sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

nº 193 Um maço de notas furadas.


«Siempre imagine que el paraíso sería algún tipo de biblioteca.»
Jorge Luís Borges

A S. que me aprendeu uma história parecida.

A Prima A acariciava com a ponta do seu dedo indicador as etiquetas. AMB, AND, ANS, BOR, ANT... Olha ai! Que faz este BOR extraviado? Quem o colocaria neste lugar? Sei lá. Algum leitor não iniciado ou tal vez alguém que considerou irrelevante o cognome do poeta e tirou de estilo, de gosto pessoal, de ano ou país de nascimento para juntar este com aquele outro. A Prima A tinha bem de tempo para pensar nestas coisas por enquanto «fatigava andeis», como diria o seu adorado Borges —por acaso, aquele volume extravagante era do poeta argentino—. A citação é que tal vez não fosse dele. Lera-lha ao Vila-Matas e é sabido que desse farsante um não se deveria fiar jamais. Uma vez que o livro estava em suas mãos, a Prima A não foi quem de devolvê-lo ao seu lugar certinho sem abri-lo para ler qualquer verso.
¿Que podemos buscar en el altillo
sino lo que amontona el desorden?

Altillo soou-lhe a Prima A démodé, chegando à conclusão de os faiados hoje em dia nada ter a ver com os de antanho. Aqueles versos evocaram na Prima A o desvão da casa dos avôs, um lugar ao que subia com a Prima B quando as famílias se juntavam para celebrar ou para trabalhar nas leiras. As duas se adentravam no país das aranheiras e dos ratos, sem medos, sem fobias, na procura de tesouros no fundo das gavetas, dos armários ou das dúzias de caixas que deviam ser contemporâneas desses mouros dos que tanto nos falava a avozinha. Algumas vezes encontravam pequenas caixas de metal ou cofrezinhos de madeira. Essa sim que era boa! Dentro apareciam cartas com remites de Argentina, da Havana, de Uruguai... A nossa era uma família grande, dizia a avó, e a gente teve de emigrar a toda a parte.
Numa dessas viagens no tempo, as Primas encontraram um maço de notas dentro duma velha caixa de latão. Estavam dobradas pela metade e tinham uma singularidade que as fazia ainda mais especiais: um pequeno furado atravessava o maço permitindo olhar através dele como pelo olho duma porta. As Primas baixaram à cozinha para amostrar aos parentes aquele tesouro inesperado. O pessoal ficou admirado. Ninguém na casa sabia qual era a sua origem. Só quando o avô chegou de arrombar as vinhas, sentenciou emocionado:

- Trazei para aqui esses quartos! São meus e não quero que andeis a brincar com eles.

Os olhos vidrentos do avô desaconselharam aos parentes fazer qualquer pergunta. Só a avozinha foi sentar onde o seu homem, cônscia de que o velho não era de se emocionar por qualquer ninharia.

Passaram os anos e as meninas fizeram-se adultas. A Prima A gostava de falar com seu pai das coisas de antes, de quando era criança e matinha intacta a inocência primigênia. Foi então que o pai lembrou a história das notas furadas, sem reparar em que sua filha apenas conhecia do assunto a parte relativa ao descobrimento.
A Prima A soube então a história certa, uma história mais ou menos tal que assim:

«Na primavera do 1937, um vizinho nosso, falangista, meteu-lhe na cabeça ideias raras a um grupo de moços da redonda entre os quais estava o avô. Com pretensões de chegar a heróis, aqueles adolescentes apresentaram-se voluntários e foram enviados à frente de Vizcaya. Quando se deram conta do erro que cometeram já não havia volta atrás. Nada mais chegar, o filho do falangista, também enrolado na Santa Cruzada, morreu vítima do fogo amigo. –Justo pago, disseram muitas vozes na aldeia. Nas batalhas prévias ao assalto ao Cinturão de Ferro, os soldados dum e outro bando iam caindo em combate. Os republicanos, semiocultos em mínimas trincheiras, disparavam a chou, pelo que só algumas balas acertavam no alvo. Então, os soldados que continuavam com vida estavam na obriga de apoderar-se de quanto podia ser-lhes de utilidade: armamento, munição, alguma peça de roupa, víveres, dinheiro... O avô resistia-se a revistar aos seus companheiros mortos na procura de dinheiros, mas a ordem era contundente. No peto duma jaqueta encontrou o maço furado por uma bala republicana. As notas foram com ele o resto do tempo que botou na Guerra, para uma vez na casa terminar no fundo duma ucha velha.»

Na sua Biblioteca de Babel, a Prima A pensa no avô, agora muito velhinho e quase cego. Pensa em ele e novamente em Borges e nos seus versos:

«Ahora solo perduran las formas amarillas
y solo puedo ver para ver pesadillas.»

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