Já contei neste blogue os meus terrores associados ao uso de armas. Numa família de militares eram frequente as pistolas na casa, como a astra 9 mm corto do meu pai que vi armar e desarmar muitas vezes sobre a pequena mesa da nossa sala de estar. Que nome mais horrível o de sala de estar! Supõe-se que todas as salas são para estar, ainda que bem mirado, a biblioteca e o comedor são mais bem para ser.
Pois bem, nunca fui violento e quando houve de sê-lo preferi os punhos aos artefatos, o mais sofisticado dos quais, a escopeta de ar comprimido. A minha estava quase que sempre atorada já que na troca de balins, havia-os de perdigão e de copa, eu disparava com bolinhas de papel molhadas em cuspe.
Mas igual que o cérebro humano, nomeadamente o infantil, constrói bonecos ou instrumentos musicais pobres, também faz armamento pobre com o que lutar nas, v. gr., encarniçadas batalhas interbairros. Se a escopeta era o aparelho mais elaborado, o menos era sem dúvida o tutelo, esta vez sim, que nome mais formoso!
Os melhores eram os de cana de bambu. Havia quem os queria longos, quase como cerbatanas indígenas. Eu preferia-os curtos (algo a ver com o pene e com Freud?), os quais precisavam de menos folgos para o disparo certeiro. A munição era a base de sementes de hedras, havendo, por sua vez, uma grande variedade de tamanhos e cores. Os do meu bairro íamos a um lugar que ficou com esse nome, Rua das Hedras, e, mais uma vez a madalena de Proust, o sabor de aquelas sementes na boca ficou intimamente ligado aos tempos da minha infância.
Antes de que os contrabandistas se tornaram narcos, a única pistola que havia no meu povo era a do meu pai. Com tudo, as crianças tínhamos os nossos revólveres feitos de pregadores carregados com milhos os quais saiam projectados a uma velocidade considerável. Sempre pensei que aquele artefacto tão engenhoso, a pistola de pregadores, era um invento carcamão. Pois não. Está estendido por todos os lugares onde se usam os aparelhos para assegurar a roupa com mole de arame, um invento do mexicano Rafael Guillermo Salazar Peña, cuja vida daria para um romance de Bolaño. Este homem natural de Monterrey nasceu em 1918 e o seu invento só se popularizou após a segunda guerra mundial, assim que o nosso brinquedo tem de ser uma coisa relativamente recente.
Lembro que também existia fuzilaria, esta vez com pregadores, uma tábua, uns cravos e uma goma. Com estas espingardas atirava-se mormente às cachas, sendo o belisco uma brincadeira de mau gosto. Sei-no bem, já que eu era mais vítima que franco-atirador.
Na seção de cordas o rei era o arco feito com varetas de guarda-chuva e linha de pescar. As setas eram afiadas contra as pedras dos muros, ficando espetadas nos troncos das árvores com suma facilidade. Um bom arqueiro com varetas dum sete-paróquias podia chegar a matar, isso sim, apenas pequenos animalinhos como ratos ou pardais.
Com tudo, o nosso armamento raiava as vezes com o absurdo. Influenciados pelas películas de Bruce Lee que massivamente projectavam no Capitol começamos a utilizar nunchacos ou lunchacos, para nós unchacos, de fabricação caseira. O uso desta arma das artes marciais chinesa pode explicar muitos dos erros cometidos na vida pelos meus coetâneos. As nossas matracas eram feitas primeiramente com cabos de legonha, ganchos e umas cordas ou inclusive delgadas cadeias de ferro. A incosistência dos ganchos convertia muitas vezes ao nunchaco numa arma de arremesso, sendo frequente o voo pelos ares e sem controlo dum dos seus extremos. Imitando ao tal Bruce Lee fazíamos katas denominadas ventoinhas, moinhos... dando berros agressivos que apenas dissimulavam a dor produzida pelas frequentes autolesões. Mesmo, num alarde de estética ninja, passávamos a matraca por baixo das pernas, recolhendo a cegas um dos cabos pelas costas. Quiçá os meus problemas reprodutivos tenham origem nesta prática circense.
Dizia ao princípio que a arma mais simples era o tutelo, mas fazendo memória tenho que dizer que estou errado. No campo de batalha, estou a lembrar as atividades extraescolares no Pombal, nada melhor que uma pinha. Se só pretendes brincar, sem causar muitas baixas, o melhor é um pinha aberta, seca, ligeira. Para amolar bem amolado, as úmidas, pinhas ensimesmadas, com pinhões introvertidos e taciturnos.
Eis a panóplia carcamão que ainda lembro. Da minha geração, tem de haver muitas cicatrizes em crânios e quiçá também nas almas, pois as derrotas sempre são dolorosas. Lamento se a descrição dos artefactos não foi de tudo precisa, mas nisso das lutas a vida ou morte, eu sempre preferi o corpo a corpo.
Já não sei cantar canções de crianças...
Manuel Antonio
As ruas todas têm fome de meninos.
Noutros tempo
o eco eram pisadas diminutas
esvaziando as poças a pontapés.
Havia amores diminutos
com custosos presentes aos namorados:
uns brincos de fúchsias
ou um colar de camomila.
Havia diminutos fatos
que nunca passavam desapercebidos,
diminutos lanches
de tijolo e chuchamel,
e um sorriso diminuto
a abrir hospitalário o seu portelo.
Mas hoje as ruas estão fomentas de meninos
quem sabe se fugidos
para um outro território sem infantários-infantívoros.
Poema já publicado neste blogue: postagem nº 09
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