A casa do Pintor.
Uma história quase verdadeira.
A casa do Pintor erguia-se na rua mais cêntrica da Cidade. Uma rua cheínha de baixos comerciais com vitrinas enormes, reclamo de sapatarias, fotógrafos e lojas de roupa. Mas o prédio no que morava o Pintor era estreito e vetusto, quiçá dos tempos em que os dinheiros da emigração fizeram dum pequeno burgo marinheiro a mais grande metrópole do Reino.
Com o papelinho na mão fui contando os números ímpares até chegarem ao portal indicado. Apertei o interfone e foi nesse mesmo instante que cai na conta de que não levava nada preparado, nada razoável que lhe dizer à pessoa que falava desde o outro lado.
-Quem é? inquiriu uma voz feminina.
-Sou o Mário, está o Pintor?
Para a minha surpresa o automatismo ativou-se de imediato sem que mediara mais explicação. Uns segundos mais tarde partilhava mesa redonda com o meu admirado pintor, um velhote adorável de cabelos brancos baixo um boina puída pelo uso quase perpétuo.
-E tu a que te dedicas?
-Sou músico e estudo na Universidade.
-Pois ainda bem que és músico, senão quanto tempinho perdido, meu neno!
Passaram vários minutos dedicados pelo Pintor a me interrogar sobre as minhas afeições, a minha idade, a minha origem... até chegarem a pergunta que deveria ter sido -e não foi- a primeira:
-Então, por que você veio onda mim?
-Conheço muito bem a sua obra e agora queria conhece-lo a voçê. Enquanto nascia a resposta e a escutava tal e como saia dos meus lábios, percebia bem às claras o esquisita que soava. Mas, curiosamente, o Pintor pareceu gostar imenso do meu barroquismo durante todo o que levávamos de conversa.
A casa na que me encontrava estava decorada com sumo gosto, móveis de carvalho com linhas art nouveau muito sofisticadas, papel pintado com pássaros e motivos florais nas paredes e vários vasos com margaridas de longo talho sobre tapetes de croché. Quando a mulher do Pintor nos serviu um café e vi o seu rosto cor-de-rosa moldurado com cabelos brancos, o seu avental e a travessa de prata, pareceu-me estar ante Mrs. Hudson no 221B de Baker Street.
Foi depois de admirar alguns quadros magníficos pendurados com aparente desordem nos vãos abertos entre o mobiliário, que o Pintor colocou-me a mão no ombreiro e disse-me:
–Oi, tu não conheces a minha Lolinha?
–Acho que não, contestei, sem saber de que caráfio me estava a falar.
–Anda, pois vem que cha apresento.
Abriu uma porta e penetramos num quarto interior iluminado com a escassa claridade que penetrava por uma janela translúcida. Os meus olhos foram devagarinho afazendo-se a aquela ténue luz que me permitia perceber vultos apenas intuídos. A minha atenção concentrou-se imediatamente sobre um corpo que jazia sobre a cama. Achinei os olhos até adivinhar uma silueta, ficando paralisado ao compreender que se tratava duma mulher nua, deitada de costas, formando com os seus braços e pernas uma espécie de homem de Vitrúbio de longos cabelos. Então o Pintor se achegou a mesa de cabeceira e acendeu uma lâmpada que iluminou a estância dum vermelho prostibular.
Percebi, finalmente, que aquele vulto sobre o cobertor era uma boneca insuflável de cabelos loiros, olhos apestanados e um contínuo O nos seus beiços.
–Linda, não sim? É cuspidinha a Brigitte Bardot.
-Pois tem-che um ar, sim, disse sem vontade, ainda que o pareça, de ser irónico.
Botamos algum tempo mais contemplando aquela bóia sexual, comentando a sua beleza, a sua paciência no posado e até a finura do seu cútis.
Depois de conhecer a Lolinha saudei a patroa da casa, dei uma aperta ao Pintor e sai esqueiras abaixo até o pé da rua, meditando o que se acontecera e compondo na minha cabeça um relato coerente para contar algum dia. Mas nunca até agora contei, quiçá porque aos poucos meses o Pintor morreu e me parecia um assunto demasiado privado para andar espalhando.
Quando a morte ocorreu, o maestro estava a trabalhar numa série de quadros figurativos, uma última etapa cheia de cor e pinceladas de grossos traços. A Junta do Reino acordou fazer uma exposição que amostrara o material, algumas obras terminadas e outras simples esboços. Acheguei-me até a sala e caminhei pelos seus corredores, saudoso do Pintor com o que apenas comparti uma tarde de conversa.
Antes de deixar o local não pude reprimir um sorriso ao ver o retrato duma moça loira com um eterno O entre os seus lábios.
2 comentários:
Impressionante. Magnífico, caro. E fico a pensar no que chegamos a fazer por não aprendermos a nos comunicar sexualmente. Por mais bonita e suave que for a boneca, quem não deseja o suor e o cheiro de um corpo amoroso com vida e pensamento próprio? Mas, agora, também isso já não importa. Fica a obra. Beijos e abraços.
Com o suor, ao igual que com o amor, às vezes há que conformar-se com o próprio. Beijão.
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