XIX. Isto é muito importante porque esta melodia foi a escolhida por Castelao e, ainda mais, foi a que Castelao tinha na sua cabeça quando compus a letra. Dito doutro modo, Castelao utilizou uma peça de autor desconhecido –suspeitamos que pudera ser de Manuel Valverde– copiando literalmente a melodia e parafraseando a letra ou baseando-se nela para escrever o seu canto de amor a Lela. Parece ser que o desenhador e político rianxeiro era muito afeiçoado a parodiar peças conhecidas mudando-lhes o texto poético. Mato Hermida fez o processo a inversa, conhecia a letra e teve que coloca-la num novo texto musical. 
Em qualquer caso, em 30 de maio de 1941, cantou-se por primeira vez, que nós saibamos, o Lela/Fonseca em Rosario, num concerto do coro Ultreia dirigido por Emilio Pita e em presença do próprio Castelao. Em agosto do mesmo ano é a estreia bonaerense dos Velhos e no mês de outubro a obra viaja a Montevideu. Aqui, em Montevideu, terá lugar a primeira gravação da Lela de Castelao.

a) O primeiro registo discográfico de Lela foi realizado nos estudos de Sondor de Montevideu, empresa fundada em 1938 por Enrique Abal Salvo, uruguaio neto do pontevedrês de São João de Poio, Juan Abal Arosa. A gravação, protagonizada pelo Coro Galego de Montevideu e registadas em discos de 78 r.p.m., foi efetuada em 22 de outubro de 1954. Segundo informação da Sondor, os discos foram comercializados com sobre genérico da empresa.
A versão do Coro Galego de Montevideu é a Lela com melodia de Fonseca e uma letra diferente, ainda que com muitas similitudes, à escrita por Castelao. Como curiosidade dizer que o coro está acompanhado por um acordeão, resultando um conjunto formosíssimo que paga a pena escutar com atenção. A primeira vez que teve aceso ao tema foi graças á amabilidade de Oscar Ibáñez que me mostrou a cópia fornecida pela Deputação de Ponte Vedra. A própria deputação editou-a posteriormente num disco titulado Galicia en 78 rpm.

b) Em ordem cronológica, o seguinte registo foi feito pelo coro Cantigas e Agarimos. Este exemplar é fundamental para a nossa história. Gravado em 1977 ou 1978, em vida portanto de Mato Hermida e Miguel de Santiago, exibe os seguintes créditos na sua contracapa:


Como se pode apreciar, Mato Hermida aparece aqui como autor da música. Este disco foi registado na SGAE, pelo que a entidade tinha, quando menos desde esta época, informação sobre a autoria da peça.
A Lela de Cantigas e Agarimos tem acompanhamento do grupo de pulso e corda da Tuna Universitária, o qual constitui outro dado de grande interesse para a nossa investigação.


c) Uns anos depois, em 1982, uma nova gravação tem como protagonista à Tuna de Santiago. O selo Dial, com produção de Dial Limoeiro, imprime um disco aproveitando a celebração do Ano Santo Jacobeo no que se afirma a propósito da tuna «su buena calidad musical, de amenas rondas y sobre todo de su excelente humor y calor, por supuesto, siempre acompañada de galantería con que estos jovenes tunos y "tunantes" hacen gala ante una bella damisela». Toda uma declaração de princípios. Mas o caso é que nesta gravação há versões duma qualidade mais que respeitável, como A Muinheira de Chantada, verdadeiramente excecional. Na cara B, justo depois de Bajo la doble águila, de Wagner, um clássico das bandas de música de princípios do século XX, e antes de Fonseca aparece Lela de R. Mato Hermida e A. R. Castelao.


A voz solista de Manolito o Tuno, Manuel Vicente Blanco Iglesias, que na altura era um mocinho de 45 anos, tem o tom e a textura perfeita para o boticário imaginado por Castelao. Mas o dado quiçá de maior importância está nos créditos onde figura o nome do assessor e arranjador musical.


Como se vê na imagem anterior, fragmento da contracapa do disco da Tuna Compostelana, o diretor musical foi o guitarrista Isaac Vázquez Alvite, nascido em Compostela o 14 de novembro de 1942 e finado em 21 de agosto de 1999. De estar vivo hoje, ele seria a pessoa melhor informada para aclarar qualquer dúvida sobre a génese e desenvolvimento do fenómeno Lela. Neno prodígio, conheceu a Andrés Segovia nos cursos de Música em Compostela, sendo desde muito novo colaborador e diretor da rondalha de Cantigas e Agarimos, coro denominado durante o franquismo, Rosalia de Castro. Formou e dirigiu a numerosos tunos, pelo que ainda que não apareça nos créditos do disco de Cantigas que comentamos no apartado b), ele foi o responsável, com toda certeza, do grupo de cordas. 
Por último, resulta verdadeiramente curioso que Lela e Fonseca vaiam juntinhas, uma a continuação da outra, como se os tunos fossem conscientes da relação que existe entre ambas peças.


d) Só um ano depois da gravação do disco da estudiantina compostelana aparece Nós de Xocaloma. O grupo de Carvalho faz uma versão de Lela com a voz inconfundível de Dolores Platas. Nele apreciam-se ainda os ecos do arranjo estudantil de Vázquez Alvite, e não podia ser doutro modo. 
Um dos fundadores de Xocaloma, o prestigioso psiquiatra Xoán Carlos Díaz del Valle, foi no seu dia tuno e aluno de Alvite. O doutor Díaz lembra que ele mesmo levou a peça ao grupo tal e como a apreendera na tuna. Suponho que é por isso que na contracapa do disco os créditos de Lela dão-nos uma nova surpresa, já que quem aparece como autor é Isaac Vázquez Alvite, sendo a peça registada na SGAE com o código 5.208.123.


e) E, porfim, em 1996 chega um dos mais grandes sucessos da história da música galega, o disco A Irmandade das Estrelas, do gaiteiro viguês Carlos Núñez. O seu Lela, na voz de Dulce Pontes, é já um ícone da nossa música, o grande pulo que lhe faltava a canção de Castelao para universalizar-se. Mas é também este disco a origem de toda a polémica sobre a autoria da melodia do que no seu dia pretendia ser tão só um coro de boticários, evocador e saudoso. Depois duma investigação exaustiva e de ter-se entrevistado com as pessoas mais significativas desta história quase de serie negra, Carlos Núñez omite o nome de Mato Hermida ou de qualquer outro autor nos créditos. Concretamente o que aparece é um desolador «9) Letra: Alfonso R. Castelao». Lembremos que em 1996 ainda estava vivo Vázquez Alvite. Por último dizer que na SGAE existe uma Lela registada com o número 3.259.928 cujos autores seriam José Miguel Sánchez Chouza (Miguel de Santiago) e Alfonso Daniel Rodríguez Castelao, e da parte legítima correspondente a arranjos, Carlos Núñez Muñoz. 

Para concluir.

Depois deste repasso à discografia leliana gostava de fazer algumas aclarações. 
Em primeiro lugar eu já declarei que na minha opinião não tenho dúvida do autor legal. Mato Hermida tem da sua parte a tradição e a documentação necessária para que ninguém duvide sobre a sua autoria. Outra coisa é a analise que podamos fazer da sua obra desde um aspeto puramente musical e na evolução e popularização que esta sofreu logo de ser estreada por Cantigas na representação de Os velhos
Acostuma-se a dizer que Mato Hermida desconhecia as músicas que se interpretaram na representação bonaerense. Desde um ponto de vista estritamente musical isto é de todo impossível. Só há que ver o estudo paradigmático de Fonseca e Lela (postagem nº 201), para comprovar como ambas estão profundamente filiadas. Não é possível compor o Lela de Mato Hermida sem ter como patrão o Lela/Fonseca. Obviamente não estou a falar de plágio, palavra que escutei nalguma conversa apoiando o interlocutor o seu discurso nas minhas investigações. Em todo caso seria tão plagiador como o Chaikovski do Capricho italiano ou o Beethoven das variações Molinara. Colher um tema que com certeza considerava popular como Fonseca e parafrasea-lo ou simplesmente inspirar-se nele é algo absolutamente legítimo e nada pejorativo para o prestígio de uma obra.
Dito isto, é evidente que a Lela de Mato Hermida não teria chegado a ser o que é hoje de não passar pelo crisol compositivo de Isaac Vázquez Alvite. Não seria de espantar mesmo que no mesmo intre em que Mato compunha o coro dos boticários conta-se com o assessoramento permanente de Alvite. Seria algo natural sendo um o diretor do coral e o outro, rondalhista colaborador da entidade polifónica. Para que transcendesse à estreia dos Velhos em 1961, foi muito importante que a tuna a incorporasse ao seu reportório e a popularizasse nas rondas santiaguesas. Graças à tuna é que chegou a Xocaloma, grupo que gozou de grande popularidade na altura. Eu mesmo, um músico iniciado nos afastados oitenta, foi ao grupo carvalhês a quem escutei por vez primeira o Lela de Castelao.
O debate que hoje continua a haver sobre o autor de Lela existe só porque Carlos Núñez a incluiu no seu trabalho A Irmandade das Estrelas. Ninguém se ia pelejar pelos créditos do disco de Cantigas ou da tuna, mas Carlos elevou a Lela à categoria de standard musical. Dulce Pontes vestiu a velha cantiga incidental com roupagens de ícone universal, modificando a sua melodia nuns giros pessoais que vieram para ficar, soando a melodia de Mato Hermida, na atualidade, mesmo um bocado esquisita. Estou certo que dentro de cem anos Lela seguirá a ser cantada sem que quase ninguém conheça o nome do seu autor e esta polémica será apenas lembrada por algum friki em tudo parecido a mim. Ou é que os que nos nossos tempos cantam La paloma, essa que diz «si a tu ventana llega una paloma...» conhecem que foi composta por Iradier faz mais de 150 anos? Quando o povo se apropria duma canção, os autores ficam apenas como uma curiosidade historiográfica.

Epílogo.

Uma das certezas que teve do grande trabalho de investigação que Carlos Núñez fez na altura sobre a autoria de Lela é que muitas das pessoas às que eu entrevistei ou das que pude consultar os seus arquivos, já foram entrevistadas pelo gaiteiro viguês. Um exemplo disto que acabo de contar foi a visita que Carlos fez a Manuel Vicente "Chapí", guitarrista rianxeiro, autor duma versão original de Lela que nada tem a ver com Fonseca ou a de Mato Hermida. D, Manuel, barbeiro e rondalhista de grande sensibilidade, ficou impressionado com Carlos Núñez ata tal ponto que lhe escreveu um poema algo ingénuo, mas encantador, do qual conservamos uma cópia no Fondo Local de Música do Concelho de Rianxo. Fique aqui como epílogo perfeito à história de Lela, uma canção a procura de autor.




Adenda

Depois de terminado este artigo recebi um presente inesperado. Rafael Abal, proprietário da empresa Sondor de Montevideu, Uruguay, enviou-me o mp3 de Lela, assim como uma imagem da etiqueta e o envelope original. O meu agradecimento mais sincero. Comparto com vós, lembrando que esta é a melodia escolhida por Castelao e a primeira gravação de Lela da que temos conhecimento.



Curiosamente, noutro disco gravado pelo mesmo coro nos estudos Sondor, gravouse Como capeas o vento! uma foliada intimamente relacionada com Rianxo, já que no estribilho podemos escutar: «e vão para a banda do mar, porque em Rianxo algo vão pescar.»



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