Ao
meu amigo Ernesto Vázquez Sousa,
perito em livromancias,
em agradecimento pelo seu Sarmiento.
Os papeis de
Humboldt
film noir.
Caro Roberto:
É de supor que depois de tantos anos não
esperavas receber uma carta minha. O de escrever cartas resulta tão vintage! Mesmo duvidava de que
continuassem a existir os selos.
A razão de que te escreva é que antes do
acontecido em julho do 2004 tu eras o meu melhor amigo –quiçá o único– uma
pessoa pela qual, na altura, sentia autêntica devoção. Depois de aquilo jamais
voltamos a falar. Não teve a oportunidade de te dar a minha opinião e, com
certeza, terás lido ou escutado muita merda sobre mim.
Como sabes, a minha paixão foi de sempre o
documentalismo. Andei nos arquivos musicais na procura de velhas partituras, como
um arqueólogo de sons ocultos baixo décadas –às vezes séculos– de desinteresse.
Nisso ocupava as minhas vacações, verões inteiros viajando de arquivo em arquivo
na procura do objeto cobiçado. Quando encontrava algo bom botava dias, às vezes
semanas, transcrevendo, documentando e finalmente redigindo para logo enviar os
meus artigos a revistas especializadas, portais de internet, associações,
universidades... Só algum daqueles trabalhos foi publicado e destes, apenas um
par tiveram certa repercussão na comunidade científica.
Considerava que ainda não dera com o documento
que me catapultasse ao cume dos grandes investigadores, é dizer, esse seleto
grupo de indivíduos aos que só conhece outra minoria ansiosa de acompanhá-los.
Mas no meu foro íntimo sabia que nunca seria um deles. Eu não jogava na sua
liga. O meu lugar ficava longe do seu mundinho académico, sendo apenas um triste
funcionário, um freelancer
indocumentado de baixa estofa.
Aquela manhã abri a base de dados dum dos
computadores da Sala de Investigadores e bastou-me media hora para comprovar
que já tinha consultado todo o fundo musical. Não dava para ir a outro lugar.
Estava canso de pegar no carro e a minha incipiente migranha recomendava-me prescindir
de tomar mais cafés. Far-me-ia bem sair dar um passeio pela cidade. Comecei a
recolher as minhas coisas, peguei no caderno e quando procedia a fecha-lo vi umas
assinaturas que remetiam a velhos livros do fundo geral ainda não consultados.
Um deles resultou ser um cancioneirinho sem
qualquer interesse para mim. Li algum dos poemas anónimos que continha e
comecei a inspecionar o volume quase com uma atitude forense. Suponho que todo
documentalista sonhou alguma vez com encontrar-se um pergaminho Vindel nas
guardas dum livro de Cícero. Eu também. Assim quando chegava as minhas mãos um
velho volume procurava nele notas marginais, recortes escondidos entre as suas
folhas e como não, escritos ocultos nas suas guardas. O cancioneirinho do
século XVIII que estava a inspecionar não parecia guardar nenhum secreto. Então
reparei no groso papel que envolvia o volume. Era um papel de tina sobre o qual
escreveram o título e o autor da obra, utilizando, com tal motivo, belíssimas
letras manuscritas. As dobras estavam muito ajustadas, mas não coladas, pelo
que era possível desprende-las. Numa manhã de julho, na solidão da sala de
investigadores, deixando-me levar pelo meu instinto, cometi a temeridade de ir
à procura do meu Vindel. Na sua cara oculta, aquele papel resultou ser uma
folha manuscrita pautada na que foram registadas cinco canções galegas e cinco
castelhanas. Também havia um título e o nome do autor: Galizisch
und Kastilisch Songs. Wilhelm Von Humboldt. 1799.
Quando vi o nome do grande linguista alemão
lembrei de imediato os papeis de Humboldt,
hoje conservados na Biblioteca Jagiellonska da Uniwersvtet
Jagiellonski de Cracovia. Entre esses documentos encontra-se o titulado A música no País Vasco, fruto do trabalho de campo feito por
Humboldt nas suas viagens a Euskadi. Mas em 1799 o alemão percorre o norte de
Espanha desde Vitória até Madrid e quem sabe se no caminho se encontrou com
jornaleiros galegos, cómicos da légua, com aguadeiros em Madrid... Entres as
quadras recolhidas está esta que muitas vezes lembro nas minhas penosas noites
de insónia:
Mininha bunita
o pé do castelo,
se levares mala noite
tamém a eu levo.
Num ato reflexo e depois de valorizar a
situação brevemente, –como bom cidadão que acabava de desnudar um livro do
século XVIII– fui comunicar o achado à funcionária que recolhia os pedidos
detrás do balcão.
A primeira reação desta foi de espanto.
Procurei explicar-me, mas as minhas tentativas resultaram infrutuosas. Com o
livro numa mão e o envoltório na outra, a veterana arquivista foi onda a sua
superiora, uma mocinha de aparência quase adolescente recentemente nomeada
Diretora do Arquivo. Imediatamente fui conduzido onda ela que me recebeu com
semblante sério e palavras graves.
–O senhor sabe o que fiz.
–Pois sim. Acabo de fazer uma grande descoberta
para a historiografia musical galega, e mesmo europeia, comentei-lhe sem
valorizar muito o significado exato do que acabava de dizer.
–E você um bocadinho presunçoso, não é? Falou a
Chefa, e dos seus beiços assomou o seu primeiro sorriso.
Aquela careta não resolveu o meu incomodo,
ainda mais, provocou que deixara de ver a diretora do arquivo como uma Lolita
de bata branca para se converter num rosto calculador e dominante.
–O senhor acaba de manipular um documento sem a
nossa autorização para, além disso, causar-lhe danos tal vez irreparáveis. Vou
pôr o caso em conhecimento do nosso serviço jurídico e já veremos que resolução
tomamos ao respeito. Pelo momento pedir-lhe-ei que abandone o arquivo e não
volte até ter notícias nossas.
Durante alguns minutos mais tentei defender-me.
Disse-lhe que levava décadas investigando, que era o que se denomina um rato de
bilbioteca. Disse-lhe que nessa mesma casa havia muitos empregados que me
conheciam de sobra e que no posto que ela ocupava eu já tivera ocasião de ver
passar a diferentes pessoas. Disse-lhe que jamais deteriorara nada e que tinha
que me estar agradecida por ter descoberto nada menos que um dos Papeis de
Humboldt do que até agora ninguém sabia rem.
–Humboldt o naturalista? Foi a única
interrupção que a Chefa do Arquivo fez ao meu desiderato.
–Não, esse é o irmão. Este é Wilhelm, filólogo
e um dos primeiros folcloristas em fazer recolhas na Península Ibérica, disse esperançado
de que por fim estávamos a falar ao caso.
Um silêncio valorativo para espetar-me a queima-roupa:
–Repito. Vaiasse à sua casa e já nos poremos em
contacto com Você.
Fui à sala, recolhi as minhas coisas e,
aturdido, caminhei pelas ruas da Zona Velha na procura do meu carro. Sentia-me
eufórico de ter feito o descobrimento da minha vida, mas a conversa com a Chefa
do Arquivo converteu o meu cérebro num aparelho em muito mau estado. Procurei
nos petos um paracetamol e só encontrei um blíster vazio que me causou um corte
diminuto no polegar e um não tão pequeno síndrome de abstinência. Numa das
minhas pálpebras notei que começava a bulir o tique nervoso associado aos meus
processos migranhosos. Procurei uma
farmácia, comprei uma caixinha e me traguei uma grama da minha droga favorita com
um grolinho da água fresca que manava dum torno da fonte da Praza.
Aguardei uns dias uma chamada do Arquivo, mas não
existiu. Uma semana mais tarde vi no jornal a grande nova. No restauro dum
livro do Arquivo Provincial fora encontrado um documento cujo autor resultou
ser Wilhelm Humboldt. Segundo se contava no artigo, o livro tivera de ser tratado
logo de que um investigador o deteriorara selvagemmente. Assim, os restauradores
decataram-se de que o volume estava protegido por um papel que continha umas
partituras e uns textos. Posto o feito em conhecimento da Diretora do Arquivo,
esta de seguido percebeu-se da importância do achádego.
Na foto aparecia a máxima responsável junto com
o presidente da Deputação.
Para o outro dia, cheguei ao Arquivo a primeira
hora depois de toda uma noite sem conseguir fechar um olho. Devido às muitas
visitas que realizara a esse centro, havia entre o funcionário do controlo de
entrada e mais eu uma certa cordialidade. Escrevi o meu nome e caminhei
apresado até a sala de investigadores. Detrás do balcão estava a mesma mulher
que me atendera o outro dia. Acheguei-me a ela e pedi ver a Diretora do
Arquivo. A funcionária disse-me que não me podia atender, seica estava muito
ocupada. As minhas súplicas foram elevando o seu tono até se converter em
imperativos. Os gritos tinham que se escutar na oficina da Diretora. Algum
usuário da Sala fazia-me gestos de que calasse ou fosse gritar fora. Quando já
estava a ponto de agredir a algum dos meus colegas chegou a Chefa acompanhada
do funcionário do Controlo da Entrada o qual, levantado da sua cadeira,
resultou ter uma envergadura intimidante. Juntos, o vigilante simiesco e a
jovem diretora lembraram-me a um Quasimodo e a sua Esmeralda.
–Acalme-se, e faça o favor de acompanharmo-nos.
Segui a estranha parelha até uma sala próxima.
A Diretora, sem modificar um bocado o seu gesto hierático disse-me:
–A partir deste momento você tem proibida a
entrada nesta instituição.
Não foi por medo ao gigante, mais bem foi a
humilhação a que me esmagou como a um inseto e me deixou sem recursos, sem
palavras. Sai daquele arquivo convencido de que as partes mais cristalinas do
meu cérebro foram definitivamente feitas cacos.
Comecei a caminhar pelo Casco Velho. Várias
vezes os meus passos reconduziram-me à porta do arquivo como um penitente,
atormentado pela migranha e a luminosidade dolorosa duma manhã soalheira do mês
de julho. Caminhava enjoado, médio aturdido por ter consumido mais gramas do
habitual. No cristal duma montra vi o meu rosto refletido. Estava avelhantado,
pálido, sentia lástima de mim mesmo, de ver-me naquele estado. Então pensei em ligar
para Laura. Ela sempre me cuida, sempre está para me proteger... Se a tivesse
ligado ter-me-ia dito que a aguardasse nalgum bar, que fosse ao banheiro, que abrira
a torneira e molhara a frente e a nuca com água fresca, que me sentasse numa
mesa longe da janela, que não tomasse mais pastilhas... Mas não liguei.
Deveram passar horas e uma vez mais estava a
poucos metros da porta do arquivo, encostado a uma parede protegida pela sombra
do prédio vizinho. Senti que me doía o polegar. Todo o tempo que vaguei pelo
empedrado a minha mão direita deveu estar a manipular o botãozinho duma caneta
de inoxcrom. Só agora escutava o seu clique metálico. A dor do polegar era
insignificante comparado com o da minha cabeça. Então aconteceu. Da porta do arquivo
saiu a Diretora deixando trás de sim os brilhos da sua longa cabeleira loura. Não o pensei. Não foi premeditado. Acheguei-me
a ela e com um certeiro golpe cravei a minha caneta na sua garganta, tão
violentamente que a atravessei como se fosse de manteiga. Os seus olhos
ficaram, por sua vez, cravados nos meus. Os seus lábios deixaram ver uns dentes
branquíssimos e uma língua tão amável que teve desejos de a beijar. Quiçá o
tivesse feito de não brotar da sua boca um coágulo de sangue que me pareceu piche,
dum preto e espessura impróprio daquela princesinha. Caiu ao chão como um peso
morto, como o que era. Então eu comecei a caminhar, agora sem rumo, cara a
nenhuma parte. Levaria vinte ou trinta metros percorridos quando senti um forte
golpe nas minhas costas. Depois do abalo estava tirado no chão, sentindo na
minha cara o calor das lousas aquecidas pelo sol.
De resto já sabes. Um juízo. Uma condena. Sei
que cometi um crime terrível, mas não sinto arrependimento. Nunca antes
cometera um assassinato e nunca mais volverei a cometer outro, mas desse, repito,
não me arrependo.
No cárcere não se está tão mal. Estou ao cargo
da biblioteca e contra o que caberia pensar, está magnificamente dotada. Leio
todo o dia, algo que na rua jamais pude fazer. Laura continua a cuidar-me. Pelo
meu aniversário presenteou-me Disparem sobre o pianista, edição de luxo, do meu adorado Truffeau. E seria uma fina
ironia pela sua parte? Que asneira perguntar-te qualquer coisa! Bem sei que tu
jamais contestarás a esta carta. Pobre Laura, como pode querer-me tanto alguém
que nunca me amou.
Mais nada. Muitas saudades.
Mário
1 comentário:
Ficaria bem no Llibreter assassi de Barcelona do Miquel i Planas... Obrigado... Por vezes os assassinatos imaginarios nos livram de leva- los a pratica... ;)
Saudades... Ernesto
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