888
In Memoriam da
A. C. Arcos de Maçarelos,
funambulistas das artes.
Conheci
a Eduardo uma manhã de abril do 1983. O departamento de música da
faculdade de Arte pedira-me dar uma aula magistral sobre folclore e
cancioneiros. Apenas iniciada a palestra -a cuja redação dedicara
inúmeras horas das últimas semanas– soou um despertador. O são
do percussor a bater no sino metálico resultava anacrónico mesmo
para aquela década dos oitenta. Um raparigo vestido de chapéu e
capote pousou a mão sobre o relógio e de imediato saiu da sala
caminhando pausadamente ante os sorrisos desconcertados do auditório.
Assim
era o Eduardo. Meses mais tarde, quando já éramos íntimos amigos, pedi-lhe uma explicação ao incidente do despertador. A sua resposta
foi um brevíssimo:
–Tinha coisas que
fazer.
O caso é
que a minha amizade com Eduardo durou apenas uns meses, intensos, com
certeza, cheios de surrealismo e perigos reais para a minha pessoa.
O
episódio que quero relatar hoje tem a ver com uma loja, uma
irmandade ou algo semelhante, chamada a Fraternidade 888. Sei que o
seu nome pode soar a maçonaria, mas não era exatamente isso, ou
sim, ou que sei eu. O certo é que o 8 de agosto de 1983 fui o
primeiro profano em cem anos –e derradeiro– que assistiu a um
capítulo da Fraternidade.
E ali
estava eu, sentado num cadeirão do Salão Amarelo do Casino de
Homens. Ao redor duma mesa circular, oito fulanos, melhor, oito
tipinhos, com os seus chapéus, os seus bigodes quase de
adolescentes, o seu tabaco de enrolar, na altura absolutamente
démodé. E eu entre eles, desportivo, com
chinelos e calças curtas, bizarro de puro contemporâneo.
Então,
porque é que fui eleito para fazer parte de aquela última reunião
capitular da Fraternidade 888?
– Oi,
Mário, preciso que a próxima segunda-feira venhas
comigo a uma reunião de amigos, espetou-me
o Eduardo sem mais
explicação.
Conhecendo
o tipo de reuniões às que ia meu amigo, estava certo que não me ia
aborrecer.
O
capítulo durou apenas uns minutos. Os moços, todos da minha mesma
idade, sentaram sem dizer palavra. O Eduardo deu os bons dias e, a
continuação, cantaram o seu hino, uma peça titulada Adeus a
Santiago. Esta valsa fora composta fazia exatamente cem anos pelo
barítono valenciano Várvaro que chegou à cidade com o elenco duma
companhia italiana de ópera. Para o empresário, também levantino, semelhante apelido
resultava pouco comercial –e mesmo pouco italiano– razão
suficiente para aparecer nos cartazes como Pietro Fárvaro. A letra
levava a assinatura dum moço aprendiz de farmacêutico, Lisandro
Barreiro, um dos padres fundadores da Fraternidade.
Partitura de Adiós a Santiago.
Fondo Local de Música
do Concello de Rianxo.
Logo de
cantar o hino, os oito tiraram das correntes e colocaram sobre a mesa
oito esplêndidos relógios, todos exatamente iguais: caixa de prata,
três oitos gravados sobre a tampa e o que resulta mais excêntrico,
as suas esferas só marcavam um ciclo de oito horas.
Aquele
era o princípio fundamental da Fraternidade, o reparto alíquota do
dia em terços de oito horas: um fragmento dedicado ao trabalho,
outro para o estudo e o restante para o descanso. Uma divisão
beneditina do tempo que era levada até as últimas consequências.
Os irmãos, por exemplo, comiam três vezes ao dia: às 8, às 16 e
às 24, o início de cada um dos três intervalos diários. No resto
das horas, só a bebida e o tabaco estavam permitidos.
Tão
logo como foram depositados os relógios sobre a mesa, Eduardo tirou
duma saqueta um martelo protocolar de bronze e, um a um, escachou
todas as maravilhosas esferas deixando inservíveis os aparelhos. Com
uma pequena pá e uma vassourinha recolheu cuidadosamente os anacos e
os meteu noutra bolsa que atou com múltiplos nós.
Assim
acabou a reunião, com o meu coração a bater depois de ver como o
meu amigo inutilizava os preciosos mecanismos construídos, como
cheguei a saber, por um relojoeiro alquimista de Mondonhedo.
Durante
os cem anos que durou a Fraternidade, por ali passaram vultos como os
periodistas Labarta Posse ou o próprio Lisardo Barreiro –pais
fundadores– Castelao, Pérez Lugín, Filgueira, Cunqueiro e tantos
outros. Oito homens, sempre homens, que renovavam o capítulo cada
quatro anos. Todos eles tinham algo em comum: o seu amor pela
Tradição galeguista e o desprezo pelos seus estudos universitários,
considerados um médio, mas que um fim em si mesmo. Segundo me contou
o Eduardo, houve vários membros da Fraternidade que atraiçoaram os
princípios fundamentais, mas foram os menos.
Em
definitiva, o meu amigo, Grande Mestre da Fraternidade 888, queria
que eu fosse o notário ou cronista do seu óbito, da morte duma loja
inútil, absurda e elitista. Ou quem sabe….
Anotação no meu dietário de 1983.
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