Poderia construir o relato da minha vida utilizando como fio condutor
as sucessivas obsessões bibliófilas que fui padecendo ao longo dos
anos. Em realidade, o meu interesse não é tanto pelos volumes
quanto pelos textos e dados que eles contêm. E dizer, careço de
qualquer indício de fetichismo livrófago, um vício que contribuiu
em grande medida à formação do universo criativo de autores tais
como Borges, que como é sabido foi um autêntico pirado da
bibliofilia. Ele, por exemplo, adorava um exemplar da primeira
tradução ao inglês, 1840, de As mil e uma noite de E. W.
Lane, citado em vários dos seus contos. A mim valeria-me uma edição
cubana –dessas que parecem feitas em papel comestível– com tal
de que a tradução fosse especialmente brilhante ou as notas a
rodapé estivessem iluminadas por uma erudição irrebatível.
A minha atual obsessão chama-se Daniel Sueiro (1931-1981). Estou
comprando os seus livros por todo o Estado Espanhol a preços mesmo
inferiores aos dos gastos de envio. Tudo começou com a leitura dum
conto: El regreso de Frank Loureiro e aí continuo, lendo e
gozando dum sincero cronista da derrota.
Suponho
que em breve
publicarei algo mais elaborado, mas, por
enquanto, limito-me
a comentar uma anedota curiosa. La
Criba
foi publicado em 1961 por Seix Barral e conta a história de «un
pobre diablo al que atenazan las circunstancias». Quase no final do
livro, o protagonista encontra-se acurralado pelos
gastos sanitários que durante
o
embaraço e posterior nascimento
do seu primeiro filho foi acumulando.
No
médio do seu desespero compra um jornal no que lê a seguinte
notícia:
«Sacó
unas monedas del bolsillo y compró un periódico. Lo fue leyendo,
andando, por la acera, ojeándolo, leyendo los titulares. […]
Un
anuncio que venía en el periódico, perdido en el fondo de una
página, le llamó la atención. Lo había visto ya, pero sólo ahora
se detuvo y lo leyó detenidamente. “El duro avecrémico vale ahora
80.000 pesetas”, comenzaba. “Es de la serie “F”, de mucha
circulación”.» p.155
O
duro avecrêmico tinha o valor trocável
de muitos duros,
80.000 pesetas da Espanha autárquica na
que um quilograma de pão custava 7,50 pts e umas
4 pts
um litro de leite. Mas
como o bilhete com o número de série exato não era fácil de
encontrar, o prémio aumentava e em janeiro do 57 já andava por
cento vinte mil rúbias.
Gallina
Blanca, a empresa promotora do concurso, nascera em Catalunha em
plena Guerra Civil. O seu invento
consistente em cubos de caldo concentrado a base de carne argentina e
extrato variado de legumes e hortaliças converte-se num produto
básico na
população faminta
da pós-guerra. É paradoxal,
e suponho que casual, que o condutor do programa da emissora
da
S.E.R. onde se desenvolvia
o concurso
«Duro com el duro», Juan Carlos Thorry (28 de junho de 1908, Coronel Pringles, Argentina - 12 de fevereiro de 2000, San Antonio de Padua, Merlo, Argentina) tivesse
a mesma origem que a carne dos cubos concentrados.
Desconheço
–e olhem que procurei por toda a rede!– se alguma vez alguém se
levou o prémio, mas o duro avecrêmico é,
sem dúvida, uma
magnífica ilustração
para
a
literatura de Sueiro, cujo
fundamento não é outro que
a descrição minuciosa dos sonhos irrealizados.
Daniel Sueiro
É o mesmo autor (co-autor) de Historia del franquismo ? interessantes sempre estas marginálias ;)
ResponderEliminarApertas,
Ernesto
O mesmo, a minha nova obsessão. O conto sobre Frank Loureiro é um dos textos sobre perdedores mais alucinante que tenho escutado. Qual é o motivo de que seja tão pouco conhecido? Também escreveu sobre a pena de morte. Tenho quase tudo dele. Que ganas de te ver, meu irmão. A loja bota-te de menos!
ResponderEliminarPois eu não o controlo como narrador, mas já me entrou a curiosidade... ;) apertas
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